terça-feira, 18 de julho de 2017

Agroecologia na prática: Comunidades mostram que é possível produzir alimentos saudáveis sem agredir o meio ambiente




Reportagem de André Antunes – EPSJV/Fiocruz

Agroecologia na prática: Comunidades mostram que é possível produzir alimentos saudáveis sem agredir o meio ambiente

Divulgar experiências exitosas de produção agroecológica e de organização comunitária foi um dos objetivos da Caravana Agroecológica do Semiárido Baiano, que percorreu localidades ao longo do São Francisco, no norte da Bahia, entre os dias 26 e 30 de junho.


Com esse objetivo, a caravana, que reuniu cerca de 70 pessoas de diversas organizações, entre elas a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), visitou, no dia 29 de junho, a comunidade de Coxo de Dentro, localizada na cidade de Jacobina, para conhecer o trabalho desenvolvido pela Associação Comercial dos Moradores e Agricultores de Coxo de Dentro. Com 112 membros, a associação, criada em 2000, vem trabalhando na organização do trabalho de extração do babaçu feita pelos moradores da comunidade e também na indução da transição agroecológica na produção da agricultura familiar local.


A comunidade fica em uma região de transição da caatinga para a mata atlântica, uma área com elevados índices pluviométricos e rica em nascentes, que abastecem alguns dos rios mais importantes do norte da Bahia, como o Itapicuru. “A gente tenta mostrar para a comunidade que é melhor para o meio ambiente e para a saúde produzir de maneira sustentável, sem utilizar nenhum tipo de agrotóxico nem fertilizantes químicos”, diz Robério Santos de Jesus, presidente da associação, que explica que as lavouras utilizam um biofertilizante natural produzido ali mesmo.


“A variedade da produção também combate os insetos. Ao invés de plantar uma coisa só, você vai diversificando a produção, para que o inseto ataque uma planta e já não ataque outra”, explica Robério, que ressalta ainda a importância da rotatividade de culturas para a preservação dos solos, que reduz a necessidade de utilização de fertilizantes.



A extração do babaçu, que complementa a renda gerada pela comunidade através da comercialização da produção em feiras orgânicas da região, também é feita de acordo com os princípios da agroecologia: as palmeiras ocorrem naturalmente na região, e somente os frutos que caem no chão são recolhidos. Na associação local é feito o beneficiamento. “É um produto que se aproveita tudo. Aqui a gente faz carvão, faz o óleo do babaçu, faz sabonete, hidratante e também faz bijuterias, artesanato”, lista Robério.


Ieda Amaral, moradora da comunidade que trabalha na extração do babaçu, conta que anteriormente era comum a retirada dos cachos do alto das palmeiras. “Eu mesma cortei muito cacho de babaçu para vender na feira.


A gente não tinha uma sobrevivência boa. Não era certo, mas eu era obrigada”, lembra Ieda, que completa: “Depois que a gente foi trabalhando, vendendo as coisas da roça, foi que a gente foi aprendendo a trabalhar na roça e deixar mais o coco sossegado. Quando a gente cortava não tinha quase coco no mato. Hoje tem muito”, ressalta. Ieda conta ainda que a transição para a agroecologia em seu roçado significou mais diversidade para sua produção e alimentação. “Hoje só compro no mercado o que não produzo aqui: arroz, feijão e carne.



O resto eu planto: cenoura, beterraba, agrião, alho-poró, cebolinha, abóbora…” enumera. Antes, continua, ela plantava apenas banana e mandioca, e usava venenos pra combater pragas na lavoura. “Depois que eu aprendi a trabalhar assim me sinto outra pessoa, mais esperta na vida”, comemora.

Comunidade quilombola gera renda a partir da organização comunitária

“Somos quilombolas, temos muito a oferecer para o Brasil. Mas precisamos resgatar nossa história e nossa cultura”. A frase é de Valdecy dos Santos, moradora da comunidade de Monteiro, povoado do município de Caém reconhecida como remanescente de quilombo pela Fundação Palmares em 2011. Presidente da Associação Quilombola dos Produtores de Mandioca de Bom Jardim e Monteiro (Aquibom), Valdecy recebeu a caravana para falar sobre a organização da comunidade em torno de uma unidade de produção de beiju, feito a partir da mandioca.



