terça-feira, 29 de maio de 2018

Sobre o consumismo e o uso abusivo de smartphones.


Resultado de imagen para smartphone uso excessivo imagensO Metrô estava cheio e as duas moças tagarelas não se importunavam com a audiência. E eu, que nunca perco a alma e a escuta de jornalista, prestei atenção e pesquei uma chance de refletir com vocês sobre consumismo e sobre o uso dos celulares. Vejam só:

– Cara, estou uma pilha de nervos. Você nem vai acreditar o que aconteceu.

– Não sei, mas pelo seu jeito...

– Meu filho, simplesmente, mexeu no meu celular de tal jeito que bloqueou!! Não posso ver nada nem mandar nada para ninguém. Um inferno! Até chorei hoje no trabalho por causa disso..

– Ah, se acontecesse comigo também eu ia me desesperar. Deus me livre! Mas você deixa o garoto pegar no celular?

– O que eu posso fazer? Ele também é viciado, que nem eu (risos)... Tem dois anos de idade, mas já sabe mexer em tudo. Só que às vezes dá ruim.

– E agora? O que você vai fazer?

– Vou descer numa estação antes da minha porque tem uma loja lá que talvez conserte. Se não consertar, vou me endividar outra vez e compro outro. Ah, sem celular é que eu não fico mesmo, já pensou?

Minha estação chegou antes, tive que abandonar a história. Mas não é muito difícil saber que o fim é mesmo aquele que a moça de aparência modesta, talvez pertencente à classe D, profetizou: mais dívidas, menos dinheiro sobrando no fim do mês de um parco salário. Em nome de quê?

Que pena que não pude conversar um pouco. Curiosidade de saber o que leva uma pessoa a ficar nervosa, a ponto de chorar, pela falta de um aparelho celular. Mas acho que já sei a resposta: vício, simples assim. Além de um consumismo extremo, às avessas, indiferente à crise econômica, ao desemprego, à falta de perspectiva. Quero deixar claro que isto não é um julgamento, e sim uma possibilidade de se pensar sobre a realidade.

Mas leio no “The Guardian” que tal vício já foi detectado até pelo Google, que prontamente se propôs a nos ajudar contra isso. Com o objetivo de melhorar nosso “bem-estar-digital”, o site está lançando uma série de recursos, entre eles um aplicativo que funcionará como uma espécie de painel, informando rapidamente como - e com que frequência – a pessoa usa o telefone.

“Ele permitirá que você defina limites de tempo por meio de um cronômetro de aplicativos e avise quando estiver usando por muito tempo”, explica o jornalista Matt Haig no artigo para o jornal britânico.

O jornalista se questiona até que ponto se pode apostar na eficácia de uma medida que usa mais tecnologia para combater o abuso da tecnologia. E completa:

“É irônico uma empresa que alimenta nosso vício em tecnologia nos dizer que ela é a chave para nos livrar dela. Isso funciona como um bom programa de marketing  e antecipa qualquer crítica futura à irresponsabilidade corporativa”.

De qualquer forma, prefiro também trazer a reflexão para a nossa medida de responsabilidade nisso. Não me parece razoável, embora tenha muito medo de julgar, que uma moça aparentemente de baixo poder aquisitivo se esforce tanto para obter algo que não vai ser definitivo para ajudá-la a respirar. Afinal, viver não é o propósito final? E sei que não se trata de um caso único, nem mesmo raro.

Uma pesquisa publicada há dois anos pelo Centro de Pesquisas Pew pode explicar bem a complexidade dessa era da interconexão à custa da tecnologia. Não é recente, mas vale a pena ser revisitada, porque colabora com a reflexão à qual estou me propondo.

O estudo, conduzido em 40 países, entrevistou 45.435 pessoas e concluiu que houve um aumento, considerado “notável” pelos pesquisadores, na porcentagem de pessoas em países emergentes que dizem estar conectadas e ter um smartphone.

“Em 2013, uma média de 45% de moradores de 21 países emergentes e em desenvolvimento relataram usar a internet pelo menos ocasionalmente, ou possuir um smartphone. Em 2015, esse número subiu para 54%, com grande parte desse aumento vindo de grandes economias emergentes, como Malásia, Brasil e China. Em comparação, uma média de 87% usam a Internet em 11 economias avançadas pesquisadas em 2015, incluindo EUA e Canadá, grandes nações da Europa Ocidental, países do Pacífico desenvolvidos (Austrália, Japão e Coréia do Sul) e Israel.”

Quando a pergunta feita era apenas sobre se a pessoa tinha ou não um smartphone, a diferença entre os países emergentes e os países ricos ficou na faixa de 31 pontos apenas.

“Os índices de propriedade de smartphones em países emergentes e em desenvolvimento estão aumentando extraordinariamente, passando de uma média de 21% em 2013 para 37% em 2015. E maiorias esmagadoras em quase todas as nações pesquisadas relatam possuir alguma forma de dispositivo móvel, mesmo que elas não sejam consideradas ‘smartphones’”, revelam os pesquisadores.

Quanto ao uso que fazem dos dispositivos, a conclusão é direta: “Usuários da Internet em países emergentes são usuários mais frequentes de redes sociais em comparação com os EUA e a Europa”. E os maiores seguidores de redes sociais estão no Oriente Médio (86%), na América Latina (82%) e na África (76%). Nos Estados Unidos este percentual é de 71% e em seis países europeus é de 65%.

O perfil daqueles que usam mais a internet é o de pessoas com mais escolaridade e de renda mais alta, tanto nos países desenvolvidos quanto nos pobres. A idade gira entre 18 e 34 anos.

Fico por aqui. Sem muitas chances de desenvolver o pensamento, lembro-me bem de observar, quando tive chance de viajar para outros países, diferenças  fundamentais nos usuários do Metrô. Há a maioria que lê livros e há a maioria que gruda os olhos em telas de smartphones. O que interessa para as empresas que produzem esses dispositivos, claro, é ver todo mundo usando. Mas, será mesmo que é progresso aquilo que trazem?

Greve dos caminhoneiros expõe o desperdício de alimentos

 Desperdício de alimentos no Ceasa (Foto: Amelia Gonzalez/G1)




O desperdício de alimentos se tornou pauta obrigatória durante esta greve (seria melhor dizer locaute?) dos caminhoneiros. Mesmo que tudo terminasse agora, mesmo que os caminhões passassem a circular livremente a partir do minuto seguinte a um acordo efetivo que deixasse as partes satisfeitas, assim mesmo haveria um grande, talvez incomensurável, montante de alimentos sendo jogados fora. 

