Apesar dos indicadores de melhoria da qualidade ambiental e das
emissões nas áreas urbanas, o período de confinamento acabou provocando
efeitos ambientais preocupantes.
Como a pandemia contribuiu para aumentar o desmatamento na Amazônia (Foto: Felipe Werneck/Ibama)
Os impactos do confinamento provocado pela Covid-19 geraram uma
percepção de melhoria, mesmo que temporária, das condições ambientais
nos centros urbanos. Relatos de animais visitando grandes cidades ou
locais antes tomados por turistas e os registros do céu limpo e sem a
usual fumaça de poluição indicaram uma possível atenuação das mudanças
climáticas no primeiro semestre do ano. Um estudo publicado em maio na
revista Nature Climate Change identificou uma redução média de 17% nas
emissões diárias globais de gás carbônico (CO2) no início de abril, em
comparação com a média de 2019. Seis setores econômicos foram
considerados: energia, indústria, transporte de superfície, aviação,
edifícios públicos e comércio e o setor residencial.
No entanto, enquanto atividades classificadas como não essenciais
foram total ou parcialmente paralisadas em áreas urbanas, o desmatamento
de florestas tropicais foi acelerado não somente na Amazônia, mas
também em outras regiões do mundo. É de se esperar que as emissões
ocasionadas pela perda florestal tenham contrabalanceado ao menos parte
das emissões reduzidas por outros setores, considerando que: 1) as
florestas estocam uma grande quantidade de carbono em suas diferentes
partes (tronco, raiz, folhas etc.), 2) o desmatamento acaba resultando
na liberação desse carbono para a atmosfera sob a forma de CO2 e 3) o
desmatamento contribui com cerca de 10% das emissões globais anuais
desse gás (no Brasil as mudanças do uso da terra representam 44% do
total das emissões de CO2).
Dados do Global Land Analysis and Discovery (GLAD), da Universidade
de Maryland, nos Estados Unidos, apontam um aumento de 150%, 95% e 40%
nos alertas de desmatamento na África, Ásia e América do Sul,
respectivamente, no período de fevereiro a junho de 2020, em comparação
com a média de 2017 a 2019. Na África, o aumento mais expressivo está
relacionado sobretudo à necessidade de lenha para o preparo da
alimentação ou à venda de madeira como única fonte de renda de famílias
em situação de extrema pobreza — e ainda mais isoladas pela pandemia.
Já na Ásia e na América do Sul, as causas estão associadas a vários
fatores, como expansão do agronegócio irregular, grilagem de terras,
extração de madeira e mineração ilegais. O incremento nas exportações de
carne para a China durante o pico da crise da Covid-19 por lá também
ajudou a acentuar o desmatamento. Todas essas atividades foram
facilitadas num contexto de diminuição da fiscalização, em que governos
focados nos impactos econômicos da Covid-19 colocaram em segundo plano a
proteção de florestas tropicais.
Na Amazônia brasileira, também entre fevereiro e junho, os alertas de
desmatamento aumentaram 49% em relação à média de 2017 a 2019 (e 25%
quando comparados a 2019, que havia sido um recorde), segundo o sistema
de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe). Esse número leva em conta não somente as
áreas potencialmente desmatadas como também novos locais de ocorrência
de mineração.
A distribuição dos alertas no período analisado, que engloba
diferentes categorias de uso da terra (veja no gráfico abaixo), mostra
três grupos. O primeiro é composto pelas florestas públicas não
destinadas, com a maior incidência do desmatamento (39% da área de
floresta perdida total). No grupo intermediário em termos de área
desmatada (entre 14% e 19% da área total), encontram-se projetos de
assentamento, grandes imóveis rurais (maiores que 1125 hectares) e
unidades de conservação de uso sustentável (UCUS). No terceiro grupo,
com desmatamento inferior a 5% do total perdido, estão imóveis rurais
médios (entre 300 e 1125 hectares) e pequenos (menores que 300
hectares), terras indígenas e unidades de conservação de proteção
integral (UCPI). Esses dados dão uma dimensão da dinâmica do
desmatamento ilegal na Amazônia num período em que as atenções estavam
concentradas na pandemia — que ainda não terminou.