Fundada há 10 anos e com cerca de 40 membros, a associação produz e comercializa seus produtos através de feiras orgânicas e da venda para comerciantes locais, como supermercados e padarias. O beiju produzido pela associação também compõe o cardápio da merenda dos estudantes das redes municipal e estadual de ensino, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que destina alimentos produzidos pela agricultura familiar para as escolas públicas.




“Tudo que conseguimos para a nossa comunidade foi através do trabalho da associação: poste de iluminação, posto de saúde, creche”, afirma Valdecy, que diz sentir falta de apoio do governo na comunidade, que ainda luta pela regularização de suas terras. “Aqui na associação só quem tem documento de terra é meu pai, se precisar só ele que tem. É uma dificuldade grande que a gente tem aqui. E a gente sabe que a gente tem direito, somos quilombolas. Mas muitas vezes sentimos falta de apoio, ficamos sem ter a quem recorrer”, diz Valdecy.

Cooperativa traz ganhos para catadores de material reciclável

Na cidade de Jacobina, a caravana parou para conhecer o trabalho desenvolvido por uma cooperativa de catadores de material reciclável, a Recicla Jacobina. Criada há quatro anos, a cooperativa reúne 34 trabalhadores, que recolhem e vendem para reciclagem materiais como vidro, plástico e papelão. São três caminhões e quatro carrinhos motorizados para fazer a coleta.


“A Cooperativa é muito importante aqui em Jacobina, porque antes disso era lixo na rua, na beira do asfalto. Quando o calor é demais ele pegava fogo, isso aqui era um caos”, lembra Elizabeth Santana, presidente da Recicla Jacobina. “Hoje a gente pega, imprensa e vende para fazer outro produto. É muito melhor do que você deixar enterrado e contaminar o subsolo e o ambiente onde a gente vive”, completa. Segundo Elizabeth, o trabalho dos catadores tem ajudado a evitar que os resíduos sólidos vão parar no rio que corta a cidade.



“Agora, a coisa importante que o governo tinha que fazer era esgoto, porque não tem. Em Jacobina você passa em cada rua que o fedor cobre, e é um perigo, tanto pra gente quanto para a população”, pontua.


Segundo Elizabeth, o grosso do material ainda é recolhido do aterro controlado da cidade, que fica ao lado do galpão da cooperativa. A coleta seletiva, que os catadores ajudaram a implementar na cidade, ainda é muito incipiente, de acordo com Elizabeth. Segundo ela, a organização dos trabalhadores na cooperativa contribuiu para melhorar as condições de trabalho dos catadores, que ganham hoje entre R$ 1,2 mil e R$ 1,5 mil por mês.



“Antes, quando a gente era autônomo, vendia material abaixo do preço, sempre enriquecendo o atravessador. Depois da cooperativa, a gente conseguiu um preço melhor”, revela a presidente da Recicla Jacobina. Apesar disso, ela afirma que a principal dificuldade da cooperativa é organizar os catadores e ampliar o número de cooperados. “O maior sonho da gente é crescer mais a Cooperativa, contratar mais cooperados e dar emprego a pessoas que não têm. Mas aqui tem regra, e tem muito catador que não se adapta. É uma dificuldade unir os catadores”, aponta.

Caminho a seguir

Para o professor-pesquisador da EPSJV André Búrigo, visibilizar as experiências positivas das comunidades visitadas durante a caravana contribui para evidenciar que há alternativas aos projetos de desenvolvimento hegemônicos. “É possível produzir e se organizar pra um outro tipo de sociedade que tenha menos impacto ambiental, que busque uma forma de uma relação positiva com a natureza. As comunidades tradicionais, as comunidades quilombolas que a gente visualizou também mostram que onde você tem comunidade organizada, onde você tem assistência técnica adequada chegado, você consegue produzir resultados positivos”, assinala.