Imaginem, por exemplo, um caminhão que está há quatro dias na estrada cheio de tomates. Ou de batatas, ou de chuchus, inhames... Esses ou quaisquer outros produtos que tenham sido retirados da terra e que estejam dentro de um compartimento fechado, mercê de temperaturas não naturais. É claro que não sairão do cativeiro direto para a gôndola dos supermercados ou feiras-livres. Estarão passados, talvez com fungos, amassados, ou seja, nada convidativos para consumo. 

Isso, para não falar do pior: cargas vivas. Animais que estão sendo transportados, segundo uma das muitas reportagens que tenho acompanhado sobre a greve, estão há dias sem alimentação adequada, o que é mais do que desperdício, um crime que só a humanidade tem coragem de cometer contra um ser vivo. 

Preciso acreditar que muitos dos transportadores já tomaram providências com relação a isso. Mas o gesto de caminhoneiros que ontem jogaram 500 mil litros de leite em parte da pista e acostamento da rodovia MG-050, em Passos, Minas Gerais, é emblemático. Será este o fim de outras toneladas de alimentos? Terão, ao menos, já aberto as caçambas e distribuído a quem precisa? Pode ser que não. O desperdício de alimentos é algo que nem sempre é considerado uma grave falha, como deveria. Tive um pai estrangeiro, que de vez em quando se irritava com isso e dizia:
"Vocês, brasileiros, só vão aprender a cuidar do que têm em abundância quando passarem por uma guerra".
Outro lugar que tem recebido, legitimamente, os holofotes da mídia nesses dias é a Central de Abastecimento, Ceasa de Irajá. Para lá convergem os produtos que chegam das fazendas, é onde se compra tudo mais barato e é também o termômetro para se saber os preços que são praticados pelo mercado. Com a greve, o total de 300 megacaminhões que chegam ali por dia tem ficado reduzido a 30, 50. A batata, produto dos mais procurados, cujo saco de 50 quilos é vendido a cerca de R$ 70, R$ 80, está custando R$ 300. Isso é um desastre e afeta, sobretudo, os pequenos restaurantes que vende a preço barato com um lucro baixo. 

Mas, falamos sobre desperdício. E semana passada estive na Ceasa, a trabalho, quando este assunto rendeu panos para mangas. Tomávamos um café, G. e eu, quando passou uma senhora bem carregada de milho. Deixou cair uma espiga. Fizemos menção de buscar do chão para ela mas não deu tempo: a mulher descartou nossa ajuda, fazendo um gesto com a mão que queria dizer que já estava carregada demais, não ia se importunar por causa de uma espiga. No segundo seguinte, um carregador passou também apressado e esmagou a espiga com as rodas de seu carrinho. Lá se foi um alimento.
Assim mesmo, pegamos do chão e oferecemos ao dono do café, que tem seu ponto ali no Ceasa há anos e quase se surpreendeu com nosso gesto: 

"Ih... esse negócio de desperdício é comum aqui. Já tivemos um programa, se não me engano se chamava Banco de Alimentos, quando tentaram educar o pessoal. Mas não deu certo. Já estou acostumado. Tem dias que incomoda mesmo, a gente vê uma quantidade grande de produtos que são jogados fora com tanta gente passando fome no mundo...", comentou o comerciante. 

Para ilustrar sua fala, busquei no site da Central de Abastecimento notícias sobre o tal programa, e fiquei feliz em saber que no mês de abril foram doados 91,5 toneladas de alimentos pelo Banco. Ao todo, foram atendidas 217 instituições que beneficiaram mais de 42 mil pessoas, diz a notícia.
"O Banco de Alimentos é um equipamento de segurança alimentar e nutricional, responsável por captar e distribuir alimentos que não foram comercializados, mas que estão em perfeitas condições para consumo", diz o texto explicativo. O Programa foi criado no governo Lula e funciona como uma espécie de distribuidora de alimentos que não estão em perfeitas condições para consumo, mas que servem ainda para nutrir. 

"Os produtos são doados por produtores, comerciantes e pelo Programa de Aquisição de Alimentos- PAA, modalidade que compra com doação simultânea, composto por recursos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que consiste na compra do alimento do agricultor familiar que é doado para as instituições beneficiadas pelo Banco de Alimentos", completa o texto no site. 

Falta combinar com os consumidores e com o pessoal que não se inscreveu no Programa. É bacana ter doado mais de 90 toneladas de alimentos, mas dá para ver, in loco, que tem muito mais a fazer. Há enormes lixeiras entre um e outro dos 43 pavilhões da Ceasa que ficam cheios de alimentos descartados e, não raro, ali as pessoas sem recursos correm para se abastecer com o que pode. Retiram do lixo o alimento que vai servir para nutri-las. E não precisava ser assim. 

De qualquer forma, o comentário irritado e exagerado do meu pai não se aplicaria ap
enas aos brasileiros. Dados do ano passado liberados pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) revelam que, por ano, aproximadamente um terço dos alimentos produzidos em todo o mundo não é consumido pela população, sendo perdido em alguma etapa da cadeia de produção ou desperdiçado no elo final, em restaurantes e residências. Isso representa cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos que não são aproveitados ou, em valor monetário, uma quantia aproximada de US$ 1 trilhão

É sobre cultura que estamos falando, sobre mudança de hábitos. E será, sempre, a falta de contato verdadeiramente respeitoso com o meio ambiente que nos cerca, a responsável por tanto desmazelo com produtos que, no fim das contas, servem para nos manter vivos. 

Uma crise como esta, uma greve complexa, cheia de não-ditos e de não-combinados, há de, pelo menos, deixar visíveis essas falhas graves para que se possa pensar a respeito. Aqui perto de casa, por exemplo, tem um ponto final de ônibus e fico perplexa com o fato de o motorista deixar o motor ligado por cerca de cinco a dez minutos enquanto espera dar a hora da partida. Já fui até lá, expus a questão, pedi que desligassem, mas era tratada com um certo desdém. Pelo menos, assim eu percebia. É assim que me sinto sempre que mostro erros que cometemos contra a natureza. 

Hoje não ouço mais o barulho irritante da máquina, embora o ônibus continue ali. Por que economizar só quando a escassez bateu?

