quarta-feira, 11 de julho de 2018

‘Sob a pata do boi’ radiografa a pecuária na Amazônia e expõe a crueza da relação do homem com os bichos


Por Amelia Gonzalez, G1

02/06/2018 13h39  Atualizado 02/06/2018 13h39


 Documentário “Sob a Pata do Boi” (Foto: Divulgação)

“Precisávamos de uns 200 homens. Aí, alugamos um galpão em São Felix (do Xingu), colocamos uma cozinheira fazendo farofa, muita cachaça para esse povo. E a gente ia em todo bordel, hotel, canto de rua, a gente ia pegando esse povo, pagando a conta desses peões e colocando todo mundo lá dentro (do galpão). Ficava (sic) dois na porta da frente, dois no fundo para não deixar ninguém fugir. (Os homens) Ficaram lá dentro meio que presos, né? – até arrumar os 200. Porque não podiam sair lá de dentro. 


E aí a gente teve o apoio da polícia na época, a polícia ajudou a gente a tirar esses homens de dentro do barracão para levar até a balsa, se não também ninguém ficava, todo mundo corria (risos). Conseguimos fazer uma fila de homem e colocamos na balsa. No outro dia, todo mundo andando 15 quilômetros até chegar lá na fazenda. Quem veio para cá (Amazônia), naquela época (década de 70, 80), sempre tem uma história dessas.. Já escravizou gente? Se for, eu também (mais risos). Não tinha outra alternativa, aquilo ali que era o mundo de todo mundo”.


O relato é de um produtor rural da Amazônia no excelente documentário “Sob a Pata do Boi”, dirigido por Marcio Isensee e Sá, que conta a história da cadeia agropecuária na Amazônia desde a década de 70, quando o governo começou a fazer convites para que ela fosse habitada. O filme faz parte de um projeto de jornalismo investigativo, crava denúncias seriíssimas, como o envolvimento do ex-ministro do meio ambiente José Sarney Filho com os produtores do Pará, mostrando como o político sabe muito bem falsear as informações que decide compartilhar com os cidadãos comuns.


Numa entrevista direta à equipe do documentário, Sarney Filho decide antecipar uma megaoperação que iria acontecer, fechando, multando, responsabilizando frigoríficos que foram flagrados comprando carne de bois criados em fazendas responsáveis por desmatamento. Mas num vídeo obtido pela equipe, três dias depois de a megaoperação de fato acontecer, atingindo 15 frigoríficos, Sarney Filho fala o seguinte aos produtores do Pará:

“Minhas amigas e amigos, quero dizer a vocês que eu, como ministro do Meio Ambiente, não fui avisado pelo Ibama dessa operação”.

Desde o pano, nada a comentar. O problema está além das picuinhas políticas, pode afetar seriamente a exportação de carne porque não há mais lugar, internacionalmente, para gado criado de maneira devastadora para o meio ambiente, como ainda acontece na Amazônia. Desde que começou a integração da região com o resto do país, foco dos militares na década de 60, até 2004, muita terra foi devastada para caber bois.

Hoje, 110 frigoríficos são responsáveis pelo abate de 93% de todo o gado da Amazônia. São 85 milhões de cabeças de gado, três para cada habitante. O representante da JBS fala no documentário, e se orgulha:

“Temos 70 mil fornecedores de gado, sendo 40 mil na região da Amazônia. E temos comprado 35 a 40 mil cabeças por dia.”

Carne de boi é o que não falta no Pará, que exporta prioritariamente para a Arábia Saudita e vários países da Ásia. Mas no último IDHM (Atlas do Desenvolvimento Humano) do país, o Pará não estava nas melhores posições, ou seja: o bem estar social não é atingido pela abundância de dinheiro conseguido pela exportação. Isso também não é novidade, mas é sempre bom lembrar. Em São Félix do Xingu, um dos locais visitados pela equipe, são 24 bois por habitante. O pecuarista José Aureo Aureliano dos Santos dá o tom da conversa:

“Ninguém vive em torno de prejuízo, e sim em torno de lucro. Jamais vou desistir de criar boi ou vaca. Porque agricultura, aqui, não dá lucro”.

E toma de boi, e toma de desmatamento. Na década de 70, 1% das terras estavam desmatadas, e hoje são 20%.

