segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

O Globo – Regra no Brasil é esperar o próximo desastre, em vez de prevenir / Artigo / Flávia Oliveira e Bernardo Mello Franco


Há um ponto comum — e igualmente nefasto — nos desastres de Brumadinho, em janeiro, e carioca, ontem. São catástrofes repetidas, não por falta de aviso, conhecimento técnico ou recursos. Quisessem, a Vale, o Estado de Minas Gerais, a cidade do Rio de Janeiro, o Brasil poderiam ter evitado os mais de 300 óbitos pelo rompimento da barragem de Córrego do Feijão e as seis mortes em consequência da chuvarada de quase todo verão na capital fluminense. Mas experiências do passado nunca foram suficientes para evitar tragédias futuras. A regra aqui não é prevenir nem remediar; é esperar pela próxima ocorrência.

Em meados de 2018, o IBGE divulgou o Perfil dos Municípios Brasileiros. No trecho sobre gestão de riscos e respostas a desastres, a pesquisa mostrou que, em 2017, 1.729 cidades do país foram afetadas por alagamentos; do total, 1.075 já tinham passado pelo mesmíssimo problema em 2013. Os episódios são consequência direta de interferências na permeabilidade da água no solo — grandes áreas asfaltadas e cimentadas, por exemplo — ou de sistemas de drenagem deficientes, que dificultam o escoamento da chuva. Os cariocas ainda se lembram da cidade debaixo d’água nos primeiros meses da gestão do prefeito Marcelo Crivella, porque houve corte na verba de limpeza de bueiros.

Enchentes e enxurradas alcançaram 1.515 municípios brasileiros, praticamente um em cada quatro (27,2%). Do total, quase metade (712) já tinha experimentado o desastre anos antes. As enxurradas ou inundações são provocadas por chuvas intensas e concentradas que fazem canais de drenagem transbordar rapidamente e de forma imprevisível. Combinadas com ocupação urbana mal planejada, irregular e/ou em terrenos impróprios, levam aos escorregamentos com danos materiais e, principalmente, perdas humanas. Em 2017, o IBGE contabilizou deslizamentos em 833 cidades, das quais 423 viveram a repetição da tragédia.

O Estado do Rio foi cenário de um dos maiores desastres naturais da História do país — contou mais de 900 mortos e quase uma centena de desaparecidos nas enchentes na Região Serrana em 2011. Por isso, não deveria perder uma só vida em razão de chuvas. Mas aconteceu de novo. A capital tem 444 mil moradores em áreas de risco de desastres naturais, segundo o IBGE. Os alertas da Defesa Civil, por SMS, e do Centro de Operações, via redes sociais, não evitaram que seis pessoas morressem em decorrência da chuva. A população soube da chuva, mas a gestão da cidade não foi capaz de administrar o caos.

Em Brumadinho não foi diferente. Um par de relatórios de engenharia sobre as condições da barragem de Córrego do Feijão, em 2015 e 2018, apontava riscos variados. O primeiro fora entregue pela TUV SUD à Vale em agosto, três meses antes do rompimento em Mariana. Ou seja, antes de a barragem do Fundão dar fim ao Rio Doce, a companhia já tinha conhecimento dos problemas que ameaçavam o Paraopeba.

Depois de Mariana, o maior desastre ambiental da História do país, que deixou 19 mortos, entre eles 16 trabalhadores próprios ou terceirizados da Samarco/Vale, o Ministério Público do Trabalho investigou e apontou irregularidades e deficiências em medidas de prevenção e segurança da mão de obra. O MPT apresentou uma lista de recomendações, entre elas, verificar a estabilidade da mina, condições de higiene e segurança do trabalho, realizar estudos e projetos exigidos por órgãos fiscalizadores, indenizar as vítimas por dano moral coletivo. Estendidas a outras unidades, as ações poderiam ter evitado nova tragédia. Mas a empresa não aceitou o acordo administrativo, e a ação civil pública impetrada em outubro de 2017 na Vara do Trabalho de Ouro Preto continua em andamento.

No intervalo, a Vale trocou de presidente — Murilo Ferreira foi substituído por Fabio Schvartsman, em 2017 —mas não de práticas. Prova disso é a tragédia ambiental e, sobretudo, humana em Brumadinho. Até ontem, havia 157 mortes confirmadas e 182 pessoas desaparecidas —a maioria esmagadora servia à mineradora e a seus fornecedores. Tornaram-se vítimas do maior acidente de trabalho da História do país, tragédia evitável, não fosse o desprezo generalizado pela prevenção.



O Globo – Cidade submerge no caos após mais uma tempestade de verão / Editorial


Temporal, que provocou deslizamentos e inundações, deixou seis pessoas mortas

Não há dúvida de que o temporal da noite de quarta e madrugada de quinta, que deixou pelo menos seis mortos, foi extraordinário — algumas regiões registraram em poucas horas até o dobro da quantidade prevista para o mês inteiro. Caso da Rocinha, onde choveu 130 milímetros. Mas essa ressalva não absolve os governos. É sabido que mudanças climáticas, potencializadas pela ação do homem, têm provocado fenômenos extremos com frequência cada vez maior —o Rio teve em 2019 o janeiro mais tórrido em 97 anos, segundo o Inmet. Além disso, a capital fluminense acumula um histórico de tragédias causadas por chuvas torrenciais nesta época do ano. Portanto, não foi a primeira, e certamente não será a última. A questão é: o Rio está preparado para essas situações? A realidade mostra que não.

