Desta vez, a América do Sul se livrou. 

Segundo um novo estudo publicado na sexta-feira pelo jornal eletrônico especializado em artigos científicos  “Science Advances”, cerca de 71% da população mundial, ou seja, 4.3 bilhões de pessoas, vivem sob severa ou moderada escassez de água por um mês a cada ano. Dessas, 1 bilhão vivem na Índia e 900 milhões vivem na China. 


O Brasil não está entre os países mais afetados, não há nenhum na América Latina. Quem encabeça a lista dos mais impactados pela seca é o Iemen, nação árabe que faz fronteira com a Arábia Saudita e Omã, é banhada pelo Mar da Arábia e, segundo o estudo, está prestes a ficar totalmente sem água dentro de poucos anos.  Em Bangladesh, 130 milhões são afetados; nos Estados Unidos, sobretudo na região Oeste, também 130 milhões de pessoas estão sendo impactadas pela seca; no Paquistão são 120 milhões; na Nigéria são 110 milhões  e no México, 90 milhões.


A pesquisa, divulgada pelo jornal britânico “The Guardian”   mostra ainda que há 1,8 bilhão a quase 3 bilhões de pessoas que já estão passando por uma escassez severa de água pelo menos de 4 a 6 meses ao ano.  Marrocos, Líbia, Somália, Jordânia, estão entre os países cuja posição é bastante vulnerável. A situação, segundo os pesquisadores (leia aqui a pesquisa na íntegra) é bem pior do que os estudiosos estavam imaginando até agora, o que faz supor que registros anteriores subestimaram os dados.  A diferença é que até aqui a escassez de água estava sendo pesquisada ano a ano. Quando os pesquisadores decidiram aproximar mais a lupa do que realmente acontece no dia a dia dos cidadãos, a resposta foi a que se obteve.

Aqui no Brasil, com razão ficamos preocupados e monitoramos os registros de reservatórios, mas o país ainda tem 12% da água doce superficial do mundo (leia aqui). Nosso problema é a distribuição dessa água, mal feita, além da poluição dos rios. Duas questões que não dependem da natureza, como acontece nos países mais impactados, mas da ação humana, de vontade política e da (ir)responsabilidade de empresas que precisam da água para tocar seus negócios. Só para lembrar um caso, a bacia do Rio Doce, em Minas Gerais, está poluída por causa do rompimento de barragens da mineração da Samarco e ainda corre risco de o acidente se alastrar (veja aqui).


Um estudo como esse que foi divulgado, onde a água aparece sendo, cada vez menos, um “recurso renovável”, mostra a exata proporção do crime ambiental que aconteceu em Minas Gerais. Desse, tivemos notícias por ter sido grandioso. Há outros menores que não têm tanta repercussão mas que são igualmente cruéis contra um bem em extinção. A mineradora Rolando Comércio de Areia, por exemplo, causou rompimento de barragem  de mineração em Jacareí no dia 5 de fevereiro (leia aqui) e lançou todo o lixo que restava de sua produção no Rio Paraíba do Sul. O Ministério Público abriu inquérito, haverá processo na Justiça, alguma multa vai ser paga, mas... o dano a um rio que tem mais de mil quilômetros, banha três estados e pode ser a fonte de renda de muitos, já foi feito.


Assim sendo, não se trata, apenas, de diminuir o tempo de banho de cada cidadão, como muito bem lembrou Arjen Hoekstra, professor holandês que coordenou a pesquisa.


“O consumo doméstico é responsável por apenas 1 a 4% do gasto de água”, disse ele.


O holandês centra fogo em dois grandes vilões que estão provocando a seca: a agricultura, por conta da irrigação, e o consumo da carne, que se utiliza de 25% de toda a água do mundo. É preciso mais de 15 mil litros de água para preparar um quilo de carne bovina para servir como alimento aos humanos. Diminuir o consumo de carne vermelha, portanto, não é apenas bom para a saúde, como atestou o relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgado no ano passado (leia aqui) .


Os efeitos da seca no mundo foram tema também do Forum Mundial Econômico que aconteceu em Davos em janeiro (leia aqui) , razão que motivou  a pesquisa do jornal.  A escassez de água foi listada como um dos dez maiores impactos que o mundo já vem enfrentando, com consequências desastrosas, inclusive como fomentadora de violência. Basta lembrar o caso da Síria.


Situados na região conhecida como “Crescente Fértil” ou “Berço da civilização”, onde a humanidade começou a crescer graças à abundância de terras agricultáveis e água,  os sírios viveram o horror da seca durante três anos a partir de 2006/2007. Consequência direta foi a migração de 1,5 milhão de pessoas das áreas agrícolas para os centros urbanos, em busca de água.  Segundo estudo publicado no site da Academia de Ciências dos Estados Unidos (leia aqui, em inglês), em 2003, antes do início da seca, a agricultura representava 25% do Produto Interno Bruto sírio. Em 2008, após o inverno mais seco observado no país, essa porcentagem caiu para 17%.


Pequenos e médios agricultores perderam suas safras na Síria, o gado morreu à míngua, o país precisou importar trigo pela primeira vez em toda a sua história. O preço dos alimentos mais que dobrou, a desnutrição começou a ser um mal a atingir,  sobretudo,  as crianças. Tudo isso alinhado a uma liderança negligente, diz o texto dos pesquisadores, ao fracasso do governo para enfrentar e dar soluções ao sofrimento do povo, resultou em agitação, instabilidade, desemprego, corrupção e um aumento da desigualdade galopante.


O estudo do jornal “Science Advances” lista o aumento da população mundial como um dos fatores que está contribuindo para a escassez de água no planeta. Nesse ponto, há estudiosos que divergem, e tendo a concordar com eles. A pesquisadora alemã Barbara Duden, do Instituto de Estudos da Cultura em Essen, conta em seu artigo “Population” no “The Development Dictionary” (Ed. Zeed Books), que foi durante os anos 50, no pós-guerra, que pela primeira vez a superpopulação tornou-se uma ameaça iminente.

“Os estudiosos do crescimento populacional estavam começando a ter um discurso desenvolvimentista. E a redução na taxa do crescimento populacional passou a ser  vista, a partir de então, como uma condição para que os países se desenvolvessem.  Altas taxas criariam mais desemprego, aumentariam o número de bocas a serem alimentadas... E assim, acabariam pondo à prova as promessas feitas em nome do desenvolvimento e os políticos pagariam o preço do progresso”, conta ela.


Dudens traça a linha histórica e destrincha a questão-chave. Afinal, se os humanos virarem o problema crucial do planeta, quem vai dar a solução? Ou o que se quer é que sobre muito para os poucos que já estão aproveitando mais do que os outros?


 Aqui vale registrar, para terminar a reflexão, que a mesma Índia que aparece na pesquisa com 1 bilhão de pessoas que vivem sem água pelo menos 1 mês no ano, também tem surgido nos noticiários econômicos como a nação líder em crescimento por conta da alta recorde, de 7,3%, do PIB. A era dos paradoxos.