A Amazônia foi colonizada pela pata do boi. Para Paulo Adário, do Greenpeace, “o boi é hoje o principal problema ambiental da Amazônia e do mundo”. E para entender melhor esta relação, é imprescindível perceber a naturalidade com que os produtores falam sobre a maneira como o boi vira lucro:

“O gado exige uma estrutura muito menor. Quando a gente forma uma fazenda, derruba a mata, queima e joga semente de avião. Não entra nenhum trator”, diz Mauricio Fraga Filho, da Associação do Pará.

O Prefeito de Redenção, Carlos Iavé, chega a defender a degradação de maneira quase infantil: “Se nunca ninguém derrubasse nada no mundo, íamos viver como?”. Sugiro perguntar a índios, quilombolas e ribeirinhos, talvez eles possam dar ideias sobre como viver, e se alimentar, sem precisar degradar o ambiente entorno.

O estímulo para ocupar a Amazônia e transformar essa ocupação numa fonte inesgotável e abundante de renda veio, como lembro no início do texto, do governo na época da ditadura militar. E, hoje, a maioria dos produtores reclama, dizendo que as leis são “fracas”, o que justificaria o estado geral das coisas.

“O sentimento de impunidade é que faz a gente querer ser ilegal”, dizem, como justificativa de tanta ilegalidade.

Grileiros se apossam de terras, ocupam apostando que a regra vai ser mudada e que eles vão dar um jeito de obter algum lucro, o que acaba acontecendo mesmo.

Paulo Barreto, pesquisador do Imazon, conta de onde vem a palavra grileiro:

“Eles arrumam um documento novo, “título de propriedade de terra” (falso) mas aquele documento tem que parecer velho. Abrem uma gaveta, jogavam vários grilos dentro, botavam o papel lá. Depois de alguns dias ele parece um documento velho, com as fezes e comido por grilos”, diz ele.
A lógica é a desenvolvimentista, do lucro a qualquer custo. A denúncia não vem fora de hora, não é inédita, mas é imprescindível. E escolho debater uma questão que transcende o lucro, o capitalismo, o desenvolvimentismo.

Quero botar na mesa uma reflexão séria sobre a relação do homem com o homem e do homem com os animais, o que me parece estar presente o tempo todo no documentário. Peço ajuda, aqui, de Yuval Noah Harari, historiador que escreveu “Homo Sapiens – uma breve história da Humanidade”, em que, entre outras coisas, acusa a forma como o homem trata os animais só por sentirem que eles são inferiores. E afirma que, como já se sabe e já foi demonstrado cientificamente, os animais, todos, são seres sensíveis à dor e a outras emoções.

Uma das visitas da equipe de “Sob a pata do boi” foi a um rodeio, que considero das festas mais absurdas e sem sentido. Lá, uma câmera sensível consegue captar o olhar do boi quando é cruelmente impedido de se mexer, pouco antes de entrar na arena pré-histórica onde adultos histriônicos aguardam a peleja covarde. Para quem consegue perceber um pouco mais do que o lucro rápido que vai ganhar com tanta “euforia”, é visível a expressão de medo, é claro que o animal sabe que o sofrimento está apenas começando, e que já está sem a mínima condição de reagir a nada. Vai morrer. 

Pior do que isso: vai ser sacrificado antes. Para puro deleite e gáudio dos seres humanos.

Perdoem-me a irritação, mas não consigo evitar adjetivos fortes ao descrever esse tipo de “festa” (assim mesmo, entre aspas, por favor). E, para quem já ensaia um argumento pueril, de que se os bois não fossem mortos não teríamos o que fazer com eles, eu argumento que muitos desses bichos estão sendo acasalados com o único objetivo de alimentar seres humanos. É possível, com uma produção e criação consciente, diminuir a produção e fazer como se faz com as árvores quando se tem consciência ambiental: as mais velhas são derrubadas, pouco antes de, elas próprias, já se sentirem abatidas.

Feito o comentário, quero acrescentar que não vejo muita diferença entre o aprisionamento do boi e o aprisionamento de homens como o descrito no início do texto. Tenho, por isso, de novo o aval de Yuval Harari para concluir que a humanidade, de fato, só conseguirá ter uma relação menos egoísta com a natureza quando respeitar todos os seres que convivem no espaço planeta. Inclusive os da própria raça.

O documentário é imprescindível e poderá ser visto, no Rio, dia 7 de junho (Museu do Meio Ambiente) e, em Belém, no dia 4. Depois disso, haverá possibilidade de assistir on demand.


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