Luciana Khoury, promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo da Bacia do Rio São Francisco acredita que o conhecimento das práticas sustentáveis compartilhadas pelos comunidades durante as caravanas servirão de subsídio para o trabalho do Ministério Pùblico. “A gente entende que isso nos fortalece até mesmo do ponto de vista do conhecimento das possibilidades para intervenção”, avalia Luciana, que integra também o Fórum Baiano de Combate ao Impacto dos Agrotóxicos.


“O Fórum tem uma análise muito definida de que não existe uso seguro de agrotóxico. O caminho que a gente aponta no Fórum é o não uso mesmo, e por isso essa Caravana é tão importante, pra poder mostrar os anúncios das experiências agroecológicas, que seria realmente a forma de se viver com qualidade, não só pra quem produz, mas também para o consumidor e para os ecossistemas”, diz ela.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 18/07/2017

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Primeiro ônibus elétrico, alimentado por baterias, produzido no Brasil circulará pelas ruas de São Paulo



A Prefeitura de São Paulo apresentou na sexta-feira (14) um ônibus elétrico, alimentado por baterias, com capacidade para transportar 84 passageiros e com até 300 quilômetros de autonomia. O veículo foi totalmente construído no Brasil. As baterias são de fosfato de ferro e levam de quatro a cinco horas para serem carregadas. A linha em que o ônibus circulará ainda não foi definida e a previsão é a de que o veículo entre em operação até o dia 31 de julho, após passar por fiscalizações feitas pela SPTrans (São Paulo Transporte – empresa que faz a gestão do transporte público na capital paulista).

Primeiro ônibus elétrico, alimentado por baterias, produzido no Brasil circulará pelas ruas de São Paulo
Foto: Prefeitura Municipal de São Paulo
O ônibus têm ainda motores elétricos embutidos nas rodas e sistemas auxiliares hidráulicos e pneumáticos, integrados por meio de uma rede de controle. Esse mecanismo faz com que, em aceleração, o sistema consuma energia das baterias tradicionais e nos momentos de frenagem o sistema de tração transforme a energia dessas baterias em energia elétrica, que fica armazenada nas mesmas baterias.

O chassi é feito pela empresa chinesa BYD, que instalou uma fábrica em Campinas (SP) há dois anos em meio. A carroceria é da Caio, que também funciona no interior de São Paulo. A capacidade de produção anual da BYD é de 400 carros por ano.

Segundo o prefeito de São Paulo, João Doria, a implantação dos ônibus elétricos está dentro do plano de governo da prefeitura de promover a redução de emissões poluentes. “Esse modelo emissão zero e baixo nível de ruido, também é equipado com ar-condicionado. O modelo atende ainda a todas as exigências de acessibilidade como piso baixo, rampas de acesso e espaço para cadeiras de rodas, wi-fi e tomadas USB”, disse Doria.


Segundo o secretário Municipal de Mobilidade e Transportes (SMT), Sérgio Avelleda, o veículo é o que há de mais moderno em termos de ônibus elétricos em operação em outros países, como os Estados Unidos e a China. “Isso faz parte do plano de governo apresentado para a transformação do nosso sistema de ônibus. Na licitação, já anunciamos, vamos contribuir para que ao longo do próximo contrato, as empresas reduzam paulatinamente as emissões que provocam doenças respiratórias, envelhecimento precoce e um clima global indesejável”, disse.

A prefeitura pretende discutir com a Câmara Municipal a alteração da legislação vigente para a adequação do sistema de ônibus para veículos classificados pelo secretário como mais saudáveis. “Quero ressaltar que estamos estudando trocar os 60 ônibus a diesel para elétricos e instalar placas foto voltaicas na garagem para que durante o dia o sol gere energia elétrica que vai alimentar os ônibus que vão circular pela cidade de São Paulo”.