Ao menos desta vez, a prefeitura alerto upara achegada de uma frente fria com possibilidade de chuva forte e muito forte, e recomendou que as pessoas não saíssem de casa. Foi acionado também o protocolo de crise. Postura diferente da adotada em junho de 2017, quando o secretário de Ordem Pública de Crivella, Paulo César Amendola, não divulgou o alerta “Paranã o provocar pânico”. É óbvio que é preciso informar a população, mas há que se ir além.

As chuvas — acompanhadas por ventos de até 110 quilômetros por hora, que derrubaram quase 200 árvores — causaram deslizamentos de terra e alagamentos generalizados. Mas certamente a precária conservação dos logradouros contribuiu para agravara situação. Com galerias de águas pluviais e bueiros obstruídos e falta de dragagem de rios e canais, não surpreende que em muitos lugares a água tenha demorado a escoar.

Os deslizamentos de terra, que mais uma vez provocaram tragédias no Rio, expõem a precariedade das moradias construídas em áreas de risco geológico. E o que a prefeitura tem feito em relação a isso? Nada.

Percebe-se também a falta de um plano de contingência. A Avenida Niemeyer, por exemplo, deveria ter sido interditada antes, e não depois do deslizamento que soterrou um ônibus. Quedas de barreira na região não são fato raro. Da mesma forma, os mergulhões da Barra, que viraram “piscinões”, deveriam ter sido fechados, para não se transformar em armadilhas para motoristas. Sem falar que bairros permaneciam sem luz mais de 12 horas após o temporal. O que reflete o despreparo da Light para um evento recorrente nesta época do ano.

Embora seja possível prever esses fenômenos extremos com razoável precisão, não há como evitá-los. Portanto, o que se pode fazer é reduzir danos. Mas, diante das seis mortes causadas pela tempestade, não há dúvidas de que autoridades falharam nessa tarefa.

O Estado de S. Paulo – ‘País úmido, como o Brasil, não deveria ter barragem à montante’ / Entrevista / David Chambers


Alto risco de infiltração é o maior problema; lógica do custo não pode definir modelo de construção, diz geofísico americano

R.J.
PEBBLESCIENCE.ORG

Geofísico. ‘O risco de colapso é inaceitável’

Especialista em barragens de mineração, o geofísico americano David Chambers, da Universidade da Califórnia (EUA), afirma que em países úmidos, como o Brasil, as barragens à montante não deveriam nunca ser utilizadas, por causa do alto risco de infiltração. Essa técnica de construção, mais barata e considerada insegura pelos engenheiros, foi utilizada para erguer as estruturas onde houve rompimentos: em Mariana (2015) e Brumadinho (em janeiro deste ano).

“Já ficou demonstrado que esse tipo de barragem oferece nível inaceitável de risco de colapso nessas regiões.” Ao Estado, ele afirma que haverá mais acidentes, se a construção de barragens for guiada pela redução de custos.

• O rompimento da barragem de Brumadinho é uma surpresa? Não estou surpreso. E vamos ver mais desabamentos como esse no futuro, se grandes mudanças não forem feitas. O mais importante é que precisamos mudar essa lógica em que o custo determina o modelo e a operação da barragem de rejeitos. A lógica é diferente, por exemplo, nas hidrelétricas, em que a barragem é considerada um bem. Na mineração, é um custo que se tenta minimizar, não um investimento.

• E essa lógica existe em países do mundo todo?

No mundo todo é assim. Não se trata de um problema do Brasil ou dos países em desenvolvimento. A parte surpreendente (da tragédia em Brumadinho) é que se tratava de uma mina que não estava em operação. E também o fato de o colapso ter sido aparentemente tão instantâneo. Mas até haver barragens mais seguras não é surpresa esse tipo de desastre.

• É comum ter instalações da empresa bem abaixo da barragem, como em Brumadinho? Normalmente vemos as pessoas trabalhando em instalações acima das barragens, não abaixo, por precaução. Mas isso reflete a confiança da Vale no sentido de achar que a estrutura não ia colapsar.

• Os colapsos de barragens vêm aumentando?

Nossas pesquisas mostram que o porcentual de colapsos é o mesmo nas últimas cinco décadas. O problema é que agora temos mais minas do que havia algumas décadas e elas são muito maiores.

• O que pode ser feito para elevar a segurança das barragens? Não podemos trazer o custo para essa equação. A lógica não pode ser como construir uma barragem mais barata. Nos países de clima muito úmido, como o Brasil, as barragens à montante são muito problemáticas. São construídas sobre os próprios rejeitos e, para isso, é preciso partir de algumas premissas. No caso de clima tão úmido, pode haver muitas variações nessas premissas. As barragens à montante devem ser proibidas em países em que as precipitações excedem a evaporação, bem como em áreas de risco sísmico (no Chile, por exemplo, esse modelo já foi vetado). Já ficou demonstrado que esse tipo de barragem oferece nível inaceitável de risco de colapso nessas áreas.