Circuito curto de alimentos, a saída possível para evitar dependência dos transportes

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Circuito curto de alimentos, a saída possível para evitar dependência dos transportes

Por Amelia Gonzalez, G1 

Enquanto vivemos desmandos que parecem tornar infindável um movimento tão desastroso para o país como esta greve dos transportes de carga, enquanto sigo sem conseguir entender muito os vai-e-vem que põe a todos nós, brasileiros, meio atordoados com as notícias, decidi me dedicar a um exercício para imaginar como poderia ser diferente tudo isso. Como poderíamos evitar a dependência dos combustíveis, dos caminhões, dos caminhoneiros, das empresas de transportes, para nos alimentar? Como poderíamos evitar o imenso desperdício de alimentos que se tornou marca registrada dessa greve? 

Sim, é possível, e não estou me dedicando a um exercício de ficção. Há uma semana escrevi sobre o documentário "Sustainable", e meu texto focou no aspecto de saúde alimentar, uma das mensagens do filme. Mas as cenas que mostram o trabalho do pequeno produtor rural, personagem principal, entregando pessoalmente, em sua caminhonete, seus produtos para restaurantes de Illinois, me fizeram lembrar do circuito curto de alimentos, uma forma de aproximar a produção do consumo, bandeira defendida por dez entre dez ambientalistas e agroecologistas. 

E já estivemos muito mais perto disso do que vocês, caros leitores, podem imaginar.
Em outubro de 2011 fiz uma entrevista para o "Razão Social" com Renato Maluf, então presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), orgão criado pelo sociólogo Betinho nos anos 90, recuperado pelo ex-presidente Lula em seu primeiro mandato, e que agora está bastante esvaziado. Maluf, que naquela época tinha um papel importante no cenário internacional no nicho de segurança alimentar, explicou-me como seria possível escapar do circuito longo dos alimentos, aquele que provoca nossa dependência dos transportes.
"Praticar o circuito local é usar a produção de pequeno porte diversificada e promover uma circulação regional. Essa concepção de abastecimento alimentar descentralizada é fundamental, com base em circuitos curtos", disse ele.
Em 2011 estava sendo formulado um Plano de Segurança Alimentar para o país para tentar acabar com os problemas já detectados pelo Consea, um órgão bipartite (governo e sociedade civil). Entre eles, o fato de uma parte da produção do país exportada ser baseada na monocultura, o que nos põe num lugar, nada invejável nem digno de orgulho, como o país que mais consome agrotóxicos na América Latina. Temos ainda um elevado nível de mecanização; o comprometimento de biodiversidade por conta da produção agrícola e uma alta concentração fundiária, lembrou-me Maluf.
"Temos aqui ainda uma enorme quantidade de corporações internacionais e nacionais que expressam o modelo de consumo de alimentos atual, que está nos levando, entre outras coisas, a vários problemas de saúde associados à alimentação", disse-me ele.
O foco do Consea, com reuniões frequentes entre seus membros, incluindo representantes do governo, era mudar esse quadro. Para isso, o modelo agrícola defendido é o da agroecologia, uma alternativa baseada no manejo ecológico dos bens naturais, incorporando aspectos sociais, coletivos e participativos dos grupos interessados. É um enfoque que visa ao desenvolvimento rural sustentável em todas as suas dimensões. 

Recorro ao livro "Agroecologia – um novo caminho para a extensão rural sustentável" (Ed. Terra Mater), cuja edição foi coordenada por Maria Alzira Brum Lemos, para esmiuçar um pouco mais sobre o tema. O cerne da agroecologia é a agricultura familiar, instituída no país como consequência do processo de democratização nos anos 80. Na década de 90, quando foi criado o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), extinto pelo governo Temer, uma das funções do novo órgão era elaborar, propor e executar políticas públicas para o segmento da agricultura familiar. Em 2004, foi criada a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão (Pnater). 

"De acordo com a Pnater, a agricultura familiar é aquela em que os trabalhos em nível de unidade de produção são exercidos predominantemente pela família, mantendo ela as iniciativas, o domínio e o controle do que e de como produzir, havendo estreita relação entre o que é produzido e o que é consumido (unidade de produção e consumo), mantendo alto grau de diversificação produtiva, tendo alguns produtos relacionados com o mercado", escreve a engenheira agrônoma Rejane Beatriz Mendes no livro sobre Agropecuária. 

A colheita de dados para o Censo Agropecuário, Florestal e Agrícola de 2017, que pode nos dar alguma referência sobre o consumo, na mesa dos brasileiros, de produtos que são produzidos pela agricultura familiar, terminou em fevereiro deste ano. O que se sabe é que o orçamento para o setor está estagnado. Segundo informações do site do Greenpeace, o governo Temer anunciou no ano passado o Plano Safra da Agricultura Familiar 2017/2018, com valor de crédito a ser liberado aos pequenos trabalhadores rurais de R$ 30 bilhões, a mesma quantia do ano passado.
"A agricultura familiar é a verdadeira responsável pela produção de alimentos no país. Incentivar esses produtores, que já adotam sistemas mais sustentáveis de produção, é fundamental. Porém, é tudo que o governo não vem fazendo. No ano passado, a diferença de investimento entre a agricultura convencional e a agroecológica foi de 75%. Independente de quem seja presidente, o governo federal é um dos principais responsáveis pela expansão desse modelo que aplica veneno em nossa comida”, defende Marina Lacorte, da campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace, no site da organização. 

Mas, já foi diferente. Em 2014, a agricultura familiar era responsável por 70% dos alimentos que chegavam à mesa dos brasileiros, um percentual que assegurava alguma tranquilidade para muitas famílias no campo. Não vamos ser ingênuos, a ponto de afirmar que o Brasil já poderia estar liderando o circuito curto de alimentos e transformando a vida dos que produzem alimentos e não fazem parte da grande cadeia de empresas da indústria alimentícia. Historicamente, somos um grande produtor agrícola com base na propriedade, desde os tempos do Brasil Colônia. Mas há caminhos que nos mostram outras possibilidades, que bom que existem. 

Para atualizar o meu pensamento, busquei notícias mais recentes sobre Renato Maluf, que hoje continua sendo professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Numa palestra que proferiu no ano passado, Maluf comentou sobre tudo o que vimos refletindo neste texto e me deu a possibilidade de abrir um caminho a mais. Para ele, há um meio eficaz de mudar um cenário tão desastroso para a nossa agricultura: a participação incessante da sociedade civil. 

