A notícia de que crianças morrem de fome nos arredores da maior mina de ouro no mundo, em Papua, província da Indonésia causou um grande impacto, como não podia deixar de ser. Mas o susto maior é saber que não se trata de um caso único, isolado. E também não é de hoje que a desigualdade mostra sua face mais cruel quando expõe a riscos e miséria populações inteiras que são, por outro lado, obrigadas a dividir seu território com empresas que extraem dele grandes somas.

Há ainda, para pôr tintas mais sombrias ao cenário, a questão ambiental. Estamos assistindo acontecer agora,aqui no Brasil, desastres ambientais em Minas Gerais e em Barcarena para não falar de Mariana, município mineiro que se tornou conhecido mundialmente depois que foi praticamente soterrado por lama, resultado de um erro grosseiro numa produção de minério. Tudo isso causado por empresas. Serão elas, então, as vilãs da vez? O que aconteceu com o movimento de responsabilidade social corporativa, tão em evidência no início do século?

Não, as empresas não são as grandes vilãs, me diz Adriano Campolina,coordenador executivo da ActionAid  organização é voltada para promover direitos humanos e tentar acabar com a pobreza no mundo em nível internacional. Campolina agora está na África do Sul, atual sede da ActionAid, de onde conversou comigo via Skipe na manhã de segunda-feira (12). Ele ressalta, no entanto, que as empresas poderão se tornar perigosamente destruidoras caso não sejam reguladas pelo Estado.

"Não sou contra as empresa, elas são fundamentais. Mas se a sociedade não forçar o governo a exercer seu papel regulador, elas podem nos destruir".

Segue a entrevista:

Para quem está sempre ligado aos temas relativos à pobreza e degradação do meio ambiente no mundo, essa notícia de que na Papua os moradores dormem sobre ouro em camas de palha não chega a ser novidade. Como você está sempre atualizado, gostaria de saber: esse tipo de situação, de empresas explorarem os recursos naturais e deixarem uma miséria em volta,  está estagnada, há mais debates, algum sinal de melhora?

Adriano Campolina – Trabalhamos com a ActionAid em 45 países e o que posso lhe dizer é que é uma tendência, onde quer que se olhe. Aqui na África do Sul fizemos estudos sobre comunidades que têm muito carvão vegetal, e é impressionante. A primeira coisa que elas perdem é  terra que elas tinham para suas atividades de agricultura ou quais outras, depois vem a contaminação, a quantidade de poluente que fica pós industrialização é tremenda. E quando as empresas saem, fica uma terra arrasada. Já a comunidade fica ainda mais pobre do que antes. No caso aqui é ainda mais irônico porque na África do Sul  o carvão vegetal é usado para a eletricidade. E a comunidade de onde sai o carvão que permite eletricidade para o país não tem luz! Isso é apavorante.

Mas esse tipo de situação chega a ser debatido em reuniões entre líderes e empresários, por exemplo nos encontros das Nações Unidas? Há um incômodo?

Adriano Campolina – Sim, chega a ser debatido, mas quando a turma se organiza. Aqui tem uma aliança das comunidades atingidas pelas atividades da mineração, pessoas que vão para as ruas, se reúnem com ministros e já conseguiram ganhar na Justiça uma Ordem da Suprema Corte que obriga os ministérios de recursos minerais a consultá-los sempre que houver um projeto de mineração, é parte da legislação do setor. No caso da ONU, tem a Comissão de Recursos Humanos e Negócios criada por John Ruggie, que discute seguidamente o tema. O problema é que acaba tendo muita ênfase no lado voluntário.

Como assim?

Adriano Campolina – Como se as empresas pudessem aderir a um código voluntário de comportamento. Muitos desses processos internacionais acabam ficando com foco no voluntário, não obriga as empresas a cumprirem a lei. Esse lado regulatório está faltando. Mas outra coisa que as pessoas debatem, como você me perguntou, é sobre o nível de imposto que a sociedade deveria impor sobre essas atividades, considerando o dano de largo prazo que elas trazem. A mineração a céu aberto, por exemplo, é muito poluente, tem um impacto ambiental profundo.  E depois que a mina fecha vai demorar séculos até que aquele espaço possa ter outro uso.

O problema é que a sociedade precisa do minério, embora a gente saiba que nem sempre os que estão oferecendo seu espaço para minerar é que serão beneficiados com o produto tirado de suas terras...

Adriano Campolina - Isso. Mas, vamos colocar assim: como a sociedade, de alguma maneira, através dos impostos cobrados às empresas, pode garantir algum retorno, de forma que se possa mitigar os danos e ao mesmo tempo compensar adequadamente as comunidades? Seja por compensação financeira direta, seja por realocação... Tem um debate importante aí porque em países como o nosso, onde se tem um percentual muito grande do PIB que vai para a atividade privada, principalmente agricultura e mineração, há um risco porque são atividades muito degradantes do meio ambiente e destruidoras do tecido social. É preciso, como país, pensar cem anos para a frente: como taxar a empresa agora para garantir compensação das comunidades e para garantir que os impactos sejam diminuídos. Outra coisa é a participação das comunidades no debate sobre o projeto.

Sim, mas sabemos também que as audiências públicas, muitas vezes, são absolutamente ineficazes. As pessoas que conseguem se sentir atraídas para o encontro, sempre reclamam de falta de diálogo  e de entendimento.

Adriano Campolina – Vários países reconhecem o consentimento prévio, mas na hora que chega lá no nível da comunidade a briga é pesada, tem ameaça de morte, processos de grilagem de terra que são claros. Tem um hiato entre a ideia do consentimento prévio informado e a prática das comunidades, que normalmente são muito pobres e isoladas, que acabam ficando vulneráveis, à mercê de interesses muitos grandes.

