terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Stress hídrico, artigo de Roberto Naime

Stress hídrico, artigo de Roberto Naime


reservatório seco.
Reservatório seco. Foto de arquivo

[EcoDebate] “Stress hídrico” ou Estresse hídrico é o nome dado a uma situação em que a procura de recursos hídricos por habitante é maior que a capacidade de oferta ou de disponibilidade de recurso natural.

É também quando uma pessoa tem menos de 1.000 m³ de água. Ou seja, quando não há água suficiente para abastecer a população, isto é, quando não existe água suficiente para satisfazer as necessidades de cada um.

Hoje a distribuição da água doce no mundo é muito desigual, e vários países enfrentam sérios problemas com a carência de água potável

No caso específico das plantas, ocorre quando não existe água suficiente para as plantas absorverem de modo a substituir a perda de água por transpiração. Para períodos longos de stress hídrico, a planta pode parar de crescer e eventualmente morrer.

Mesmo repleto de rios, mares e oceanos, o planeta tem disponível apenas cerca de 2,5% a 3% de água doce que é a água propícia para o consumo dos seres humanos.

Estes percentuais até seriam suficientes para abastecer toda a população global, mas o problema é que a água doce é um recurso natural que não se distribui igualmente e boa parte é de difícil acesso, localizada em rios, lagos, geleiras e aquíferos, estes últimos são águas armazenadas em camadas de rochas sedimentares psamíticas.

Abundante em alguns países, escasso em outros, é usado intensamente pela agricultura, indústria e em atividades domésticas, de forma cada vez mais insustentável.

Além das razões acima, ainda se pode acrescentar os desequilíbrios ambientais como poluição dos rios, seca, enfraquecimento dos lençóis freáticos e outros.

Quando a demanda por água de um número de habitantes e o consumo médio por habitante supera a oferta, ou seja, a quantidade e a capacidade de distribuição de água existente, uma determinada cidade ou região, está caracterizada uma situação de estresse hídrico.

A falta de acesso à água potável deixa os países mais pobres ou marcados por histórico de conflitos militares, instabilidades políticas e sociais, como é caso dos países do Oriente Médio e África, em grave estado de vulnerabilidade.

O estresse hídrico pode limitar o crescimento econômico, restringindo atividades empresariais e agrícolas. E também afeta a capacidade de produzir alimentos suficientes para alimentar as populações.

Em breve, se estima que o planeta atingirá a marca de 9 bilhões de pessoas. Se apenas um terço deste total adotar padrões de consumo de uma pessoa da classe média, será necessário produzir 50% a mais de alimentos, a oferta de energia terá de crescer 45% e o consumo de água aumentará 30%.

A pressão sobre os recursos naturais do planeta se tornará insustentável. E, nada sendo feito para mudar padrões de consumo, dois terços da população global poderão sofrer com escassez de água doce até 2025, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU).

O Brasil, rico neste recurso natural, detendo cerca de 12% do total das reservas de águas doces do planeta, mesmo assim já sente os reflexos da escassez. Aqui as condições de acesso não são equânimes.

A região hidrográfica Amazônica, na região Norte e Centro-Oeste, equivale a 45% do território nacional e detém 81% da disponibilidade hídrica. As regiões litorâneas (Sul, Sudeste e Nordeste), que respondem por apenas 3% da oferta nacional, abrigam 45% da população do país.

Em outras palavras, onde se concentram cada vez mais brasileiros, há cada vez menos água. A fórmula exata para o estresse hídrico que hoje se materializa em São Paulo e na região sudeste.
De acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), dos 29 maiores aglomerados urbanos do país, 16 precisam buscar de novas fontes de água para garantir o abastecimento.

O problema também tem um aspecto social. O consumo entre regiões, e até entre municípios, é extremamente desigual. Enquanto um cidadão do Rio de Janeiro usa 236 litros de água por dia, o consumo no estado de Alagoas é de 91 litros “per capita”.

O consumo de água na Região Metropolitana de São Paulo é 4,3 vezes maior do que a água que há disponível para todo o estado.

O estresse hídrico não se limita à escassez de água. Saneamento também é uma causa. O consumo humano exige que a água seja limpa e tratada, mas o crescimento das cidades destrói fontes de água, os chamados mananciais.