"E ela já vem desempenhando um papel importante, ao exercer a crítica sobre as tendências do sistema alimentar dominante. Ela deve ainda criar propostas alternativas em termos de como organizar a produção de alimentos e o consumo. E se unir em associações. Temos de superar a centralização de autoridade que ocorre no estilo tecnocrático de fazer políticas públicas, a fim de ter a sociedade civil realmente engajada na elaboração e monitoramento desse processo", diz ele.

Ficamos assim, para refletir. 

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Sociedades científicas endossam manifesto da SBPC contra Projeto que altera lei dos agrotóxicos



Embalagens vazias de agrotóxicos.
Embalagens vazias de agrotóxicos. Foto EBC

Jornal da Ciência / SBPC
Mais de 20 sociedades científicas associadas à SBPC manifestaram total apoio ao documento divulgado na terça-feira, 22 de maio. Na manifestação, a SBPC alerta para os efeitos potencialmente catastróficos da aprovação da chamada “Lei do Veneno” para a saúde pública e pede um debate mais amplo e aprofundado sobre as possíveis consequências do Projeto de Lei

O manifesto da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) contra a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, conhecida como “Lei do Veneno”, recebeu o apoio de mais de 20 sociedades científicas associadas desde sua publicação na terça-feira, 22 de maio.

Diante do cenário do uso de agrotóxicos no Brasil e preocupada com a desregulamentação do aparato regulatório de proteção à saúde e ao meio ambiente relacionado aos agrotóxicos no País, a SBPC divulgou um manifesto contra a aprovação do Projeto de Lei que altera a Lei dos Agrotóxicos e alertando para os efeitos potencialmente catastróficos da aprovação deste PL para a saúde pública.
Se aprovado o projeto, o termo “agrotóxico” será substituído pela expressão “produto fitossanitário e produtos de controle ambiental”. Conforme observa a SBPC, o termo agrotóxico ou pesticida é reconhecido mundialmente, e a proposta sugere a troca do termo sem nenhuma justificativa científica plausível.

Além disso, o PL prevê, entre outros pontos, que os agrotóxicos possam ser liberados pelo Ministério da Agricultura mesmo se órgãos reguladores, como Ibama e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não tiverem concluído suas análises.

Segundo o manifesto, o uso excessivo de agrotóxicos ameaça seriamente os ecossistemas além de representar um problema grave para a saúde. A presença desses compostos nos ecossistemas terrestres e aquáticos representa um risco para os organismos, com vários efeitos negativos já reportados e resultantes desta exposição. “Um relatório do Ministério da Saúde, de 2018, registrou 84.206 notificações de intoxicação por agrotóxico entre 2007 e 2015. A Anvisa apontou, em 2013, que 64% dos alimentos no Brasil estavam contaminados por agrotóxicos. Registre-se que, em apenas doze anos, entre 2000 e 2012, houve um aumento de 288% no uso de agrotóxicos no Brasil”.

A entidade finaliza o documento conclamando que as instituições de pesquisa, os órgãos governamentais, o Congresso Nacional, as entidades representativas dos diversos setores sociais e a sociedade brasileira como um todo para que seja realizado um debate mais amplo e aprofundado sobre as possíveis consequências deste PL, e com o tempo adequado, para que não se aprove às pressas uma legislação sobre os agrotóxicos que pode trazer consequências ainda mais graves para a saúde da população e para o meio ambiente brasileiro.

Após sua publicação, sociedades científicas de todas as áreas, por todo o País, manifestaram total apoio ao documento divulgado para a SBPC. As seguintes entidades endossam o documento:


Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência (ABCMC)
Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação (ABECO)
Associação Brasileira de Cristalografia (ABCr)
Federação Brasileira das Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação – (Socicom)
Sociedade Astronômica Brasileira (SAB)
Sociedade Botânica do Brasil (SBB)
Sociedade Brasileira de Biociências Nucleares (SBBN)
Sociedade Brasileira de Biofísica (SBBF)
Sociedade Brasileira de Catálise (SBCat)
Sociedade Brasileira de Ciência do Solo (SBCS)
Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (SBCTa)
Sociedade Brasileira de Computação (SBC)
Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM)
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC)
Sociedade Brasileira de Fisiologia Vegetal (SBFV)
Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC)
Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE)
Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI)
Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT)
Sociedade Brasileira de Ornitologia (SBO)
Sociedade Brasileira de Parasitologia (SBP)
Sociedade Brasileira de Toxinologia (SBTx)
Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB)
Leia abaixo o manifesto na íntegra:

Manifestação da SBPC sobre o Projeto de Lei Nº 6.299/2002
Está neste momento sendo discutida, em uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a aprovação do Projeto de Lei Nº 6.299/2002, relacionado aos agrotóxicos. O projeto “altera os arts 3º e 9º da Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, que dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências”.

O projeto de lei traz uma proposta de alteração da Lei nº 7.802/89, restringindo a atuação dos órgãos de saúde e ambiente em todo o processo de liberação e controle dos agrotóxicos, concentrando as competências no setor da agricultura, com destaque para os seguintes pontos: a eliminação dos atuais critérios de proibição de registro de agrotóxicos descritos no § 6º do Artigo 3º da referida Lei, principalmente carcinogenicidade, mutagenicidade, teratogenicidade, distúrbios hormonais e danos ao sistema reprodutivo; a possibilidade de comercialização de produtos que ainda não tenham sido autorizados pelos órgãos de governo, mediante a criação do registro temporário e da autorização temporária. O termo agrotóxico ou pesticida é reconhecido mundialmente, porém a nova legislação proposta sugere a troca do termo agrotóxico para defensivo fitossanitário e produtos de controle ambiental, sem uma justificativa científica plausível para tal.

O uso excessivo de agrotóxicos ameaça seriamente os ecossistemas além de representar um problema grave para a saúde. A presença desses compostos nos ecossistemas terrestres e aquáticos representa um risco para os organismos, com vários efeitos negativos já reportados e resultantes desta exposição. A saúde humana é a mais afetada pelos efeitos adversos do uso de agrotóxicos. Muitas dessas substâncias têm o potencial de se acumular na corrente sanguínea, no leite materno e, principalmente, nos alimentos consumidos pela população. Um relatório do Ministério da Saúde, de 2018, registrou 84.206 notificações de intoxicação por agrotóxico entre 2007 e 2015. A Anvisa apontou, em 2013, que 64% dos alimentos no Brasil estavam contaminados por agrotóxicos. 