Por Flávia Albuquerque, da Agência Brasil, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/07/2017

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Temer e a legalização do massacre no campo, artigo de Leandro Vieira Cavalcante



artigo de opinião

[EcoDebate] Temer sancionou recentemente uma medida provisória que legaliza a grilagem de terras na Amazônia, e de uma vez só legaliza também o massacre de camponeses e indígenas que estão no rastro do poderio devastador de ruralistas e latifundiários. Trata-se de uma manobra política sem precedentes, cujos impactos serão assoladores. Diante de tantos golpes aos quais os trabalhadores foram submetidos recentemente, esse é essencialmente dramático e cruel, pois põe em risco a sobrevivência dos povos do campo e da floresta, cujo resultado será mais derramamento de sangue.


O que Temer fez foi uma completa legalização da carnificina, a cargo de ruralistas e latifundiários que ganharam de presente o direito de invadir terras da União e de expulsar camponeses e indígenas que porventura lá estejam há gerações. Agora eles têm licença para invadir, expulsar, torturar, matar, e farão isso alegando o direto de defender sua propriedade privada (que por sinal, foi por eles invadida). E eles são os mesmos que tramaram a derrubada de Dilma e a ascensão de Temer, e que detém o comando do Ministério da Agricultura, do Incra, do Ibama, da mídia e de um exército de capangas fortemente armados.

Com a legalização da grilagem e do massacre, veremos um acentuado quadro de desmatamento, invasões de terra, concentração fundiária, expropriação, violência e mortes, e tudo isso com o aval do Governo Federal, controlado pela corja de ruralistas que não se contentarão até fazer sangrar por completo a floresta e o povo amazônicos. E isso é consideravelmente preocupante no Pará, por exemplo, palco histórico de sangrentos conflitos por terra e massacres de camponeses.


Nunca na história recente do Brasil se viu tamanho descaso com a questão agrária e com o direito à terra e ao território pelos povos do campo e da floresta, tratados como um obstáculo ao cruel modelo de desenvolvimento do país propagado pela expansão do agronegócio. A verdade é que não há respeito pela floresta Amazônica e pelos indígenas e camponeses do Brasil, e isso nunca foi novidade para ninguém.


O aval dado aos grileiros de terras, por Temer, representa um afronte à dignidade humana e deve ser encarado como um total desrespeito a todo o povo brasileiro. O fato é que quando todas as parcelas de terra estiverem ocupadas e quando não houver mais vida na Amazônia, será tarde demais para voltar atrás – e o preço será pago por todos nós. A sentença de morte foi lançada, e o perdão aos latifundiários assegurado.


Leandro Vieira Cavalcante
Geógrafo, Doutorando em Geografia/UECE
Especialista em estudos sobre questão agrária
leandro.cavalcante@hotmail.com


in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/07/2017

Palácio do Planalto transformou-se em subsede da bancada ruralista



Palácio do Planalto transformou-se em subsede da bancada ruralista. Entrevista especial com Márcio Astrini

IHU
O presidente Michel Temer sancionou no dia 11 de julho a Medida Provisória – MP 759/2016, também conhecida como MP da Grilagem. Conforme o site do Senado, ela “dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal”. Ambientalistas apresentam leitura distinta e temem pelos desdobramentos dessa MP. O coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Márcio Astrini, é taxativo: “Sua aprovação foi uma vitória de bancadas como a ruralista”.


Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Astrini conta que grande parte da MP foi redigida por grupos de interesse instalados no próprio Congresso. “Esses personagens há muito tempo querem ver aprovados retrocessos como os contidos na 759, porém muitas de suas propostas sempre tiveram bastante dificuldade para serem aprovadas, porque são débeis em apoio popular, em justiça social e mesmo por afrontarem a Constituição”, rememora. “A diferença é que agora seus autores encontraram um presidente servil a seus propósitos.”