As águas superficiais, que não penetram no subsolo, correndo ao longo da superfície do terreno, e acabando por entrar nos lagos, rios ou ribeiros, são poluídas pelo lançamento de esgoto, efluentes industriais e até mesmo venenos usados em larga escala na agricultura.

No Brasil, 73% dos municípios são abastecidos com águas superficiais, sujeitas a todo tipo de poluentes.

A concentração urbana tem sido sinônimo de degradação ambiental. Até mesmo as águas profundas são atingidas pela degradação e da exploração em excesso.

A falta de saneamento adequado na região Nordeste, por exemplo, fez com que o esgoto alcançasse poços. Agrava a situação, uma política pública de saneamento básico que tem se mostrado irregular e deficiente, em todas as esferas da administração pública, tanto federal, quanto estadual ou municipal.

O estresse hídrico é, portanto, maior nas regiões que concentram maior população, não necessariamente nas mais secas. Hoje, as áreas urbanas consomem 60% da água doce do planeta e, se confirmadas as projeções da ONU, até 2050, 70% da população mundial estará concentrada em grandes cidades, causando maior pressão a um sistema que já agora, está à beira da insustentabilidade, conforme todos os episódios demonstram.

Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.
Sugestão de leitura: Civilização Instantânea ou Felicidade Efervescente numa Gôndola ou na Tela de um Tablet [EBook Kindle], por Roberto Naime, na Amazon.

Referência:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Estresse_h%C3%ADdrico
http://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/27678-o-que-e-estresse-hidrico/

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 08/01/2019
"Stress hídrico, artigo de Roberto Naime," in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 8/01/2019, https://www.ecodebate.com.br/2019/01/08/stress-hidrico-artigo-de-roberto-naime/.

[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à EcoDebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]

Dos barcos-casa para as casas-barco

Por Clarissa Beretz, jornalista – 

 
 
Em tempos de mudanças climáticas, holandeses constroem o maior bairro flutuante planejado e autossustentável da Europa

Só podia ser coisa de holandês. Os habitantes do país que há quatro séculos aumentou seu território (1/4 dele abaixo do nível do mar) aterrando o que era água através de um sofisticado sistema de drenagem por moinhos, diques, represas e canais, e que até hoje monitora o maciço volume hídrico que entra e sai de sua extensão territorial, seguem usando a tecnologia para se adaptar e viver com o aumento do nível do mar por conta das mudanças climáticas.

Todo holandês, tem, portanto, uma relação íntima com a água. Só Amsterdam abriga hoje cerca de 2.500 barcos adaptados como moradia pelos canais da cidade. E o número só cresce, sobretudo com o preço dos aluguéis em terra firme cada vez mais caros e disputados.
Dentro deste contexto, há cerca de dez anos um grupo de amigos se uniu para criar a maior vila flutuante, comunitária e autossustentável da Europa, a Schoonschip.  O projeto prevê 46 casas estruturadas – com sala, quartos, cozinha, banheiros e espaço comunitário – em um braço do Rio IJ, que serão habitadas por  mais de 100 pessoas no bairro de Buiksloterham, uma área da indústria naval decadente nos anos 80 cujos galpões hoje abrigam  ateliês de artistas, festivais e exposições.

A inspiração veio de uma das primeiras casas flutuantes autossuficientes construídas no estaleiro NDSM, em Amsterdam-Noord, a geWoonboot. Aberta à visitação, a casa-modelo foi criada justamente para testar um modo de vida sustentável no ambiente aquático.

Os  empreendedores – um grupo composto por  arquitetos, artistas, fotógrafos e ambientalistas – trabalharam  juntos para criar uma  estrutura autossuficiente que contemplasse sistemas de filtro e reaproveitamento de água, biodigestores, painéis fotovoltaicos, telhados verdes e tudo o que lhes garantisse um  modo de vida legitimamente sustentável.

A arquiteta Marjolein Smeele desenhou a casa onde pretende morar com o marido e os dois filhos. “Viver causando o menor impacto possível ao mundo, é um sonho. Como arquiteta, uma obrigação. Quero mostrar aos meninos que ser sustentável é auto-evidente. Nós ainda temos que pensar sobre isso, espero que eles não o tenham”, explica.
Na Schoonschip, as casas são fixas em grandes pilares submersos, um mecanismo que acompanha o nível da água seja nos períodos de cheia ou  vazante do rio. E se alguém resolver “mudar de rio”, pode rebocar ou içar sua casa até outro lugar.