Fortalecimento comunitário em prol da conservação

WWFFortalecimento comunitário em prol da conservação



06 Fevereiro 2019   |   0 Comments
Por Frederico Brandão*

Não existe outro lugar no planeta que o líder comunitário Aldeci Cerqueira Maia, de 56 anos, mais deseje estar do que o seu lar, na Reserva Extrativista (Resex) Cazumbá-Iracema (AC). Apaixonado pela Amazônia e pela biodiversidade que o cerca, Nenzinho, como é conhecido, faz questão de defender a fauna, a flora, a água, o rio, o peixe e também as pessoas. “Ao viver em harmonia, ficamos todos bem”, enaltece.

Mas como estimular os jovens a se engajar na luta e garantir a sobrevivência do território para as futuras gerações? Preocupados com essa questão, Nenzinho e outras lideranças tradicionais, com mais de 20 anos de atuação na região, decidiram fortalecer sua comunidade implementando processos de mobilização, organização comunitária e gestão participativa para a formação de novas lideranças de forma a darem continuidade ao trabalho de desenvolvimento sustentável da Resex.

Uma das propostas foi a criação do Projeto “FormAÇÃO”, que desde seu início em 2014 capacitou mais de 40 novas lideranças comunitárias, entre jovens e mulheres, em processos de gestão participativa dentro da unidade de conservação (UC). Como resultado da formação, alguns deles tem assumido postos, por exemplo, na diretoria da Associação dos Seringueiros e Seringueiras do Seringal Cazumbá da Reserva.

O trabalho desenvolvido na Resex Cazumbá-Iracema aconteceu graças ao apoio do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) e é apenas um dos resultados de sucesso ilustrados no livro Fortalecimento Comunitário em Unidades de Conservação - Desafios, avanços e lições aprendidas no programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), lançado recentemente no Encontro Chico Mendes, em Xapuri (AC). A publicação mostra o impacto positivo da implementação de 23 planos de ação comunitários em UCs apoiadas pelo Programa até 2016.

O ARPA, na condição de maior programa de conservação de florestas tropicais do mundo, “promove a articulação e o fortalecimento de organizações comunitárias e comunidades humanas beneficiárias de unidades de conservação apoiadas pelo Programa, visando a utilização sustentável de recursos naturais”.

Para comunitários, como Nenzinho, o ARPA tem um papel primordial para o desenvolvimento de uma Resex. No caso da Cazumbá-Iracema, além do curso de formação, o ARPA também tem dado suporte logístico para atividades em geral, como transporte, combustível, alimentação, entre outros.

“Cerca de 80% dos nossos recursos destinados à gestão da Resex é proveniente do Programa e isso é imprescindível para o fortalecimento da nossa comunidade. Não consigo imaginar como uma Resex consegue se desenvolver sem esse apoio. Nós temos carros, quadriciclos, barcos, motos e bicicletas, que dão apoio aos técnicos, pesquisadores, gestores e à comunidade. Tudo isso traz melhorias na organização e gestão participativa do nosso Conselho e da própria gestão do ICMBio”, avalia.

Outro benefício proporcionado pelo ARPA na Resex acriana é a capacitação de mulheres para artesanato e corte e costura, que atualmente beneficia mais de 25 famílias diretamente. Além da Resex Cazumbá-Iracema, a publicação destaca também os seguintes projetos: fortalecimento comunitário na Resex Médio Juruá (AM) e na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Juma (AM); conservação de quelônios na Resex do Rio Ituxi (AM); pesquisa de recursos pesqueiros no norte do Amapá (AP); gestão territorial do Mosaico da Rebio Gurupi e Terras Indígenas no Maranhão; troca de saberes e fazeres entre indígenas e extrativistas do Médio Xingu, entre outros. Faça download da publicação ao lado e confira a lista completa.

Planos comunitários
Os planos comunitários descritos na publicação foram contemplados por editais de chamadas de projetos no valor de R$ 190 mil cada para Planos de Ação Sustentável (PAS), direcionados a populações tradicionais, e Planos de Ação dos Povos Indígenas (PPI), direcionados a unidades de conservação vizinhas a Terras Indígenas. Um terceiro edital ainda contemplou mais seis novos planos de ação.

Os editais apoiaram projetos de estímulo ao uso de tecnologias alternativas; ao uso sustentável dos recursos naturais; à subsistência alternativa à tradicional produção agroextrativistista; à capacitação em práticas de conservação ambiental e ao uso sustentável de recursos naturais; e ao estímulo à participação na gestão das unidades de conservação, via Conselhos Gestores.

Para o analista ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Marco Bueno, a publicação é fruto de um processo de construção e execução de projetos comunitários que durou mais de 3 anos. Feito em conjunto com as comunidades durante uma oficina de lições aprendidas em 2016, o livro traz histórias, percepções e análises dos povos tradicionais, indígenas e gestores de Unidades de Conservação que participaram da implementação dos projetos.  “Para o ARPA é uma vitória poder divulgar resultados como esses e constatar a importância que o Programa tem para a conservação da biodiversidade por meio da gestão participativa. Além disso, reforça nosso discurso de que a conservação se faz com as pessoas”, avalia.