Registre-se que, em apenas doze anos, entre 2000 e 2012, houve um aumento de 288% no uso de agrotóxicos no Brasil.

A literatura científica nacional e internacional aponta que, dentre os efeitos sobre a saúde humana associados à exposição aos agrotóxicos, os mais preocupantes são as intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, manifestada através de distúrbios cognitivos e comportamentais, e quadros de neuropatia e desregulação hormonal. Além disso, há estudos que evidenciaram os efeitos imunotóxicos, caracterizados por imunoestimulação ou imunossupressão, sendo este último fator favorável à diminuição na resistência a patógenos ou mesmo diminuição da imunovigilância, com comprometimento do combate às células neoplásicas levando a uma maior incidência de câncer.

A questão dos agrotóxicos, apesar de polêmica por envolver interesses de setores da economia como a indústria química e do agronegócio, é um exemplo importante da necessidade de serem utilizadas evidências científicas para dar suporte à elaboração de legislações e políticas públicas. Um caso clássico mundial, e emblemático, foi o livro “A Primavera Silenciosa” da pesquisadora e escritora norte-americana Rachel Carson, publicado em 1962. Carson denunciou vários efeitos negativos resultantes do uso do DDT em plantações. As suas análises foram a base para a criação de um Comitê de Consultoria Científica do presidente dos Estados Unidos sobre a temática dos agrotóxicos, que acabou por reforçar suas conclusões, fornecendo elementos para a criação futura de órgãos como a Agência de Proteção Ambiental Americana.

Em 2015, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, uma das associações científicas afiliadas à SBPC, elaborou um dossiê de alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde (disponível no site: www.abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/) no qual foram reunidas evidências científicas sobre o risco que toda a população brasileira está correndo frente a medidas que intensificam o uso e a exposição a agrotóxicos no País. Além das consequências para o ambiente e para a saúde da população, o uso exagerado de agrotóxicos afeta a economia brasileira com um custo muito alto (mais de 12 bilhões de dólares por ano) uma vez que a produção de insumos agrícolas, incluindo agrotóxicos, é controlada por grandes multinacionais.

Diante do cenário do uso de agrotóxicos no Brasil e preocupada com a desregulamentação do aparato regulatório de proteção à saúde e ao meio ambiente relacionado aos agrotóxicos no Brasil, a SBPC se manifesta contra a aprovação do Projeto de Lei Nº 6.299/2002 e demais projetos apensados. Alertamos a sociedade brasileira para os efeitos potencialmente catastróficos da aprovação deste PL para a saúde pública. 

A nossa entidade, que está à disposição para trazer as evidências científicas que justificam sua posição, se soma às análises técnico-científicas de órgãos que já se manifestaram pela rejeição do PL como a Fiocruz, o INCA, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da União, o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, o Ministério da Saúde, o Ministério do Meio Ambiente, a ANVISA e a ABA, que produziram notas técnicas alertando para os riscos contidos nesse Projeto de Lei. A SBPC conclama as instituições de pesquisa, os órgãos governamentais, o Congresso Nacional, as entidades representativas dos diversos setores sociais e a sociedade brasileira como um todo para que seja realizado um debate mais amplo e aprofundado sobre as possíveis consequências deste PL, e com o tempo adequado, para que não se aprove às pressas uma legislação sobre os agrotóxicos que pode trazer consequências ainda mais graves para a saúde da população e para o meio ambiente brasileiro.

Ildeu de Castro Moreira

Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

Do Jornal da Ciência / SBPC, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 28/05/2018

Nota da Redação: sobre o mesmo tema leia, também:

Em audiência pública na Câmara, Ibama, Fiocruz, Idec e outras entidades se manifestam contra mudança na lei de agrotóxicos
SBPC se manifesta contra Projeto de Lei que altera lei dos agrotóxicos
Professor rebate argumentos apresentados por apoiadores do projeto de flexibilização do registro de agrotóxicos
Nota técnica do MPT pede rejeição a projeto que fragiliza lei dos agrotóxicos
Integrante da Abrasco lista os possíveis retrocessos da aprovação do projeto de lei que flexibiliza registro de agrotóxicos
Fiocruz divulga nota contra flexibilização de lei sobre agrotóxicos
Projeto de Lei 6299/2002, que flexibiliza registro de agrotóxicos, afetará saúde e meio ambiente, afirma MPF

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População, desenvolvimento e degradação ambiental no Brasil, artigo de José Eustáquio Diniz Alves



População, desenvolvimento e degradação ambiental no Brasil, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

“Amor como princípio e ordem como base; o progresso como meta”
Augusto Comte (1798-1857)