“Este protótipo urbano pode ser feito em qualquer lugar e também funciona para lazer ou hospedagem sustentável. Acreditamos em formas alternativas de se viver e trabalhar nas grandes cidades. Os conceitos que criamos são abertos e podem ser copiados por quem quiser”, diz Tjeerd Haccou, coordenador do Space&Matter, escritório responsável pelo projeto da área comunitária da Schoonschip.

Cinco protótipos-base foram criados para as casas, que vão de 100m2 a 200m2 e custam entre € 400 mil e € 800 mil. Um conjunto de regras também foi estabelecido para que os moradores possam definir os espaços internos junto ao arquiteto que escolheram para assinar a obra.

“Estamos supervisionando 20 arquitetos para garantir a segurança e a qualidade do projeto. Gostamos de experimentar esse tipo de processo, de design coletivo. Essa troca cria a verdadeira diversidade”, conta Haccou.

Parte da Solução
A sustentabilidade em todas as etapas da Schoonschip é garantida pela parceria com 28 empresas de consultoria em novas tecnologias, sustentabilidade, inovação e financeira, a começar pelo banco Triodos, tido como pioneiro no “setor bancário ético”, que concedeu uma linha de crédito para o financiamento da obra.

A energia elétrica e o aquecimento das casas serão provenientes de fontes 100% renováveis: painéis fotovoltaicos, pás eólicas construídas pelos próprios moradores e biodigestores caseiros – que transformam restos de comida e poda em biogás.
A preocupação socioambiental também está na certificação dos materiais utilizados na construção, na redução de resíduos, e na utilização de métodos de baixo impacto ambiental. Recursos bastante simples também fazem parte do processo, como a introdução de juta e palha no isolamento natural entre as paredes de madeira, que se encaixam sem cola ou adesivos. As primeiras sete casas ficaram prontas no início de dezembro e estão sendo montadas no local.


“Precisamos mudar nosso modo de vida para diminuir as mudanças climáticas. É a maior responsabilidade de nosso tempo: fazer parte da solução”, reafirma Thomas Sykora, fotógrafo e empreendedor sustentável, um dos mentores da comunidade Schoonschip.

Educação ambiental prepara a sociedade para os dilemas do desenvolvimento

Dal Marcondes 19/12/2018


por Bere Adams, da revista Educação Ambiental em Ação – 
 
Entrevista com Dal Marcondes para a 66ª edição da Revista Virtual Educação Ambiental em Ação
Apresentação: O entrevistado desta edição é Dal Marcondes, um dos mais importantes jornalistas do país que se dedicam as questões ambientais. Ele tem especialização em economia e em sustentabilidade com foco em economia e negócios. É, também, especialista em Ciência Ambiental pela USP.

Atualmente cursa Mestrado Profissional em Jornalismo Digital e Modelos de Negócios em Jornalismo Pós Industrial e participa ativamente de diversas atividades de Militância em Sustentabilidade e Jornalismo. Além disto, é Presidente da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental e Vice-Presidente da Associação Profissão Jornalista. É, ainda, Presidente do Instituto Envolverde e diretor executivo da DAL MARCONDES Consultoria & Comunicação. Será que teremos algo a aprender com ele?
Jornalista Dal Marcondes
Bere Adams – Prezado Dal Marcondes, é uma grande honra tê-lo como o nosso entrevistado. A sua contribuição será ímpar para todos, e certamente poderemos aprender muito a partir da sua vasta experiência. Muito obrigada por aceitar o nosso convite. Normalmente começo as minhas entrevistas perguntado: como o tema meio ambiente entrou em sua vida? Algo aconteceu que despertou o seu interesse? Conta pra gente como foi o seu ingresso nesta temática tão importante e essencial que é meio ambiente.

Dal Marcondes – Minha relação com o meio ambiente é uma paixão antiga. Quando eu era criança meus pais saíram de São Paulo e fomos morar em uma cidade no interior de Goiás. La aprendi a nadar em rio, andar a cavalo, comer fruta no pé. Depois, em 1974 fui para a Amazônia e me embrenhei na floresta, no Pará e no Maranhão. Até então, era uma relação idílica. Quando voltei para São Paulo fui estudar jornalismo, me tornei repórter e editor de economia. Foi quando compreendi que as questões ambientais são essencialmente dilemas econômicos. Todos os problemas socioambientais que enfrentamos no dia a dia têm origem em decisões de caráter estritamente econômico.