De acordo com Marco Lentini, líder da Iniciativa de Florestas do WWF-Brasil, o Programa ARPA tem ajudado as comunidades em suas vocações e anseios ao permitir que as unidades de conservação tenham seus instrumentos de gestão e suas instâncias de participação e de decisão devidamente implementados. “Ao reconhecer estes direitos e contribuir com a implementação da UC, o ARPA também se destaca pelo apoio ao desenvolvimento social e econômico direto das comunidades, o que é crucial para a estratégia de conservação de longo prazo da Amazônia”, esclarece.

Além de ser um dos parceiros do ARPA, o WWF-Brasil tem ampla atuação na Resex Cazumbá-Iracema. É membro de seu Conselho Gestor e deu suporte técnico para o seu processo de criação em 2006 e apoio financeiro para seu funcionamento e operacionalização entre os anos de 2006 e 2014.  A organização apoiou ainda a conclusão do plano de manejo da Resex; a elaboração do Plano de Manejo da Copaíba; e a implementação dessa cadeia produtiva na região, que gerou em média uma renda adicional de R$ 900,00 em cinco meses de trabalho.

ARPA
O Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa) é uma iniciativa de longo prazo do governo brasileiro (2002–2039), sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente, para a conservação de 117 unidades de conservação ou 60 milhões de hectares no bioma Amazônia por meio da criação, consolidação e sustentabilidade financeira permanente dessas UCs.

O Arpa recebe recursos financeiros de doadores internacionais e nacionais (GEF/Banco Mundial, Governo da Alemanha/KfW, Fundo Amazônia/BNDES, Rede WWF/WWF Brasil, BID/Banco Interamericano de Desenvolvimento, Fundação Margaret A. Cargill, Fundação Gordon and Betty Moore e Anglo American), além de contrapartidas do governo federal e governos estaduais.

*Com informações da assessoria de imprensa do MMA

O Cerrado Acabou! – Entrevista Com Altair Sales Barbosa



O Cerrado Acabou! – Entrevista Com Altair Sales Barbosa

Portal Raízes
Altair Sales Barbosa é doutor em Antropologia / Arqueologia pela SMITHSONIAN INSTITUTION de WASHINGTON D.C.- Estados Unidos. Liderou as pesquisas na região de Serranópolis/GO, onde foi encontrado o esqueleto cujo teste de Carbono-14 mostrou ter 11 mil anos – O Homem da Serra do Cafezal. Altair Sales é o fundador do Memorial do Cerrado e do Instituto do Trópico Sub-úmido. Ele continua atuando, com genialidade e vasto conhecimento junto à PUC-Goiás. Concedeu uma entrevista exclusiva, originalmente publicada na versão impressa da revista Raízes Jornalismo Cultural em maio de 2015.
Raízes  – O Sr. se tornou uma das maiores referências mundiais em Cerrado, antropologia, arqueologia e meio ambiente. Já proferiu mais de mil palestras, principalmente de teor ambiental, e fez algumas declarações um tanto polêmicas, uma delas inclusive nos causa um desconforto muito grande, que é a afirmação de que “o Cerrado acabou”. Explique melhor essa afirmativa.
Altair Sales – O Cerrado, diferente dos outros matizes ambientais brasileiros, tem que ser entendido como um sistema biogeográfico. Sistema é um conjunto de elementos intimamente interligados, e qualquer modificação em um desses elementos provoca alterações maiores no sistema como um todo. No Cerrado temos ambientes totalmente ensolarados, como as campinas e os campos limpos, e ambientes sombreados, aqui mesmo próximo a Goiânia temos exemplos de resquícios dessas matas, no Parque Ecológico Altamiro Moura Pacheco.

O Cerrado tem essa variação de ambiente. Entre o ambiente ensolarado e o umbrófilo (sombreado), há todo um conjunto de outros ambientes stricto sensu, como o cerradão, a vereda, as matas ciliares, todos interdependentes. Modificou um deles, todo o sistema sofre mudança. Isso vem sendo observado numa história evolutiva de milhões de anos. Por exemplo, nos chapadões, onde se encontram as campinas e os campos limpos, é onde ocorre também a recarga do aquífero, que alimenta áreas de matas situadas em terrenos mais baixos.


A cobertura vegetal do cerradão, na área plana, é que garante a infiltração da água da chuva nas raízes das plantas. Retirada essa cobertura, a infiltração não ocorre como deveria, e isso prejudicará em maior ou menor grau todos os demais ambientes. O aquífero só é abastecido ali, as demais áreas são de descarga. Para responder à sua pergunta, é preciso ter uma visão global da História Evolutiva do Cerrado, uma evolução de mais de 60 milhões de anos. Houve uma adaptação a um tipo específico de solo, de clima, de agente polinizador que, se eliminado ou alterado, modifica as características dos demais elementos envolvidos.
Raízes  – Esses elementos polinizadores seriam as abelhas, os besouros, algo assim?
Altair Sales – Exato. Abelhas nativas, como, por exemplo, a Jataí. Determinadas plantas só são polinizadas por insetos específicos.
Raízes – Se a abelha morrer, a planta deixa de se reproduzir…
Altair Sales – Sim, você vai ver jatobazeiro, pés de araticum e outras plantas sem frutos. A planta pode até continuar existindo por certo tempo, mas não vai mais ter fruto, com isso não terá semente que propicie a reprodução da espécie, o que determinará seu fim.