crescimento do PIB, da população e da renda per capita no Brasil: 1822-2022

[EcoDebate] O Brasil já nasceu grande em termos de extensão territorial, mas ainda era uma economia pequena no século XIX. Com o fim da escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889) o país redirecionou o seu sistema produtivo para a busca do desenvolvimento nacional e, progressivamente, para o fortalecimento do mercado interno.
O lema “Ordem e Progresso” foi inscrito na bandeira nacional por influência dos positivistas. Este binômio foi inspirado no lema do sociólogo francês Auguste Comte (1798-1857), considerado o pai do positivismo: “Amor como princípio e ordem como base; o progresso como meta”. O progresso era uma ideia em moda no século XIX e a Europa era uma referência para o mundo na medida em que conquistava territórios e vendia seus produtos modernos. Inspirados na ideologia europeia, os positivistas brasileiros tiveram papel de destaque na Proclamação da República (Só não se sabe porque eles não colocaram a palavra amor na faixa da bandeira nacional).
Naquela época, o Brasil era um país pouco povoado, rural, agrário e com pouca integração entre suas diversas regiões. Desta forma, não é de se estranhar que o progresso estivesse relacionado ao crescimento populacional, ao desenvolvimento econômico, à dominação da natureza e à grandeza da Pátria. Não havia preocupação com as questões ambientais e a defesa da biodiversidade.
O presidente do Brasil, Afonso Pena (1906-1909), dizia que “Governar é povoar”. Já Washington Luis (1926-1930), ampliando esta concepção, dizia que “Governar é abrir estradas”. A frase completa do último presidente da República Velha, dando ênfase à ocupação do território, é: “Governar é povoar; mas, não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; Governar é, pois, fazer estradas”.
O Presidente Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) chegou ao poder prometendo redirecionar o desenvolvimento brasileiro para o mercado interno e para o interior. Ele apoiou a família extensa, o crescimento populacional e a migração para o Oeste. Os trabalhadores assalariados da CLT foram premiados com um “salário-família” a título de estimular uma prole numerosa. No governo Vargas foram implantadas políticas sociais que, de forma intencional ou não, tinham objetivos pronatalistas.
Mas além da política positivista voltada para o crescimento populacional, na era Vargas houve uma legislação claramente anti-controlista, por exemplo: a) o Decreto Federal n. 20.291, de 11 de janeiro de 1932 estabelecia “É vedado ao médico dar-se à prática que tenha por fim impedir a concepção ou interromper a gestação”; b) a Constituição de 1937 em seu artigo 124 diz: “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. As famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção de seus encargos”; c) em 1941, durante o Estado Novo, foi sancionada a Lei das Contravenções Penais que em seu artigo 20 proibia: “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar o aborto ou evitar a gravidez”.
A maior obra do presidente pós Segunda Guerra, Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), foi a construção da Via Dutra (BR 116), inaugurada em 19 de janeiro de 1951 ligando as duas maiores cidades do Brasil. Após o segundo governo Vargas, foi eleito o Presidente Juscelino Kubitschek que tinha como lema central a bandeira: “50 anos em 5”. Ele prometia acelerar a modernização do país, construindo hidrelétricas, indústria de base, automóveis, bens de consumo em geral e, principalmente, a construção de Brasília e a conquista do Cerrado. Os governantes brasileiros sempre consideraram a natureza uma fonte inesgotável de riquezas que deveriam ser exploradas sem maiores considerações e seguiram a visão cornucopiana de Pero Vaz de Caminha: “Aqui, nesta terra, em se plantando, tudo dá.”
Os militares, que tomaram o poder em 1964, estavam na linha de frente da exploração desenfreada do meio ambiente e da política populacional expansionista do “Brasil potência”. Mesmo com as precárias condições de vida e a falta de investimentos no bem-estar qualitativo da população, os primeiros governos militares adotaram uma política pronatalista, como mostrou Canesqui: “A doutrina da Segurança Nacional, adotada pelo regime militar no período 1964-1970, assegurou a posição natalista, incluindo expectativas quanto ao crescimento demográfico e o preenchimento dos espaços vazios de regiões a serem colonizadas (Amazonas e Planalto Central). Esta preocupação ficou bastante clara no Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968-1970) do governo Costa e Silva. Este mesmo governo reafirmou suas convicções natalistas face ao desenvolvimento e à segurança, em mensagem dirigida ao Papa Paulo VI, por ocasião da publicação da Encíclica Humanae Vitae (1968) de forma a não contrariar a posição oficial da Igreja Católica, diante da política controlista da natalidade”.
Seguindo a linha dos governos autoritários, o general linha dura e Presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) chegou a estabelecer a seguinte orientação para o processo de ocupação territorial: “Levar os homens sem-terra à terra sem homens”. Na Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972, o General Costa Cavalcante, Ministro do Interior e representando o governo, proferiu um discurso claramente antiecológico: “Para a maioria da população mundial, a melhoria de condições é muito mais uma questão de mitigar a pobreza, dispor de mais alimentos, melhorar vestimentas, habitação, assistência médica e emprego, do que ver reduzida a poluição atmosférica”.
Após o processo de redemocratização, os governos José Sarney (1985-1989), Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) pouco fizeram para reverter a o quadro de degradação ambiental e redirecionar o processo de desenvolvimento do país. Da mesma forma, os governos Luís Ignácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014) reviveram a linha do neodesenvolvimentista, dando incentivo aos grandes projetos, como o pré-sal, a transposição do rio São Francisco, as hidrelétricas na Amazônia e a venda de commodities do agronegócio e dos agrotóxicos, assim como de produtos minerais altamente poluidores (ferro, bauxita, nióbio, ouro e outros metais). O uso do mercúrio e do cianeto na separação e limpeza da exploração mineral transforma o garimpo em uma das atividades mais poluidoras, tendo como consequência a contaminação de peixes e animais silvestres, afetando inclusive a saúde humana.
O Brasil passa por uma especialização regressiva e a economia está muito dependente de produtos básicos, vindos da “Roça” (agronegócio) e da “Mina” (pré-sal e mineração). A Câmara dos Deputados aprovou, dia 29 de novembro de 2017, o texto-base da Medida Provisória 795/17, que concede isenções tributárias para a indústria do petróleo que podem ultrapassar R$ 1 trilhão em 25 anos. Por conta disto, o Brasil recebeu uma honraria indesejada pelos países durante as negociações climáticas da COP23: o “Fóssil do Dia”. O “prêmio” é dado pela Climate Action Network para os países que ou estão atravancando as conversas na conferência ou não tomando internamente as ações necessárias para o combate às mudanças climáticas. Portanto, a ideologia positivista do desenvolvimentismo a qualquer custo continua viva e virou quase uma religião de Estado.
Evidentemente a ideia de progresso tal como aconteceu no país tem sido questionada por muitas pessoas e diversos movimentos populares. Por exemplo, em entrevista à Revista época (04/06/2012), Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, fez várias críticas sobre a forma como o progresso brasileiro possibilitou o aumento do genocídio dos índios e o ecocídio das espécies vivas do Cerrado e da floresta amazônica. Na verdade dos os ecossistemas brasileiros foram afetados terrivelmente pelo processo de desenvolvimento do Brasil.
O gráfico acima, mostra que até os 200 anos da Independência (1822-2022), a população brasileira terá crescido 46 vezes, o PIB terá crescido 834 vezes e a Renda per capita terá aumentado em 18 vezes. A despeito das desigualdades sociais, o progresso humano foi espetacular. Mas todo o progresso humano ocorreu às custas do retrocesso ambiental. Todos os biomas brasileiros foram afetados e continuam sendo degradados. Os rios urbanos viraram esgotos e foram enterrados vivos. Os dois maiores rios da região Sudeste (rio Doce e Paraíba do Sul) estão em estado de miséria.
O rio São Francisco está cada vez mais sem água e o assoreamento e a degradação é quase uma sentença de morte. Os rios Pajeú e Riacho do Navio só existem na imortal música de Luiz Gonzaga e Zé Dantas.
Embora o Brasil seja o país com o maior superávit ambiental do mundo, caminha, se forem mantidas as tendências das últimas décadas, para uma situação de déficit. A Footprint Network apresenta duas medidas úteis para se avaliar o impacto humano sobre o meio ambiente e a disponibilidade de “capital natural” do mundo. A Pegada Ecológica serve para avaliar o impacto que o ser humano exerce sobre a biosfera. A Biocapacidade avalia o montante de terra e água, biologicamente produtivo, para prover bens e serviços do ecossistema à demanda humana por consumo, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza.
A pegada ecológica per capita do Brasil, em 1961, era de 2,4 hectares globais (gha) e a biocapacidade per capita era de 22,7 gha. Portanto, a biocapacidade per capita era 10 vezes maior do que a pegada ecológica. Mas em 2013, a pegada ecológica subiu para 3 gha, enquanto a biocapacidade caiu para 8,9 gha. A relação entre as duas medidas caiu para menos de 3 vezes. O Brasil ainda possui um grande superávit ambiental, mas pode jogar fora todo este patrimônio natural nos próximos 50 anos se nada for feito para reverter o padrão insustentável de desenvolvimento.