Bere Adams – Qual foi o maior desafio de sua jornada pelo jornalismo ambiental?

Dal Marcondes – Montei a Envolverde em 1995 e o site entrou no ar em 8 de janeiro de 1998. Quando contei a alguns amigos que iria largar a grande imprensa para me dedicar ao jornalismo ambiental foi um deboche só. Um amigo me disse que eu estava jogando a minha carreira de jornalista econômico bem sucedido no lixo. Hoje eu acho que tomei a decisão certa, não pelo dinheiro, acho que estaria ganhando mais na grande mídia, mas pela qualidade da minha vida.

Bere Adams – Qual é, para você, a importância da informação ambiental para lidarmos com os desafios ambientais que se apresentam?

Dal Marcondes – Informação, jornalismo independente e de qualidade são fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade, de um país e para a qualidade de vida no planeta. O cuidado que se deve ter é não confundir ser um jornalista ambiental com ser um militante ambiental. O jornalista trabalha com dados, fatos, informações e pluralismo de opiniões. O militante trabalha com causa.

Bere Adams – Temos inúmeros problemas ambientais e não seria possível abordarmos a cada um. Por esta razão, destaco um deles que é de suma importância e se trata de um dos grandes desafios que enfrentamos que é o da falta de saneamento básico, que potencializa a proliferação de doenças, a desigualdade social, a poluição… Como você percebe esta lacuna e como a mídia lida com este assunto?

Dal Marcondes – Nenhum país do mundo desenvolvido chegou lá sem antes resolver as demandas de sua população em água potável e saneamento. Esse é o principal problema a ser abordado pela sociedade brasileira nos próximos anos e os números são assustadores. Menos de 50% do esgoto gerado é coletado, e menos de 25% é tratado. Nossos ecossistemas recebem seis piscinas olímpicas repletas de merda todos os dias. A mídia dá uma atenção marginal a esse assunto. Não contabiliza as milhares de crianças doentes nas filas de postos de saúde sem nenhuma estrutura e não dá ouvido às pessoas que carregam esse subdesenvolvimento nas costas. Apenas quando sai uma nova estatística os indignados de plantão se manifestam.

O apartheid brasileiro se define por quem tem e quem não tem água e esgoto. No mundo dos políticos esgoto é “obra enterrada”, não dá voto. Uma mentira que escorrega no tempo e serve de bordão para desviar o dinheiro para bonitezas que chamam a atenção de eleitores com torneira e chuveiro.
Diálogos Capitais, com a participação da Senadora Marina Silva, no teatro TUCA, PUC
Bere Adams – Fale-nos um pouco sobre como as questões ambientais devem ser enfrentadas.

Dal Marcondes – As questões ambientais devem ser encaradas e tratadas em toda a sua complexidade. Não há simplicidade nas relações ambientais. Os impactos humanos sobre a natureza devem ser continuamente estudados e mitigados e o equilíbrio das ações deve se dar pela resultante da aplicação de ciência e tecnologia sobre serviços ecossistêmicos de forma a garantir o benefício para a sociedade sem impactar negativamente biomas e ecossistemas. Não é simples, mas já temos a ciência e a civilidade necessária. O papel do jornalista nesse cenário é tornar transparente para a sociedade os critérios de cada decisão e seus impactos e resultados.

Bere Adams – Para você, a Educação Ambiental se relaciona com Informação Ambiental?

Dal Marcondes – Sempre! A educação ambiental oferece ao cidadão os instrumentos necessários para entender e agir em um contexto de complexidade e, principalmente, dá os instrumentos necessários para decodificar as informações ambientais para a tomada de decisão. Há que se ter em conta que o analfabeto ambiental passará a vida tomando decisões baseadas em desconhecimento, em incapacidade de cognição com o ambiente. As pessoas que têm acesso a uma educação ambiental de qualidade – e isso á mais do que reciclar lixo ou plantar uma florzinha – terão uma visão de mundo mais integrada e capaz de decodificar a complexidade ambiental em suas decisões pessoais e profissionais.