Se você altera o solo, por exemplo, arando esse solo para plantar arroz, soja, aquele solo, que era oligotrófico – carente de nutrientes básicos –, recebe calcário para corrigir a acidez, recebe adubos ara aumentar a produtividade… se forem mudadas as características primitivas, não vai mais ser um Cerrado.
Raízes  – Se eu trago uma planta lá da Mata Atlântica, por exemplo, introduzo no Cerrado, por que ela não propicia o mesmo tipo de infiltração e manutenção do aquífero?
Altair Sales – Porque ela não exerce o papel ecológico próprio do Cerrado. O sistema radicular do Cerrado é muito complexo. Além da raiz pivotante, que é a raiz principal, que é mais profunda, há um sistema lateral de milhares de canais. Leve um pedaço mínimo de plantas do cerrado ao microscópio e verá milhares de radículas…
Raízes  – São “cabeludas”, né? Um exemplo é o tucum, certo?
Altair Sales – Isso mesmo. Essa planta tem uns 40cm acima do solo, mas há um sistema radicular muito complexo, o que garante uma longevidade ao tronco de até 1.000 anos, em alguns casos até mais do que isso. Cada raiz tem uma função ecológica importantíssima, a mais básica é fixar a água no solo. Um solo desnudo, com plantas exóticas introduzidas, não é capaz de reter a água. Uma insolação mais forte fará com que a água existente na parte superficial desse solo evapore e não alimente os lençóis mais profundos.
Raízes  – O Sr. diz, em um de seus estudos, que o Cerrado é como a cumeeira de uma casa. Por quê?
Altair Sales – A cumeeira é a parte mais alta de uma casa, a parte que recebe a água da chuva que flui pelos quatro – ou mais – cantos do telhado. O Cerrado recebe e retém a água da chuva… o verbo, infelizmente, ficaria melhor no passado: ele retinha essas águas e as distribuía para todas as bacias do continente.


Bacia Amazônica, do São Francisco, do Paraná e inúmeras bacias independentes, como a do Parnaíba, que, apesar de ser pequena em relação à Amazônica, é tão complexa que carreia sedimentos do Jalapão, da Chapada das Mangabeiras e forma o segundo maior delta das Américas, com mais de 74 ilhas, distribuindo as areias desde o Maranhão, formando os lençóis maranhenses e piauienses e indo até Jericoaquara, no Ceará. Algumas ilhas desse delta são tão grandes que têm dois municípios dentro delas. Tudo isso é terra levada pelo rio Parnaíba, que nasce no aquífero Urucuia, que está na Chapada das Mangabeiras e no Jalapão (no Tocantins) e vai dividindo o Piauí do Maranhão até chegar ao Atlântico.


A Bacia Amazônica, com todos os seus afluentes, tem suas nascentes, seu curso médio, situado na região do Cerrado. Da mesma maneira os rios Paraná e São Francisco, e praticamente todas essas águas se encontram na parte mais alta do Planalto Central brasileiro, que é em Formosa. Formam a Reserva Biológica das Águas Emendadas, com águas do São Francisco, do Araguaia e assim sucessivamente.
Raízes  – Além da Bacia do Paraná, essa cumeeira distribui águas das bacias do São Francisco e do Amazonas, Tocantins, Xingu…
Altair Sales – Sim, todas essas e mais Tapajós e até o Madeira, que é já no final do Cerrado. Depois da Serra dos Pacaás Novos, a alimentação é feita pelo rio Javari, que nasce numa ilha do Cerrado, em cima da Serra dos Pacaás Novos e depois o próprio Madeira, que nasce numa região do Cerrado, quando este se estende em direção ao Acre e Rondônia.
Raízes – É possível ter uma casa sem cumeeira, Professor?
Altair Sales – É impossível, porque a água cai e alaga o solo, forma uma lagoa, se o solo for impermeável. Se não for, a água vai escorrer e desaparecer.
Raízes  – Isso quer dizer que, se o Cerrado não absorve essa água, ela pode provocar grandes inundações e desastres ecológicos?
Altair Sales – Sim, cheias repentinas, como no Meia Ponte, no Botafogo, no Tietê (em São Paulo), por exemplo, durando de um a cinco dias. A água que existe hoje no planeta, pelos parâmetros estudados, sempre existiu. Não é que a água vai “acabar”, pelo menos a curto prazo, e curto prazo em Geologia quer dizer milhares e milhares de anos.