pegada ecológica e biocapacidade per capita, Brasil: 1961-2013

A análise apresentada nesse artigo é uma pequena parte do capítulo “Population, development and environmental degradation in Brazil” de ALVES e MARTINE (2017), que compõe o livro “Brazil in the Anthropocene: Conflicts Between Predatory Development and Environmental Policies”, editado por ISSBERNER LR; LENA P. (2017). Uma síntese do capítulo pode ser acessada no link abaixo, com base na apresentação feita no dia 27/09/2017, no Rio de Janeiro. Se o rumo da insustentabilidade não for redirecionado, o Brasil não terá nada a comemorar, em 2022, nos 200 anos da Independência.
Referências:
ALVES, JED; MARTINE, G. Population, development and environmental degradation in Brazil. In: Brazil in the Anthropocene: Conflicts Between Predatory Development and Environmental Policies”, Londres, NYC, Routledge, 2017
ALVES, JED. População, desenvolvimento e degradação ambiental no Brasil, Apresentação do capítulo do livro Brasil no Antropoceno, no Museu do Amanhã, Rio de Janeiro, 27/09/2017
https://pt.scribd.com/document/360151759/Populacao-desenvolvimento-e-degradacao-ambiental-no-Brasil

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“Amor como princípio e ordem como base; o progresso como meta”
Augusto Comte (1798-1857)

crescimento do PIB, da população e da renda per capita no Brasil: 1822-2022

[EcoDebate] O Brasil já nasceu grande em termos de extensão territorial, mas ainda era uma economia pequena no século XIX. Com o fim da escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889) o país redirecionou o seu sistema produtivo para a busca do desenvolvimento nacional e, progressivamente, para o fortalecimento do mercado interno.

O lema “Ordem e Progresso” foi inscrito na bandeira nacional por influência dos positivistas. Este binômio foi inspirado no lema do sociólogo francês Auguste Comte (1798-1857), considerado o pai do positivismo: “Amor como princípio e ordem como base; o progresso como meta”. O progresso era uma ideia em moda no século XIX e a Europa era uma referência para o mundo na medida em que conquistava territórios e vendia seus produtos modernos. Inspirados na ideologia europeia, os positivistas brasileiros tiveram papel de destaque na Proclamação da República (Só não se sabe porque eles não colocaram a palavra amor na faixa da bandeira nacional).

Naquela época, o Brasil era um país pouco povoado, rural, agrário e com pouca integração entre suas diversas regiões. Desta forma, não é de se estranhar que o progresso estivesse relacionado ao crescimento populacional, ao desenvolvimento econômico, à dominação da natureza e à grandeza da Pátria. Não havia preocupação com as questões ambientais e a defesa da biodiversidade.

O presidente do Brasil, Afonso Pena (1906-1909), dizia que “Governar é povoar”. Já Washington Luis (1926-1930), ampliando esta concepção, dizia que “Governar é abrir estradas”. A frase completa do último presidente da República Velha, dando ênfase à ocupação do território, é: “Governar é povoar; mas, não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; Governar é, pois, fazer estradas”.

O Presidente Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) chegou ao poder prometendo redirecionar o desenvolvimento brasileiro para o mercado interno e para o interior. Ele apoiou a família extensa, o crescimento populacional e a migração para o Oeste. Os trabalhadores assalariados da CLT foram premiados com um “salário-família” a título de estimular uma prole numerosa. No governo Vargas foram implantadas políticas sociais que, de forma intencional ou não, tinham objetivos pronatalistas.

Mas além da política positivista voltada para o crescimento populacional, na era Vargas houve uma legislação claramente anti-controlista, por exemplo: a) o Decreto Federal n. 20.291, de 11 de janeiro de 1932 estabelecia “É vedado ao médico dar-se à prática que tenha por fim impedir a concepção ou interromper a gestação”; b) a Constituição de 1937 em seu artigo 124 diz: “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. As famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção de seus encargos”; c) em 1941, durante o Estado Novo, foi sancionada a Lei das Contravenções Penais que em seu artigo 20 proibia: “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar o aborto ou evitar a gravidez”.

A maior obra do presidente pós Segunda Guerra, Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), foi a construção da Via Dutra (BR 116), inaugurada em 19 de janeiro de 1951 ligando as duas maiores cidades do Brasil. Após o segundo governo Vargas, foi eleito o Presidente Juscelino Kubitschek que tinha como lema central a bandeira: “50 anos em 5”. Ele prometia acelerar a modernização do país, construindo hidrelétricas, indústria de base, automóveis, bens de consumo em geral e, principalmente, a construção de Brasília e a conquista do Cerrado. Os governantes brasileiros sempre consideraram a natureza uma fonte inesgotável de riquezas que deveriam ser exploradas sem maiores considerações e seguiram a visão cornucopiana de Pero Vaz de Caminha: “Aqui, nesta terra, em se plantando, tudo dá.”

Os militares, que tomaram o poder em 1964, estavam na linha de frente da exploração desenfreada do meio ambiente e da política populacional expansionista do “Brasil potência”. Mesmo com as precárias condições de vida e a falta de investimentos no bem-estar qualitativo da população, os primeiros governos militares adotaram uma política pronatalista, como mostrou Canesqui: “A doutrina da Segurança Nacional, adotada pelo regime militar no período 1964-1970, assegurou a posição natalista, incluindo expectativas quanto ao crescimento demográfico e o preenchimento dos espaços vazios de regiões a serem colonizadas (Amazonas e Planalto Central).