Bere Adams – Destaque qual projeto você realizou e que considera mais significativo.

Dal Marcondes – Essa é uma pergunta delicada para alguém como eu que tem mais de 40 anos como jornalista. Mas, acho que minha contribuição para o jornalismo ambiental, a criação da Envolverde e o fortalecimento da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental estão entre as coisas que considero um legado profissional. Porém, ainda há muito a ser feito. Neste momento estou estudando modelagem de negócios para o jornalismo digital, porque acredito que nos próximos anos o jornalismo em ecossistema digital terá um papel estrutural para a sociedade. Além disso, as novas plataformas digitais e redes sociais precisam da atuação de jornalistas bem formados e remunerados por projetos capazes de se sustentar. Essa é a parte da minha militância pelo jornalismo.

Bere Adams – Você está a frente da Envolverde, uma das revistas de jornalismo e sustentabilidade mais importantes do Brasil. Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória com este informativo tão relevante.

Dal Marcondes – A Envolverde entrou no ar em 8 de janeiro de 1998, há 20 anos, portanto. Um estudo de uma universidade norte-americana identificou a Envolverde como o mais antigo projeto de jornalismo nativo digital em operação no Brasil. São duas décadas de invenções, inovações e reinvenções em todos os sentidos. Tecnologias que mudam com o passar do tempo, formatos de entrega das notícias, pautas, enfim, não há muita rotina. O importante é o esforço cotidiano para manter a relevância dos temas e pautas de nossas reportagens.

Bere Adams – Qual é a contribuição da Envolverde para o desenvolvimento de atividades de Educação Ambiental?
Dal Marcondes – Acho que a informação que oferecemos cotidianamente tem ajudado muitos educadores ambientais e formular suas ações, estratégias e aulas. E queremos fazer mais, oferecer instrumentos mais adequados para o uso em turmas das mais diversas idades e interesses. Vamos ver se avançamos mais nisso.

Bere Adams – Com tanto tempo trabalhando em veículos de comunicação ambientais, quais avanços você poderia destacar, de forma geral, na área ambiental?

Dal Marcondes – Hoje há muito mais informação sobre temas ambientais do que a 20 anos, quando comecei nessa área. Há mais profissionais de jornalismo que se interessam em obter uma melhor qualificação para tratar do tema meio ambiente, com cursos de especialização e mestrado em ciência ambiental, gestão ambiental, economia ambiental etc. Mesmo os grandes veículos também dão mais atenção ao assunto, a pauta ambiental deixou de ser uma pauta esporádica e tornou-se um assunto de economia. Há profissionais trabalhando em organizações sociais que se especializaram em temas específicos, como clima, água, poluição, Amazônia, Oceanos e muitos outros. Em suma, há mais gente olhando para o meio ambiente.

Bere Adams – Estamos em tempo de mudanças de governo. Resumidamente, quais são as suas expectativas sobre como será tratada a Política Ambiental?

Dal Marcondes – Esse é um tema de muita apreensão. A perspectiva não é boa e por isso os jornalistas e os profissionais da área ambiental em geral devem estar atentos para avaliar e trabalhar sobre a realidade com a velocidade dos acontecimentos. Não dá para pré-julgar, mas também não há um horizonte de otimismo.

Bere – Para finalizar, deixa uma frase, uma ideia que possa servir de inspiração para nossas leitoras e nossos leitores.

Dal Marcondes – Temos grandes desafios em termos de sobrevivência, principalmente neste século. Este será um período decisivo para a história humana, quando temos ciência, tecnologias e conhecimentos para tornar o futuro um bom lugar para se viver. Nossas decisões cotidianas nos dirão como será esse futuro e como irão viver nossos netos e bisnetos.

A humanidade é uma espécie ainda na infância, temos menos de 5 mil anos do início da civilização, 2 mil anos desde o surgimento do cristianismo, pouco mais de 500 anos da invenção da prensa, 200 anos da revolução industrial, pouco mais de 100 anos do automóvel e do avião, 70 anos da televisão, 15 anos dos smartphones… Há espécies na terra que estão aqui há milhões de anos, temos ainda muito a aprender.