A água em seu volume atual sempre existiu em 60 milhões de anos, o que ocorre é que ela muda de local. Hoje ela só está aqui graças às condições que formam um aquífero importante. Amanhã ela pode estar em outro lugar. Ela pode inclusive salinizar totalmente e formar apenas águas oceânicas.
Raízes  – O Oriente Médio, na época bíblica, tinha muitas matas de araucárias e cedros, e hoje é em boa parte um grande deserto.
Altair Sales – O mundo todo, do Pleistoceno, quando houve uma glaciação, para agora, teve suas paisagens radicalmente mudadas. O mundo moderno se formou a partir da última glaciação. O deserto de Atacama era uma floresta temperada 11 mil anos atrás. Hoje, é o mais seco deserto do mundo.

Como em tantos outros casos de grandes lagos que secaram, a vegetação não existe mais. O Saara também tinha uma vegetação exuberante, floresta equatorial, e tudo secou durante o Pleistoceno em função das correntes marinhas, que afetaram as correntes aéreas, terminando por mudar completamente o clima lá.
Raízes – Professor, fale um pouco a respeito do livro que o Sr. escreveu, com outros autores, sobre a Juriti Pepena. O que é essa ave?
Altair Sales – Então. O livro é bastante interessante, foi inspirado numa lenda indígena do Centro-Oeste brasileiro e de parte do Norte do país. A Juriti Pepena é uma ave invisível que habita as touceiras de catiguá, que é um tipo de inhame de folha riscada, de ocorrência nos brejos do Cerrado. Segundo a lenda, quem ouve os pios lamentosos desse ser passa por uma série de desgraças e sua vida vira uma infelicidade só, isso apenas pode ser revertido com a intervenção de um pajé dotado de muita sabedoria. Se isso não acontecer, a pessoa poderá ficar aleijada para sempre.
Raízes – Vamos supor que a nossa sociedade, como um todo, já tenha ouvido esse pio, e não há um pajé para intervir. A sociedade progressista, nós todos já estamos nessa situação?
Altair Sales – (risos) Boa analogia! Se não houver uma intervenção, uma mudança drástica no modelo econômico que escolhemos e adotamos, eu não tenho a menor dúvida em afirmar que já estamos caminhando com dificuldades. Daqui a pouco poderemos ficar paralíticos ou aleijados para sempre. Agora, é importante entender que o meio ambiente é formado por elementos interligados: ar, fogo, litosfera, atmosfera, comunidades de plantas e animais, e tudo isso está ligado ao Homem também.

O que aconteceu às comunidades humanas que ocuparam nossa região? Primeiro, houve até certo tempo uma reação em que fazendeiros muito bem estabelecidos não tinham em suas propriedades escolas ou hospitais. Pensando nos filhos e na conquista de um futuro melhor para eles, enviaram-nos à cidade grande. No começo, o pai ficou na fazenda, mas, movido em parte pela necessidade de serviços de saúde e hospitalares na medida em que a idade avançava e em parte pela saudade dos filhos, também ele se mudou. Nossa ancestralidade rural passou por uma migração lenta.

As terras foram sendo arrendadas. A partir de 1970, foram sendo criadas as multinacionais, o grande capital internacional entrou de vez em nosso país, por arrendamento ou por grilagem de terras.

Com isso, posseiros foram expulsos da terra por meio da falsificação de documentos em cartório ou pela compra de políticos corruptos que facilitavam os trâmites legais, uma vez que só o Estado podia dar a escritura definitiva de uma antiga posse. As comunidades rurais, desestruturadas, buscaram abrigo na cidade, onde se viram massacradas pelos meios de comunicação de massa, programas altamente banais que faziam e fazem a cabeça da população brasileira.

As pessoas oriundas do meio rural geralmente vêm parar em zonas urbanas periféricas, que são quase sempre ambientes muito desestruturados. A mídia instiga o consumismo, mas a falta de dinheiro impede a sua concretização, o que leva algumas dessas pessoas a uma vida de crimes.

A estatística carcerária brasileira mostra que 99,9% dos presos são jovens e/ou negros e/ou pobres. Quem provocou tudo isso? Pessoas protegidas por uma redoma tão invisível quanto a Juriti Pepena, um muro chamado impunidade. Enquanto isso, os prejudicados não veem perspectivas e desvalorizam as próprias vidas.
Raízes  – Em suma, nós vivemos um desarranjo social que é, na verdade, um desarranjo ecológico.
Altair Sales – Ambiental. Um desarranjo ambiental que provoca toda essa desestruturação social.
Raízes  – Observando atentamente a sua fala, Professor, a gente percebe que não se trata apenas de uma teoria, de uma coisa de professor universitário. A realidade, com suas tragédias e catástrofes, corrobora os alertas dos ambientalistas…
Altair Sales – Exato. O que aconteceu no reservatório do Sistema Cantareira, em São Paulo, é uma consequência do que está sendo feito no Cerrado. Estamos colhendo os frutos de um planejamento inadequado. O Cerrado, de uns tempos para cá, tem sido incluído na política econômica brasileira, como um avanço da fronteira agrícola, sem que se ouça a comunidade científica. Vão tocando o barco sem se preocupar com o futuro da Humanidade.