Ao justificar a medida, ministros do governo disseram que ela servia para legalizar as terras de pessoas que chegaram há décadas à Amazônia a partir de ações do Estado, sem nunca ter recebido o título da terra que foi prometido. Astrini, no entanto, afirma que a MP atende a desejos antigos dos ruralistas, entre eles “acabar com a função social da terra, enfraquecer a luta pela reforma agrária e, principalmente, viabilizar uma grande quantidade de terras públicas para o mercado fundiário”.



O ambientalista conta que o texto foi redigido “no escondido dos gabinetes palacianos” para atender aos interesses de grileiros de terras, donos de grandes condomínios irregulares e máfias do desmatamento da Amazônia, e critica: “O Palácio do Planalto transformou-se numa espécie de subsede da bancada ruralista”.
Márcio Astrini
Márcio Astrini | Foto: Assembleia Legislativa de São Paulo

Márcio Astrini é coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, o Senado aprovou a Medida Provisória 759? Quais partidos votaram a favor dessa medida e quais são os interesses envolvidos nessa decisão?
Márcio Astrini – Grande parte da MP 759 foi redigida por grupos de interesse instalados no próprio Congresso. Sua aprovação foi uma vitória de bancadas como a ruralista. Esses personagens há muito tempo querem ver aprovados retrocessos como os contidos na 759, porém muitas de suas propostas sempre tiveram bastante dificuldade para serem aprovadas, porque são débeis em apoio popular, em justiça social e mesmo por afrontarem a Constituição. A diferença é que agora seus autores encontraram um presidente servil a seus propósitos.


A aprovação e a própria existência da MP 759 explicam-se na crise política atual. Hoje temos um presidente cuja maior preocupação é encerrar o dia ainda no cargo. Para se manter, precisa do Congresso, depende dos votos de um Parlamento dominado pela bancada ruralista. Foi assim que nasceu esta MP, do mais baixo toma-lá-dá-cá político. Os ruralistas garantem a manutenção de Temer, e este os presenteia com a edição de medidas provisórias de seus interesses, entre outras benesses.



O conteúdo da MP tem desejos antigos do setor, como acabar com a função social da terra,
enfraquecer a luta pela reforma agrária e, principalmente, viabilizar uma grande quantidade de terras públicas para o mercado fundiário. Estes pontos não surgiram a partir de consultas às populações que seriam afetadas pelo seu conteúdo. Entes como a Defensoria Pública e especialistas da área também não participaram da sua montagem. A MP foi redigida no escondido dos gabinetes palacianos. Hoje, o Palácio do Planalto transformou-se numa espécie de subsede da bancada ruralista.



Infelizmente esta MP não é a única na lista de trocas de favores. Aguardam ainda na fila o enfraquecimento das regras de licenciamento ambiental, a eliminação ou diminuição de unidades de conservação e o ataque aos direitos indígenas e seus territórios. Projetos que beneficiam a concentração fundiária e a grilagem de terras têm lugar de destaque nos interesses ruralistas. De forma geral, eles patrocinam o avanço sobre estoques de terras públicas e de alto valor de conservação para que depois possam ser disponibilizadas ao mercado fundiário, a ser turbinado por um projeto já anunciado pela Casa Civil que prevê a liberação da venda de terras para estrangeiros.
O plano é entregar o patrimônio dos brasileiros não apenas aos grileiros nacionais, mas também aos investidores internacionais de terras
 
 
O plano é entregar o patrimônio dos brasileiros não apenas aos grileiros nacionais, mas também aos investidores internacionais de terras, o que colocaria em risco não apenas nossa soberania alimentar, mas também territorial.


IHU On-Line – Quem será beneficiado com a MP 759?
Márcio Astrini – Ela foi escrita para atender aos interesses dos grileiros de terras, dos donos de grandes condomínios irregulares e das máfias do desmatamento da Amazônia.