Bere – Prezado Dal Marcondes, nós da equipe da revista, agradecemos pela oportunidade de conhecer melhor o seu trabalho, a sua jornada e as peculiaridades que envolvem o jornalismo ambiental. Fica evidente a importância da informação como referencial fundamental para o desenvolvimento de ações de Educação Ambiental que promovam as mudanças de atitudes para um futuro mais sustentável, muito obrigada! Parabéns e desejamos-lhe cada vez mais sucesso! (#Envolverde)

Época – "Os índios não são coitadinhos", diz antropólogo / Entrevista / Carlos Fausto

Época – "Os índios não são coitadinhos", diz antropólogo / Entrevista / Carlos Fausto


Carlos Fausto diz que o que está em jogo é a propriedade da terra, uma disputa que vem desde o Brasil colonial

Cleide Carvalho
06/01/2019

Poucos brasileiros foram alvo de tantos discursos e mudanças no novo governo quanto os indígenas. O presidente Jair Bolsonaro disse que mantê-los em terras demarcadas, como prevê a Constituição, é "tratá-los como animais em zoológicos". Transferiu para o Ministério da Agricultura a tarefa de demarcar terras indígenas e o secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Nabhan Garcia, ex-líder ruralista, anunciou que prepara uma revisão de demarcações de terras indígenas e titulações de áreas quilombolas. A Fundação Nacional do Índio (Funai) ficou com Damares Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pastora evangélica, para quem o novo presidente do órgão deve "amar desesperadamente" os índios. Para o antropólogo Carlos Fausto, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, o que está em jogo é a propriedade da terra, em disputa no Brasil desde os tempos de colônia. Para ele, os índios não são coitadinhos. São hoje organizados e vários projetos florescem em terras indígenas. "O que se quer é que os indígenas virem peões, mão de obra barata", afirma.

O que significa para os povos indígenas a transferência da demarcação de terras para o Ministério da Agricultura?

O desmonte do espírito do artigo 231 da Constituição de 1988 (que garante aos índios as terras tradicionalmente ocupadas). Em grande parte, o novo governo visa a ir contra aquilo que foi configurado pelos constituintes. No fim do governo militar, houve um pacto da Nação e um dos acordos são a existência de regimes diferenciados de propriedade, os regimes coletivos de uso da terra. Estamos falando de terras indígenas, quilombolas, áreas públicas de conservação e florestas nacionais. O pacto da Constituição retirou um grande estoque de terras da União que poderia ser apropriado privadamente. Essa questão me parece ser um dos motores dessa mudança. Num certo sentido, ainda estamos contando uma história do latifúndio, muito transformada, muito atual, mas a mesma.

Por que os agricultores teriam de disputar áreas indígenas para crescer, e não outras áreas disponíveis?

O Brasil imagina-se hoje como tendo uma agricultura muito moderna e uma agroindústria que não carrega em si o sistema do plantation colonial (produção em latifúndios de monoculturas voltadas à exportação e com uso de escravos). Vejo uma continuidade histórica nesse processo. A disputa pela terra é uma disputa crucial no Brasil. A Constituição propôs uma regulação para uso diferente da apropriação e isso provocou, ao longo de todos esses anos, o espírito de desfazer a Constituição de 1988. Essa mudança é o capítulo mais evidente.

Quais foram os episódios anteriores?

A disputa sempre esteve no jogo. Quando não ocorreu do ponto de vista federal, ocorreu nos estados. No dia a dia, a exploração das terras indígenas continuou, com exploração de madeira, garimpos, entrada crescente de pessoas e o avanço das grandes fazendas sobre as terras indígenas, com sua exploração por grandes grupos.

Se sempre existiu, o que muda agora?

O perigo agora, a irresponsabilidade, é que o governo federal deixou de ter papel de moderador nessa disputa. O governo assume um lado, se coloca na posição de campeão de um dos lados, de que vai fazer o que não foi feito no passado. Quando um presidente escolhe um lado de um conflito histórico, ele produz um efeito monumental e perigoso de acirramento de violência.

Quais medidas podem ser mais perigosas?

Não é só uma questão de medidas, mas da retórica de campanha que continua presente nesses primeiros dias de governo. O efeito que as palavras emanadas de Brasília têm sobre os conflitos locais é tremendo. As pessoas não se dão conta de que, quando um presidente fala, significa lá na ponta “podemos invadir”, “podemos matar."

Como os indígenas estão se sentindo? Como podem agir?