É agronegócio sem zoneamento adequado. Na verdade é possível conciliar meio ambiente e agronegócio sadio. Tem que haver um mapeamento agroecológico para que não haja efeitos nocivos à natureza. Em São Paulo, o sistema é alimentado pelo rio Piracicaba, que é afluente do rio Doce, que por sinal tem nascentes no aquífero Bambuí, que é típico do Cerrado, embora seja uma bacia independente. O Piracicaba nasce no arenito Botucatu, no aquífero Guarani, de onde suga a água para abastecer o Sistema Cantareira.

Porque a água que cai nas escarpas da Serra da Cantareira é incapaz de encher todo aquele grande reservatório, precisa de um aquífero de grandes proporções como o Guarani era. Num dos períodos cíclicos em que se observam influências do El Niño, La Niña e outros eventos periódicos, houve uma grande estiagem, com drástica diminuição da água da chuva, e as represas não foram alimentadas como deveriam.

A represa deveria, então, ser sustentada pelos rios que a alimentam. Só que os aquíferos também já chegaram aos seus níveis de base, não tem água hoje como há 20 anos. Consequência: a maioria dos rios desapareceu, os menores, e os maiores tiveram a vazão muito reduzida. O Governo pensou em colocar uma sonda para chegar ao arenito Bauru, mais antigo que o Botucatu, e sugar aquela água para alimentar a represa. Felizmente não se fez isso, seria um desastre ambiental de grandes proporções.

Agora o pensamento é captar água da nascente do Paraíba do Sul para suprir a necessidade da represa Cantareira. É uma transposição que pode ser benéfica a curto prazo, mas em mais ou menos cinco anos poderá haver problemas para a bacia do Paraíba do Sul (que alimenta os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo) e também para o Sistema Cantareira.

O aquífero Guarani não está sendo reabastecido como deveria, porque foram retiradas as plantas nativas dos chapadões e no lugar foram implantadas variedades exóticas, como soja e algodão melhorado geneticamente, que têm raízes sub-superficiais, diferentes das raízes das plantas do Cerrado. Cai a chuva e a água, em vez de infiltrar, empoça e não é sugada pela planta, nesse caso uma insolação mais forte ou mais prolongada provoca níveis de evaporação indesejados.
Raízes  – Curva de nível feita nas lavouras não resolve esse problema?
Altair Sales – Não, porque a curva de nível acumula a água na primeira vez, na segunda já forma na base da curva uma argilificação do solo. A argila é uma rocha impermeável e não deixa a água penetrar. A água pode até ficar retida, mas fica empoçada, criando ambientes propícios à proliferação de insetos nocivos, como o Aedes aegypti.
Raízes – Por falar em transposição, há o caso do Rio São Francisco, no Nordeste. Lá também há o risco de se agravar em vez de se resolver o problema?
Altair Sales – No caso específico do Rio São Francisco, se houver a concretização da transposição, vão praticamente acabar com o rio, que hoje já tem trechos que podem ser atravessados a pé. Já foi considerado entre os maiores rios do mundo, hoje nem é como naquela música do Luiz Gonzaga, “Riacho do Navio corre pro Pajeú, o Rio Pajeú vai despejar no São Francisco, e o Rio São Francisco vai bater no meio do mar”. Aquilo ali já não é mais verdade, ele não bate mais no mar.

É o mar que avança em direção ao Rio São Francisco, que começa a morrer da foz à nascente. Na transposição, há dois grandes canais, um de 25m de largura por 12m de profundidade, com 750 km, é o Canal Norte, e outro com as mesmas medidas e com 600 km, que é o Canal Leste. A ideia é bombear a água do Sobradinho para encher esses canais e fazer dois grandes rios que vão correr pelo Nordeste. As bombas d’água vão alterar a mecânica do rio. Ele correrá mais depressa, com isso chupará mais os afluentes, que já estão exauridos. Os afluentes menores vão assorear e sumir.
Raízes  – E a gente percebe isso no dia a dia, em Goiânia e região inclusive, a depredação do Cerrado é um fato. Há poucas reservas de Buriti, que é o grande esteio, o grande monumento do Cerrado. Em sua opinião, Professor, o que o pequeno produtor pode fazer para ajudar, se não a parar, pelo menos a desacelerar esse processo de devastação?
Altair Sales – Pouca coisa. Claro que ele, se quiser, pode tomar providências, mas são os latifúndios, praticamente cidades que surgem da noite para o dia, como Luís Eduardo Magalhães, Chapadão do Céu, São Lucas do Rio Verde – que tem até um time de futebol melhor que o Vila Nova, embora pouquíssima gente admita isso –, são esses grandes capitais dinâmicos que trazem uma nuvem que cega para a verdadeira imagem do futuro. Cercar a área do córrego e impedir que o gado a pisoteie, com isso protegendo o lençol freático, é uma boa opção, mas de modo geral a contribuição do pequeno produtor é mínima.

Os grandes dizimadores do futuro é que teriam que mudar seu comportamento predatório. Por isso eu disse que o Cerrado não existe mais. Você não pode medir a degradação do meio ambiente apenas pela existência ou não de certas plantas. É preciso que existam comunidades, tanto animais quanto vegetais. Caso contrário, haverá uma degeneração, inclusive pelo cruzamento indevido de espécies. Nossos animais estão praticamente todos no livro vermelho da extinção, principalmente pela falta de espaço para que sobrevivam. 