No discurso, ministros do governo disseram que ela servia para legalizar as terras daqueles que há décadas chegaram à Amazônia trazidos pela mão do Estado, mas que nunca receberam o título da terra que lhes fora prometido. Seria justo. Mas o objetivo por trás da MP é outro, em uma estratégia que já foi usada em diversas outras oportunidades. Eles usam a imagem daqueles que realmente têm direitos a serem reconhecidos em lei, daqueles socialmente mais vulneráveis e que necessitam da ajuda do Estado, para entregar facilidades a quem apostou na impunidade e no crime. Usam a justiça dos que merecem para presentear quem apostou na ilegalidade de forma deliberada. Apresentam a lei sob a foto do agricultor familiar, mas guardam em seu conteúdo a anistia aos grandes proprietários de terra.



Um exemplo claro disto é que, no ato que marcou a sanção da MP, o discurso se referia a legalizar terras de quem chegou à região da Amazônia nos anos 70 e 80, mas a verdade é outra. Primeiro, porque a legislação atual já prevê a possibilidade desta titulação para quem ocupou propriedades até o ano de 2004, portanto, não haveria necessidade de outra lei. O que ocorre mesmo é que a MP estende o prazo dessa legalização do ano de 2004 para 2011, uma espécie de anistia, e ainda aumenta o tamanho das propriedades a serem beneficiadas, passando de 1.500 para até 2.500 hectares.


Portanto, não estamos falando de quem ocupou de boa-fé a região décadas atrás, e nem mesmo de pequenos agricultores ou de propriedades familiares, mas sim de quem, há 11 anos, vem ocupando grandes áreas públicas, mesmo sabendo que era ilegal. Esses apostaram na impunidade, e agora a receberam do governo.



Curioso também é a presença do ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, no ato de sanção da MP. Logo ele, que é sócio de fazendas no Mato Grosso e está na mira do Ministério Público de lá, que o acusa de desmatamento ilegal e invasão a uma unidade de conservação do estado. Um bom exemplo de interesse neste tipo de mudança da lei.



IHU On-Line – Que legislações serão alteradas por conta da MP 759 e, de modo geral, o que muda em relação à regularização fundiária urbana e rural com a aprovação da medida?
Márcio Astrini – As alterações são diversas e abrangem tanto a regularização fundiária no campo quanto nas cidades. Nesta última, facilita em muito a vida das ocupações irregulares de alto padrão, anistiando o mercado imobiliário e especuladores urbanos. O programa Terra Legal, com as mudanças de prazos e com a elevação do tamanho das propriedades a serem beneficiadas, é outra alteração, além de estender essa legislação, que antes se limitava apenas à Amazônia, para todo o país.



A MP também altera a lei que incide sobre as regras para a reforma agrária, em um claro movimento de enfraquecimento dos movimentos sociais que atuam no campo.



A alteração nas regras para a aquisição de terras públicas para grandes lotes, possibilitando que estes sejam titulados mediante pagamentos com a incidência de descontos generosos a quem realizou tais ocupações, é de extrema preocupação. Institui-se um procedimento onde é mais barato invadir terra pública, esperar pela anistia e pagar valores irrisórios por elas do que se submeter a rito legal. É um incentivo ao crime, um incentivo moral e financeiro. Um parecer do TCU de 2014 já indicava que tal prática é contrária à legislação em vigor, fato que parece não causar grandes constrangimentos no governo.



As implicações desta MP para o conceito de uso social da terra são enormes e negativas



É importante dizer que este dispositivo tem como público-alvo prioritariamente as grandes propriedades, aquelas na nova faixa que a lei permite, entre 1.500 e 2.500 hectares. Assim, o que o governo está fazendo na prática é vender terra pública, patrimônio de todos os brasileiros, por valores irrisórios, sem contrapartida, sem nenhum quesito social.



IHU On-Line – Muitos especialistas afirmam que a MP 759 acabará com o conceito de uso social da terra. Quais as implicações da MP nesse aspecto?
Márcio Astrini – O conceito de função social da terra está intimamente ligado às ações de regularização fundiária e de destinação de terras, principalmente as públicas. Assim, as implicações desta MP para o conceito de uso social da terra são enormes e negativas.