Há uma variação imensa de sociedades indígenas, não uma só. Em geral o sentimento é de medo, de raiva, mas existem hoje organizações indígenas bem articuladas e ponderadas. Já houve carta de posicionamento da  Associação dos Povos Indígenas do Brasil (na qual os índios protestam e dizem que não podem ser tratados como seres inferiores). Cabe à Procuradoria Geral da República (PGR) defendê-los e esperamos que as instituições funcionem adequadamente. É uma pena que o Supremo Tribunal Federal, que tem função primordial, tenha queimado seu capital de autoridade moral nos últimos anos, com decisões monocráticas e bate boca público pela tevê.

A Procuradoria Geral da República ainda não se manifestou.

Por enquanto, o que há são decisões de governo, não vejo possibilidade de questionamento legal. A PGR deverá se manifestar no momento em que for levada a fazê-lo. Há até agora um desmonte do indigenismo oficial. O coração pulsante da Funai é a regularização fundiária. Ao retirar essa função dela, a instituição se torna fragilizada.

A atuação da Funai é questionada, os territórios indígenas são invadidos e explorados.

Ruim com a Funai, pior sem ela. A Funai não é um órgão fantástico, mas é preciso lembrar que dentro da administração pública ela é um dos órgãos com menores recursos.

Mas há muitas comunidades indígenas vivendo na pobreza, dependentes de cesta básica do governo. Algumas sequer conseguem comercializar frutas que coletam.

Há um equívoco de base na relação da sociedade com as comunidades indígenas. A ideia de que são coitadinhos não é verdade hoje, de modo algum. Várias estão muito à frente da venda de frutas. Há projetos que dão muito certo, de sementes, de cinema. Temos cineastas indígenas premiados no Brasil e no exterior. O que se quer é que os indígenas virem peões, mão de obra barata. A ideia de que os índios estão isolados é uma falsidade absoluta. As terras indígenas têm seus projetos e eles começam a florescer. A Constituição garantiu aos índios o direito de organização social e jurídica e eles se organizaram.

Conheci áreas indígenas muito pobres, no Maranhão, por exemplo.

A pobreza existe não só em áreas indígenas. Os índios não estão em outro mundo, mas no mesmo em que está grande parte da população brasileira. Tem que olhar a estrutura regional e do entorno. O Maranhão tem os Índices de Desevolvimento Humano (IDH) mais baixos do Brasil. O fato de a família Sarney ser protagonista desde meados da década de 60, e José Sarney foi um dos presidentes, diz muito sobre o que está em jogo. Estamos falando de uma questão de estrutura e de distribuição de terras.

Mas por que querem justamente as terras indígenas?

É mais barato investir em terras novas do que investir pesado em intensificação da produção. É racionalidade econômica. Do ponto de vista social e político é desastroso, sem falar da questão ambiental. É um comportamento irracional da agroindústria. No Norte do Mato Grosso, a área da Bacia do Xingu está secando. As secas são cada vez maiores e a destruição dentro das terras indígenas é monumental. Dentro de alguns anos não vai ter água para o agronegócio. Estamos no último suspirar de uma visão que vai nos levar a uma catástrofe ambiental. Não estamos mais falando só dos índios, mas de todos nós.

Parte do agronegócio refuta a tese do aquecimento global, diz que ele não existe.

Eu, como cientista, não tenho dúvida nenhuma de que ele ocorre. Estamos diante de uma cortina de fumaça e os indígenas estão servindo de espantalho. Este é um processo que tem a ver com o desmonte da Constituição de 1988. Me pergunto se o STF será conivente com isso. O velho Aureliano Chaves (1929/2003, foi vice presidente do general João Baptista de Figueiredo) dizia que a política é como estar um dia no vale, outro na cumieira. Mas vários grupos sociais podem pagar um preço alto demais por isso.

O ritmo de demarcação de terras indígenas diminuiu ainda no governo do PT.