Desmatamento
em imóveis rurais grandes (IRg), médios (IRm) e pequenos (IRp);
projetos de assentamento (PA); terras indígenas (TI); unidades de
conservação de proteção integral (UCPI) e de uso sustentável (UCUS) e em
terras não destinadas da Amazônia, no período de fevereiro a junho de
2020 (Foto: TNC a partir de dados do DETER (INPE), SICAR e CNFP (SFB),
INCRA, FUNAI e ICMBio)
As florestas não destinadas são terras públicas que pertencem ao
governo federal ou aos estados, mas que ainda não foram alocadas para
nenhuma categoria de uso. Portanto, o alto desmatamento incidente nessas
áreas pode ser considerado como ilegal e, em geral, resultado de
grilagem.
Existem hoje na Amazônia quase 62 milhões de hectares de terras não
destinadas, de acordo com dados atualizados em 2019 pelo Cadastro
Nacional de Florestas Públicas (CNFP) do Serviço Florestal Brasileiro.
Outros 2,6 milhões de hectares estão distribuídos pelos demais biomas
brasileiros, sobretudo no Cerrado. Historicamente, essas terras têm sido
alvo de especuladores e desmatadores e, até 2019, só na Amazônia mais
de 3,6 milhões de hectares (6%) das florestas em áreas sem destinação
foram perdidas, segundo indica a sobreposição com dados de desmatamento
anual do Prodes, também do Inpe.
categorias, o desmatamento entre fevereiro e junho deste ano aumentou
aproximadamente 60% e 40%, respectivamente, em relação ao observado em
2019 no mesmo período. Nas terras indígenas, esse aumento está associado
à invasão por grileiros, madeireiros e garimpeiros, os quais têm sido
apontados como os principais vetores da Covid-19 entre várias
comunidades indígenas. Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (COIAB), 113 povos dos nove estados da Amazônia
haviam sido atingidos pela doença até 20 de julho de 2020. Para evitar a
infecção pelo novo coronavírus, muitas populações indígenas ribeirinhas
na região do Tapajós buscaram o isolamento no interior da floresta.
Nos pequenos imóveis rurais foi observada uma redução no desmatamento
entre fevereiro e junho de 2020 em relação ao mesmo período de 2019 ou à
média de 2017-2019. Em geral, a agricultura familiar praticada nesses
imóveis fornece produtos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE) e para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ou vende em
feiras locais.
Durante o primeiro semestre deste ano, com fechamento de
escolas, falta de transporte e tendo eles mesmos de se isolarem, muitos
pequenos produtores viram o escoamento de sua produção e sua renda
praticamente zerar — o que contribuiu para a redução da abertura de
novas áreas de cultivo. No entanto, mesmo afetados pela interrupção da
cadeia de abastecimento, com uma produção baseada na diversidade, muitos
desses produtores conseguiram ao menos garantir uma certa segurança
alimentar.
Em síntese, a crise mundial causada pela pandemia relaxou ainda mais
as medidas de fiscalização das florestas tropicais e facilitou sua perda
no Brasil e no mundo. E se algumas espécies animais ganharam
temporariamente mais espaço em áreas urbanas, um número muito maior
perdeu permanentemente seu habitat natural. Da mesma forma, as emissões
de CO2 evitadas pela paralisação dos principais setores econômicos foram
provavelmente anuladas pelas emissões por desmatamento.
É necessário reforçar que a mudança no uso da terra também é o mais
importante fator de transmissão para as pessoas de microrganismos cujos
principais vetores são os animais silvestres. Além de todos os serviços
ambientais que as florestas nos prestam é urgente controlar o
desmatamento até para evitar o desencadeamento de surtos de outros
“novos” coronavírus.
*Edenise Garcia é diretora de ciências e Mariana Soares é
especialista em ciências, ambas na The Nature Conservancy (TNC) Brasil.
Para saber mais, acesse: www.tnc.org.br
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