Ela retira das mãos do Estado ativos fundiários que deveriam ser destinados ao uso social e escancara um mundo de possibilidades para que esses ativos sejam privatizados, ou ainda para que passem para as mãos de quem se apropriou dessas terras de forma criminosa e em grandes proporções. A MP promove a liquidação de terras públicas a qualquer custo.


A MP ainda enfraquece os mecanismos de reforma agrária e das organizações sociais que nela atuam. Um exemplo é o dispositivo que autoriza que municípios passem a organizar a destinação de terras para assentamentos, deixando esse mecanismo muito mais suscetível às pressões políticas locais e ao uso de outros objetivos que não o atendimento das famílias que de fato deveriam ser assistidas por esta política.


De forma geral, a MP 759 reforça o conceito de competitividade e ocupação econômica de áreas públicas sem justificativa social. Todo o seu conteúdo é um ataque ao conceito de uso social da terra.



IHU On-Line – Por que a aprovação da MP 759 favorece a especulação do mercado de terras e a venda de terras a estrangeiros?
Márcio Astrini – A MP oferta uma quantidade enorme de terras públicas ao mercado de especulação fundiária. Eram áreas antes de posse do Estado que agora serão oficialmente tituladas e passíveis de serem negociadas.



Alguns estudos dão conta de que, em menos de dois anos, o governo Temer poderia emitir cerca de quatro vezes mais títulos da reforma agrária do que todos os títulos emitidos nos governos Lula e Fernando Henrique juntos. Esses números ainda são preliminares, há quem aposte que serão ainda maiores. O fato é que esses títulos estariam disponíveis para uso no mercado fundiário, ofertando assim um grande contingente de terras ao mercado. Um ponto crucial nisto tudo é que este movimento ocorre no mesmo momento em que vivemos uma grande crise econômica e quando o governo promove corte nos já mínimos investimentos em políticas de assistência aos pequenos agricultores e à agricultura familiar. A PEC do teto de gastos [Proposta de Emenda à Constituição Nº 55, que limita por 20 anos os gastos públicos] é um exemplo mais vivo disto. Combinados, tais fatores são um impulso extra para o aumento da oferta de terras.



Muitos fundos de pensão e grupos de investimentos internacionais têm como alvo arrebatar terras baratas em países em desenvolvimento como o Brasil. Recentemente, grandes investimentos neste sentido foram realizados em países do continente africano. A MP 759, associada à já anunciada pretensão do governo federal em liberar a venda de terras do país para estrangeiros, seria o passo final para a atração deste mercado internacional.



IHU On-Line – Quais são as implicações da MP 759 para a área da Amazônia Legal?
Márcio Astrini – Na Amazônia, a violência, o desmatamento, a grilagem de terras e a omissão do Estado são irmãs, caminham juntas e muitas vezes ocorrem no mesmo espaço, tornando vítimas não apenas a floresta, mas principalmente as pessoas que lá habitam, principalmente as mais pobres. Na base de todos esses problemas está a disputa pela terra. A ação de grupos organizados que se aproveitam das brechas da lei para assaltarem as terras públicas é algo frequente. E o que a MP faz neste cenário? Ela reforça exatamente a ação daqueles que promovem esta situação.


A MP é um recado claro vindo de Brasília de que o crime compensa
 
 
A MP é um recado claro vindo de Brasília de que o crime compensa. Quem pratica a ilegalidade de forma deliberada olha para esta medida provisória e pensa: “Se houve anistia ao crime vinda do próprio presidente, se esta anistia foi prorrogada em 11 anos, se a área a ser anistiada foi aumentada, por que devo parar de grilar terras agora? Por que não apostar em uma nova anistia, em uma nova mudança de prazos e de tamanho de propriedade?”.


A MP não trouxe nenhum benefício a quem cumpriu a lei. Ao contrário, ela beneficiou quem não a cumpriu. Este é o exemplo que foi passado. Esta MP irá impulsionar o desmatamento, a grilagem e a disputa violenta por terras na Amazônia.


(EcoDebate, 18/07/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.



[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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