A demarcação veio desde o governo Collor. O ministro da Justiça da época, Célio Borja, teve papel importante, cumprindo a Constituição, e começou a homologar as grandes áreas indígenas. Fernando Henrique Cardoso deu continuidade à demarcação e fez também a reforma agrária. No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em menor grau, o processo continuou. A ex-presidente Dilma Rousseff estancou as demarcações. Claramente, ela não era simpática à causa. O fato é que, de 1988 a 2010, houve um processo contínuo de demarcação, sem grande interferência dos níveis mais altos da política, à exceção da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Durante todos esses anos, houve conciliação do desenvolvimento agrícola com a criação de áreas de conservação e terras indígenas. Não é simples a decisão na cadeira de presidente. Mas Collor, Fernando Henrique e Lula fizeram o que prega a Constituição.

É possível rever a TI Raposa Serra do Sol?

Só rasgando a Constituição. Só fora do sistema jurídico atual. Ali é outra cortina de fumaça, porque as terras indígenas são da União. Os indígenas têm apenas o usufruto delas. Não são donos da propriedade nem do subsolo, onde estão os minérios. O nióbio em Raposa Serra do Sol não tem importância econômica alguma. Temos a reserva de Araxá (MG) e há oito pedidos de exploração fora da Amazônia. O nióbio fora da terra indígena é suficiente para abastecer o mercado por 100 anos. O problema é que nenhum governo conseguiu regulamentar a exploração mineral, compatibilizando com a preservação ambiental.

O senhor é favorável à exploração mineral em terras indígenas?

É uma questão de regulamentar, não de impedir. As terras indígenas estão invadidas por garimpos ilegais e existem milhares de pedidos de concessão para exploração mineral na Amazônia. Muitos deles se sobrepõe. É uma bagunça. Uma regulamentação bem feita, discutida democraticamente e em função do interesse nacional é bem-vinda. Mas não pode ter o “por fora” , como assistimos nos últimos anos, beneficiando grupos econômicos que corrompem as decisões.

E o uso econômico das terras indígenas?

É muito estranho que em todos esses anos não tenha se chegado a qualquer regulamentação, tanto de exploração mineral quanto do uso econômico das terras indígenas. O que ocorre lá na ponta, todos os dias, é algo sem regulamentação. É bangue-bangue.

Qual a consequência dessa falta de regulamentação?

É a violência, um processo que explode com assassinatos de líderes comunitários e indígenas Brasil afora. É preciso pacificar de forma responsável e isso não se faz com discurso. O discurso mal feito pode resultar em mais violência.

Folha de S. Paulo – Funai esvaziada / Editorial

Folha de S. Paulo – Funai esvaziada / Editorial


Ministra nega hipótese de prejuízo para demarcações de terra, mas não é o que parece

5.jan.2019

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) tirou da Fundação Nacional do Índio (Funai) a missão de demarcar terras indígenas e a entregou para o Ministério da Agricultura. Caminha para cumprir, assim, a promessa de que não serão criadas novas áreas do tipo no país.

Assume a função esvaziada uma Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, entregue a Luiz Antonio Nabhan Garcia —mais conhecido pelo comando da União Democrática Ruralista (UDR), que não prima por defender o direito originário de indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, consagrado no artigo 231 da Constituição.

Em que pese a interpretação geral do ato administrativo, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), negou a hipótese de prejuízo para as demarcações. “Não vamos arrumar um problema que não existe. É simplesmente uma questão de organização.”

Não é o que parece. Estão em jogo 159 áreas em situação jurídica mais precária (44 apenas delimitadas e 115 em estudo). Elas teriam de passar ainda pelas etapas de declaração pelo Ministério da Justiça, de homologação por decreto presidencial e de registro em cartório como patrimônio da União.

São 436, segundo a Funai, as que já superaram todas as fases, perfazendo 12% do território nacional.

Há terra de sobra no Brasil para a expansão agropecuária, cujas safras, de resto, vêm crescendo mais à base de avanços na produtividade do que na conversão de áreas florestadas. Produtores rurais, entretanto, preferem o mínimo de regulamentação.

Seus representantes corporativos e parlamentares resistem também a medidas de combate ao desmatamento, peça-chave no compromisso de prevenção da mudança climática, e têm obtido sucessivos adiamentos da aplicação das normas do novo Código Florestal.

O governo Bolsonaro dá mostra de alinhamento a essa visão míope. Também transferiu, por medida provisória, o Serviço Florestal Brasileiro da pasta do Ambiente para a da Agricultura. Difícil imaginar que se trate apenas de mudanças administrativas —o conflito de interesses é claro, e um padrão de preferência vai se delineando.