Rio Tapajós, onde o governo tem planos por enquanto suspensos de instalar uma nova mega-hidrelétrica. Foto: Fábio Nascimento/Greenpeace.
Rio Tapajós, onde o governo tem planos por enquanto suspensos de instalar uma nova mega-hidrelétrica. Foto: Fábio Nascimento/Greenpeace.
Num momento em que grupos tentam enfraquecer o licenciamento ambiental no Brasil, um estudo internacional acende uma luz amarela sobre as hidrelétricas da Amazônia. Seus autores apontam que as mais de 500 barragens construídas ou planejadas para a região poderão causar, se implementadas, nada menos do que o colapso ecológico de bacias inteiras da maior floresta tropical do mundo.
Entre as principais vítimas potenciais estão a região do rio Marañon, no Peru, do Madeira, na Bolívia e no Brasil, e do Tapajós, onde um polêmico complexo de sete grandes hidrelétricas pode voltar à mesa. Nessas bacias, o pulso natural dos rios, que entre outras coisas mantém a alta biodiversidade da região, seria alterado. Sem ele, até mesmo a evolução das espécies amazônicas poderá ser afetada.
Os impactos agregados poderão prejudicar até mesmo o transporte de sedimentos do rio Amazonas, que todos os anos lança 500 milhões de toneladas de nutrientes trazidos desde sua nascente nos Andes e os despeja no Oceano Atlântico, ajudando a equilibrar o clima local e a fertilizar ecossistemas tão distantes quanto os manguezais do Pará e a costa da Guiana.
Para evitar uma potencial catástrofe, o grupo de 16 pesquisadores propõe aos países da bacia amazônica colocar um freio de arrumação à expansão das hidrelétricas e discutir uns com os outros um protocolo conjunto de manejo de rios.
“Até hoje as hidrelétricas têm sido aprovadas projeto por projeto, mas nunca se pensou no impacto acumulado na larga escala”, disse ao OC o geólogo Edgardo Latrubesse, um argentino que divide seu tempo entre a Universidade do Texas em Austin e a Universidade Tecnológica Nanyang, em Cingapura – com paradas eventuais para orientar alunos na Unesp de Rio Claro. Ele é autor principal do novo estudo, publicado nesta quarta-feira (14) no site do periódico científico Nature.
O grupo liderado por Latrubesse é formado por biólogos, ecólogos, geólogos e hidrólogos do Brasil, da Alemanha, dos Estados Unidos e do Reino Unido. Alguns deles participaram dos estudos de impacto ambiental de hidrelétricas como Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, e Belo Monte, no rio Xingu.
Ele analisou 19 sub-bacias da Bacia Amazônica e compuseram um índice de vulnerabilidade de cada uma, levando em conta fatores como a integridade ambiental, a propensão a erosão, a influência dos sedimentos na dinâmica natural dos rios e o impacto potencial de hidrelétricas em cada sub-bacia.
Em toda a Amazônia, as sub-bacias menos vulneráveis são as do Negro, do Javari e do Jutaí, no Amazonas – em grande parte protegidas por terras indígenas e longe do olho gordo da Eletronorte. As mais vulneráveis são as do Madeira – o quarto maior rio do mundo, responsável por 50% dos sedimentos transportados pelo Amazonas para o oceano –, do Tapajós e do Marañon.
Lama primordial
No caso do Madeira e do Marañon, um dos efeitos deletérios do grande número de usinas é algo que à primeira vista pareceria uma boa coisa: elas tendem a deixar a água barrenta dos rios amazônicos mais clarinha.
Na realidade, isso é um desastre para a floresta. Num sentido nada figurado, a lama transportada do Marañon e do Madeira para o Solimões e o Amazonas é grande parte da receita do que torna a Amazônia o que ela é.