E além da ação do Homem, ainda há dois inimigos naturais da fauna silvestre que foram trazidos pelos europeus, que são o gato e o cachorro domésticos. Ambos são animais exóticos, ou seja, não nativos daqui. O latido do cachorro, no meio rural, provoca um tamanho nível de estresse em pequenos animais e pássaros silvestres que, em alguns casos, impedem a procriação deles.

Quanto ao gato, trata-se de um predador por natureza, pondo fim a passarinhos, calangos, micos etc. com a proliferação das pet shops, que tratam melhor esses bichos do que o sistema de saúde humano trata as crianças pobres, a Humanidade – e aqui especificamente a gente goiana – está criando seres que acabarão com a fauna nativa. Eu tenho pena dos filhotes de Lobo-Guará, de tamanduá, de raposa, de meleta, de ouriço, porque eles já não têm mais para onde fugir.
Raízes – O Lobo-Guará, inclusive, segundo um estudo seu, Professor, ajuda na proliferação de plantas como o araticum…
Altair Sales – Sim, as sementes do araticum só quebram a dormência no intestino delgado do Lobo-Guará, da raposa, do Cachorro-do-Mato Vinagre – esses sim, canídeos naturais de nosso bioma –, que defecam e proporcionam a germinação dessa planta
Raízes – Sem falar que grande parte do que comemos tem origem indígena, e muitas pessoas sequer suspeitam disso…
Altair Sales – Verdade. Se pensarmos para além das aparências, veremos que quase tudo o que entra em nossa dieta é contribuição indígena. O milho, cultivado desde sete mil anos atrás no México, tem sido modificado pelos índios do Cerrado. São inúmeros produtos derivados do milho que fazem parte da culinária do mundo todo, e não apenas alimentos, mas também combustíveis e remédios.

Da mesma maneira ocorre com a mandioca. Farinha, tapioca, beiju, suportes para remédios, polvilho etc. O tomate também, foi domesticado pelo nosso índio. Ainda há reservas de tomate primitivo, que originou primeiro o tomatinho de capoeira, que por sua vez deu origem ao tomate atual. O abacate, o abacaxi, tudo planta nativa domesticada e aperfeiçoada no Cerrado.

Quanto ao chocolate, derivado do cacau, o índio fazia a sebereba, uma bebida energética também chamada jacuba, não só do cacau, mas também do buriti. Batia, cozinhava, tirava a polpa, misturava mel de abelha, adicionava água e bebia. Isso foi ensinado aos europeus, que adicionaram leite, pois o gado é de origem mista europeia e indiana.

Vamos pensar na borracha, o mundo se move sobre ela, nos pneus dos veículos, no solado dos sapatos. Pois é, a seringueira dá o látex, que faz inúmeros produtos, inclusive a camisinha. Inúmeras plantas medicinais incorporadas à farmacopeia internacional têm origem no Cerrado. O quinino, que cura malária… ficaríamos a tarde toda enumerando as contribuições.


Todos os tipos de pimenta vêm da Malagueta, que é nossa. Mas, sem dúvida alguma, a maior contribuição é mesmo a sabedoria, o exemplo da relação saudável com a Natureza, que ainda não aprendemos, mas ainda podemos aprender se as escolas cumprirem a função para a qual foram criadas. Só que não há uma eternidade para isso. Se o Homem não mudar seu procedimento, chegará o dia em que será tarde demais.
Raízes  – Para encerrar, Professor, vamos falar um pouco mais do livro “O Piar da Juriti Pepena?”.
Altair Sales – Claro! O subtítulo é “Narrativa Ecológica da Ocupação Humana no Cerrado”. O pano de fundo é o meio ambiente e o modo de narrar é fruto de uma escola antropológica que nós criamos e depois ajudamos a aperfeiçoar, quando ainda estávamos nos Estados Unidos. O livro tem o suporte teórico dessa escola, a “ecologia cultural”, que tem suas bases no neo-evolucionismo e no neo-marxismo. Há duas formas de você ver a realidade: uma é situando-se fora dela, como observador, a outra é de dentro pra fora.

O livro foi escrito numa concepção que se põe dentro do universo estudado, e somos afetados por tudo o que ocorre com esse universo. Desde os primórdios, há 12.000 anos, passando pelos bandeirantes com as primeiras cidades fundadas aqui, os variados ciclos econômicos, até chegar ao impacto do sistema capitalista e os dias de hoje. Tudo isso foi dando um novo desenho ao lugar que ocupamos, modificando o que colhemos, nós e as gerações futuras.

O livro pode ser encontrado em várias livrarias, mas principalmente na Biblioteca da UCG-GO. A primeira edição está praticamente esgotada, depois de um período de três anos e três lançamentos, na própria UCG, no Instituto Histórico e Geográfico e também na UnB. Isso nos incentiva a continuar escrevendo.
 Raízes  – A gente agradece pela entrevista. Muito obrigado, Professor Altair Sales.
Altair Sales – Eu é que agradeço pela oportunidade de levar a público algumas de minhas ideias, espero ter contribuído para a formação de uma consciência ambiental da população goiana.