Esta preocupação ficou bastante clara no Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968-1970) do governo Costa e Silva. Este mesmo governo reafirmou suas convicções natalistas face ao desenvolvimento e à segurança, em mensagem dirigida ao Papa Paulo VI, por ocasião da publicação da Encíclica Humanae Vitae (1968) de forma a não contrariar a posição oficial da Igreja Católica, diante da política controlista da natalidade”.

Seguindo a linha dos governos autoritários, o general linha dura e Presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) chegou a estabelecer a seguinte orientação para o processo de ocupação territorial: “Levar os homens sem-terra à terra sem homens”. Na Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972, o General Costa Cavalcante, Ministro do Interior e representando o governo, proferiu um discurso claramente antiecológico: “Para a maioria da população mundial, a melhoria de condições é muito mais uma questão de mitigar a pobreza, dispor de mais alimentos, melhorar vestimentas, habitação, assistência médica e emprego, do que ver reduzida a poluição atmosférica”.

Após o processo de redemocratização, os governos José Sarney (1985-1989), Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) pouco fizeram para reverter a o quadro de degradação ambiental e redirecionar o processo de desenvolvimento do país. Da mesma forma, os governos Luís Ignácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014) reviveram a linha do neodesenvolvimentista, dando incentivo aos grandes projetos, como o pré-sal, a transposição do rio São Francisco, as hidrelétricas na Amazônia e a venda de commodities do agronegócio e dos agrotóxicos, assim como de produtos minerais altamente poluidores (ferro, bauxita, nióbio, ouro e outros metais). O uso do mercúrio e do cianeto na separação e limpeza da exploração mineral transforma o garimpo em uma das atividades mais poluidoras, tendo como consequência a contaminação de peixes e animais silvestres, afetando inclusive a saúde humana.
O Brasil passa por uma especialização regressiva e a economia está muito dependente de produtos básicos, vindos da “Roça” (agronegócio) e da “Mina” (pré-sal e mineração). A Câmara dos Deputados aprovou, dia 29 de novembro de 2017, o texto-base da Medida Provisória 795/17, que concede isenções tributárias para a indústria do petróleo que podem ultrapassar R$ 1 trilhão em 25 anos. Por conta disto, o Brasil recebeu uma honraria indesejada pelos países durante as negociações climáticas da COP23: o “Fóssil do Dia”. O “prêmio” é dado pela Climate Action Network para os países que ou estão atravancando as conversas na conferência ou não tomando internamente as ações necessárias para o combate às mudanças climáticas. Portanto, a ideologia positivista do desenvolvimentismo a qualquer custo continua viva e virou quase uma religião de Estado.

Evidentemente a ideia de progresso tal como aconteceu no país tem sido questionada por muitas pessoas e diversos movimentos populares. Por exemplo, em entrevista à Revista época (04/06/2012), Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, fez várias críticas sobre a forma como o progresso brasileiro possibilitou o aumento do genocídio dos índios e o ecocídio das espécies vivas do Cerrado e da floresta amazônica. Na verdade dos os ecossistemas brasileiros foram afetados terrivelmente pelo processo de desenvolvimento do Brasil.

O gráfico acima, mostra que até os 200 anos da Independência (1822-2022), a população brasileira terá crescido 46 vezes, o PIB terá crescido 834 vezes e a Renda per capita terá aumentado em 18 vezes. A despeito das desigualdades sociais, o progresso humano foi espetacular. Mas todo o progresso humano ocorreu às custas do retrocesso ambiental. Todos os biomas brasileiros foram afetados e continuam sendo degradados. Os rios urbanos viraram esgotos e foram enterrados vivos. Os dois maiores rios da região Sudeste (rio Doce e Paraíba do Sul) estão em estado de miséria.
O rio São Francisco está cada vez mais sem água e o assoreamento e a degradação é quase uma sentença de morte. Os rios Pajeú e Riacho do Navio só existem na imortal música de Luiz Gonzaga e Zé Dantas.

Embora o Brasil seja o país com o maior superávit ambiental do mundo, caminha, se forem mantidas as tendências das últimas décadas, para uma situação de déficit. A Footprint Network apresenta duas medidas úteis para se avaliar o impacto humano sobre o meio ambiente e a disponibilidade de “capital natural” do mundo. A Pegada Ecológica serve para avaliar o impacto que o ser humano exerce sobre a biosfera. A Biocapacidade avalia o montante de terra e água, biologicamente produtivo, para prover bens e serviços do ecossistema à demanda humana por consumo, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza.

A pegada ecológica per capita do Brasil, em 1961, era de 2,4 hectares globais (gha) e a biocapacidade per capita era de 22,7 gha. Portanto, a biocapacidade per capita era 10 vezes maior do que a pegada ecológica. Mas em 2013, a pegada ecológica subiu para 3 gha, enquanto a biocapacidade caiu para 8,9 gha. A relação entre as duas medidas caiu para menos de 3 vezes. O Brasil ainda possui um grande superávit ambiental, mas pode jogar fora todo este patrimônio natural nos próximos 50 anos se nada for feito para reverter o padrão insustentável de desenvolvimento.

pegada ecológica e biocapacidade per capita, Brasil: 1961-2013

A análise apresentada nesse artigo é uma pequena parte do capítulo “Population, development and environmental degradation in Brazil” de ALVES e MARTINE (2017), que compõe o livro “Brazil in the Anthropocene: Conflicts Between Predatory Development and Environmental Policies”, editado por ISSBERNER LR; LENA P. (2017). Uma síntese do capítulo pode ser acessada no link abaixo, com base na apresentação feita no dia 27/09/2017, no Rio de Janeiro. Se o rumo da insustentabilidade não for redirecionado, o Brasil não terá nada a comemorar, em 2022, nos 200 anos da Independência.


Referências:
ALVES, JED; MARTINE, G. Population, development and environmental degradation in Brazil. In: Brazil in the Anthropocene: Conflicts Between Predatory Development and Environmental Policies”, Londres, NYC, Routledge, 2017


ALVES, JED. População, desenvolvimento e degradação ambiental no Brasil, Apresentação do capítulo do livro Brasil no Antropoceno, no Museu do Amanhã, Rio de Janeiro, 27/09/2017
https://pt.scribd.com/document/360151759/Populacao-desenvolvimento-e-degradacao-ambiental-no-Brasil