“A lama tem um papel fundamental”, diz Latrubesse. No período das cheias, ela deposita nutrientes nas planícies aluviais, o que mantém a biodiversidade. Os sedimentos também têm um papel na constante mudança de curso dos rios, criando meandros abandonados, lagos e ilhas ao longo dos anos. É nesses ambientes de populações de animais e plantas isoladas pelo rio que surgem novas espécies.
“As pessoas tendem a pensar no rio como um mero canal de água, mas na verdade ele é uma coisa viva”, diz o cientista argentino. “Se você corta os sedimentos, corta a diversidade dos ecossistemas”.
“As pessoas tendem a pensar no rio como um mero canal de água, mas na verdade ele é uma coisa viva”, diz o cientista argentino. “Se você corta os sedimentos, corta a diversidade dos ecossistemas.”
Foi exatamente isso o que aconteceu no rio Paraná, no oeste paulista, que se transformou numa cascata de hidrelétricas, e no rio Yangtzé, na China, que abriga a maior hidrelétrica do mundo, a de Três Gargantas. O rio perdeu 70% de seu transporte de sedimentos, numa tragédia ambiental que os chineses agora buscam reverter.
Licenciamento
O artigo propõe que os nove países da América do Sul que dividem a bacia amazônica desenvolvam um sistema multinacional de avaliação de projetos de hidrelétricas, que leve em conta impactos que vão além da área de influência de cada empreendimento.
A própria necessidade de novas usinas deve ser repensada, segundo os autores: eles não falam em Lava Jato, mas lembram que o custo dessas obras é na maioria dos casos pelo menos duas vezes maior do que a previsão inicial. E afirmam que, devido à crise econômica que reduziu a demanda por energia no Brasil, há espaço para essa reavaliação – e, eventualmente, para preencher a demanda com fontes renováveis, que se expandem rapidamente no mundo e despencam de preço.
O sistema político brasileiro, porém, caminha neste momento no sentido oposto: vários projetos em discussão no Congresso buscam flexibilizar, enfraquecer ou simplesmente extinguir o licenciamento ambiental, facilitando a instalação de hidrelétricas na Amazônia.
Um único projeto de lei de licenciamento, que o Ministério do Meio Ambiente vem há um ano tentando emplacar no Congresso, busca estabelecer algo que dialoga com as recomendações dos cientistas: ele cria a figura da avaliação ambiental estratégica, na qual o impacto de políticas públicas sobre uma região é analisado antes que se decida fazer empreendimentos ali. “O foco passa a ser de desenvolvimento regional, caminhando para empreendimentos que, no conjunto, são mais viáveis do ponto de vista socioambiental”, disse a presidente do Ibama, Suely Araújo. Uma das principais defensoras da avaliação ambiental estratégica, Araújo arquivou, em 2016, o licenciamento da megausina de São Luiz do Tapajós. O Ministério de Minas e Energia, porém, resiste a dar a obra como morta.
O projeto do MMA concorre com outro, da bancada ruralista e da indústria, que visa tirar qualquer critério de rigor no licenciamento baseado na geografia (ou seja, empreendimentos na Amazônia teriam, a priori, maior rigor na análise) e deixar que Estados e municípios definam tudo.
Mas há outras propostas circulando no Parlamento. Uma delas, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), quer criar um licenciamento “a jato” para grandes obras. Outra, do senador cassado Delcídio do Amaral (PT-MS), recém-aprovada numa comissão do Senado, busca criar um licenciamento especial e mais expedito só para hidrelétricas. Uma terceira, do senador Acir Gurgacz (PDT-RO), vai além: quer emendar a Constituição para extinguir o licenciamento ambiental. Ponto.
“No planejamento das hidrelétricas na Amazônia, usamos a mesma localização das obras proposta pelo regime militar”, disse Latrubesse. “Não se trata de ser contra ou a favor de hidrelétricas. O problema é que a maneira como foi feito foi grotesca.”
OC procurou a Empresa de Planejamento Energético, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, para comentar o estudo. Não obteve resposta até o fechamento deste texto.
Republicado do Observatório do Clima através de parceria de conteúdo.