Sobre taxar as empresas, é claro que seria o mais adequado. Só que aqui, por exemplo, o que se vê é que os governos agem de outra forma, dão incentivos, com medo de perderem sua “galinha dos ovos de ouro”. O próprio prefeito de Mariana, depois da tragédia, comentou que toda a cidade estava muito dependente da mineração.

Adriano Campolina – Pois é, e só se lembra disso quando acontece uma questão grave como essa de Mariana.

A Cidade do Cabo, aí na África do Sul, está vivendo uma seca muito séria, fala-se até no Dia Zero, quando as torneiras estarão secas. As empresas estão participando do debate?

Adriano Campolina - Teve um debate interessante, que era para onde vai a água: para agricultura irrigada ou para o pessoal beber? Porque a região do Cabo é de fortíssima agricultura irrigada de uvas e vinho e de frutas. Produção que tem um consumo de água tremendo, e enquanto isso, a cidade está sem água. Recentemente eles prorrogaram o Dia Zero para junho e a razão disso foi que o governo conseguiu um acordo com os empresários de agricultura para eles usarem menos água. Mostra a relação direta entre a atividade econômica e a habilidade de as pessoas beberem água ou não.

O mundo precisa de tanto minério? O mundo precisa de tanta produção do agronegócio?

Adriano Campolina – O mundo dos ricos precisa cada vez mais, mas as comunidades do entorno não recebem qualquer benefício dessas atividades.

E tem outro jeito de fazer para não perdurar essa situação como em Papua ou em tantos outros lugares?

Adriano Campolina – Existem experiências interessantes de formas de produção econômica mais sustentáveis. Na agricultura, por exemplo, é possível produzir alimentos com distribuição melhor. A questão é que há uma super concentração de poder e dinheiro entre poucas empresas de tamanho imenso. É tão grande que não se consegue ter uma relação de poder na sociedade que faça com  que elas, de fato, redistribuam os benefícios daquela exploração. As empresas acabam sem nenhum xeque de poder, põem o estado para competir um com outro sobre quem dá mais incentivo, ao invés de se perguntar: precisamos desse produto? Como fazer para que as pessoas do entorno dessa produção sejam, de fato,  beneficiadas? Como se constrói sustentabilidade? Esse crescimento enlouquecido em busca de commodities minerais e agrícolas tem levado a uma exacerbação da desigualdade de forma assustadora. Todo mundo está falando que desigualdade é um problema, mas ninguém fala sobre a solução. É distribuir!

E como tem que ser feita essa distribuição?

Adriano Campolina - Através de impostos, de salários decentes para os trabalhadores. As empresas têm uma responsabilidade imensa na solução da desigualdade, mas estamos contaminados com uma visão de curto prazo que acaba só beneficiando aqueles que não precisam.  Temos 99% sofrendo as consequências para que o 1% que se beneficia continue se beneficiando.

Quando comecei a estudar o desenvolvimento sustentável, já faz década e meia, a proposta das empresas era mudar o rumo dessa prosa com programas sociais. Mas não é isso o que está acontecendo.

Adriano Campolina – Programas sociais corporativos são bons, mas solução mesmo é que haja regulação muito forte do setor, com taxação. E isso é através do estado, é a lei. A empresa faz um programa gastando um milhão de dólares num projeto e,  a mesma empresa, busca um incentivo fiscal na ordem de bilhões! A perda da sociedade é bárbara! Não sou contra empresas, elas têm um papel fundamental.A questão é que se o comportamento delas não for regulado e se não houver incentivo para que elas distribuam a renda, preservem o meio ambiente e respeitem o direito das pessoas, a tendência é que elas não façam isso. E a pior empresa do setor estabelece o padrão para as outras. Se a sociedade não forçar o governo a exercer seu papel como regulador, as empresas vão nos destruir.

Como você vê o futuro?

Adriano Campolina - Eu vejo com preocupação, uma divisão internacional do trabalho cada vez pior. Os países pobres vão ficar com a indústria suja, com tudo que polui, e aqueles que estão evoluindo para uma economia mais moderna acabam tendo um diferencial. Mas, mesmo nos mais ricos, a desigualdade acontece. A profundidade com que a desigualdade está avançando acaba pondo em risco o próprio sistema. Porque até para excluir as pessoas tem que ter um limite. Chega uma hora que não dá! Os níveis de pobreza estão aumentando e a tendência que preocupa é, por um lado, várias formas de conflito em torno do acesso aos recursos naturais e, ao mesmo tempo, vários conflitos armados em torno do acesso aos recursos. Aqui na África do Sul, o nível de disputas entre os países ricos e a China é obvio. Isso tudo, num contexto de aquecimento global, gera um nível de exclusão social tremendo. As pessoas se movem, vão buscar sua sobrevivência em outros países. Imagina se adiciona a isso um potencial processo de exclusão pelas mudanças climáticas, em que não se consegue mais produzir alimento. Para onde elas vão?

Para não ficarmos só nas catástrofes, fale um pouco sobre as alternativas.

Adriano Campolina - Alguns países conseguiram alternativas de políticas, tanto do comportamento de empresas quanto para reduzir a desigualdade. O caso boliviano, por exemplo, a criação da Lei da Mãe Terra dando poder à população indígena que nunca teve controle sobre suas terras. Na Índia eles estabeleceram um programa de emprego rural  que deu certo e agora está sofrendo com falta de verbas, que garante às pessoas mais pobres da comunidade cem dias de trabalho. O próprio Brasil, com a experiência do aumento do salário mínimo e do Bolsa Família que gerou a inclusão. Existem muitas fórmulas, mas o que me assusta é que não se dá visibilidade a elas.

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