sábado, 13 de junho de 2015

CERCAS MERIDIANAS--Conto premiado escrito pelo Professor Frederico Flósculo.



CERCAS MERIDIANAS
Frederico Flósculo
O gaúcho abriu os braços e respirou fundo o ar da manhã que mal se iniciava.
Aquele era um dia especial: o dia em que o sol dividia a luz em duas partes iguais.
Depois daquele dia, a noite seria cada vez maior, e os dias cada vez mais frios.
Ele aprendera a fazer aquilo com seu pai, que aprendera com o pai dele, e com o pai do pai.
Era um rito solitário, mas partilhado por todos os seus irmãos, por seus filhos e netos.
Apertou com força a montaria, montada quase no pelo, um pelego de nada a cobri-la.
O cavalo, um pampa negro e branco, disparou de imediato, na direção da claridade.
Era bonito de ver: cavaleiro e cavalo a correr, abrindo o campo numa trilha de luz.
Os olhos fechados do cavaleiro, as ventas acesas e abertas do cavalo, pura magia.
Nada temia, nada o detinha, nada o podia deter; sua trilha era invisível e segura.
Era uma vertiginosa queda na horizontal, que celebrava a liberdade daqueles dias antigos.
De repente, o pesadelo rompia o sonho: uma estrangeira barreira dividiu o mundo.
Quando o arame cortou o ar, o gaúcho pressentiu a velha violência dos novos tempos.
Cada fio do arame era como um novo horizonte, que trazia o velho horizonte para mais perto.
Cada estronca de pau-ferro era, contudo, como um soldado inimigo a tolher seus movimentos.
Quando as cercas começaram a dividir o mundo, finou a antiga liberdade garantida pelo velho Deus.
Agora novos deuses asseguravam o latifúndio, a posse de terras que eram de todos, o domínio de horizontes que pertenciam apenas aos olhos de quem os contemplava.
- O que faremos agora, Gaúcho?
Sua voz soava quieta na imensidão do dia que acabava, em toda a sua igualdade. Começariam agora os dias desiguais, de progressiva escuridão.
- Não sou de sentar e chorar.
Foi quando viu o índio velho sentado bem na sua frente, na linha que o separava da cerca mais próxima, a mais aguda e desafiadora.
- Vais cortar as cercas? Vais arrancar os moirões?
Ele olhou a vastidão cerceada e fechou os olhos, apagando por um instante a luz que endiabrava seu semblante tomado pela revolta.
- Não. Sei que são de lei. A Lei do País e de nossa terra impõem o respeito a essas cercas.
- Então, não entendi. O que vais fazer?
- Vou aprender e vou ensinar.
- Aprender o quê?
- A cavalgar sobre as cercas que agora redesenham nossos campos, antes abertos e livres, agora fechados e prisioneiros. Não posso destruí-las, mas posso apreciar sua novidade.
- E vais ensinar o quê?
- A invadir as terras cercadas, mantendo as cercas intactas.
O índio velho balançou a cabeça em desaprovação.
- Você enlouqueceu, gaúcho?
O cavaleiro riscou o horizonte de cobre com o dedo em riste. As cercas não paravam de se estender, desenhando uma terra nova, aramada e armada.
- Você entende o que as cercas fazem à nossa terra, à nossa liberdade?
O índio velho decidiu não responder. Que pergunta é essa, meu louco? Mas não ficou em silêncio.
- Você fala como um bandido. Isso não é coisa de louco, não. Muito pior.
O gaúcho soltou uma gargalhada bem batida, ecoada nas coxilhas ainda enevoadas.
- Não sou eu que faz as regras, guri.
- Mas essa, eu nunca ouvi. Nem de ti.
- É mesmo engraçado o que uma cerca pode fazer com a cabeça da gente. Passo a pensar diferente. Antes, onde eu só via liberdade, passo a ver a liberdade de outro jeito.
- Você me surpreende, e gosto disso.
- Já você não me surpreende, índio velho, e não gosto disso.
O velho índio quedou, magoado.
- Então vá! Agora eu quero mesmo me surpreender com você, gaúcho. Mostre-me o que faz com as cercas que aprisionam a nossa terra.
- Se eu quisesse lhe surpreender, eu daria meia-volta agora, no rumo de casa. E de lá só sairia velho e cheio de preconceitos e maldições contra essa gente, e contra você.
- Contra mim?
- Sim, pois é incapaz de antecipar um só pensamento meu. E diz que entende das coisas.
- Está enganado, gaúcho. Eu sei o que vai fazer agora.
- Então diga. Assim facilita as coisas.
- Você vai sair daqui, e vai subir com essa montaria mágica, sobre a cerca, sobre o arame torcido, e vai cavalgar.
Agora seu cavalo se transformara num alazão vermelho, de fogo - e se ergueu sobre as patas traseiras, alteando o gaúcho até a altura do Sol que surgia.
- Tu vais seguir o meridiano, gaúcho! Siga o meridiano, eu te ordeno! A cada cerca que achar, queima o arame de cima com as patas de teu cavalo, até o próximo meridiano, e assim por diante!
O gaúcho fez o dito e prometido, chispando de tanta força. Sua pátria agora era a cerca que encontrasse, sobre ela seu destino.
- Esse é um mundo de cercas, gaúcho! Cabe a ti a elas quebrantar! Corre gaúcho, segue gaúcho! Que essas cercas, desde que começaram, nunca mais que vão acabar!
No horizonte do dia equinócio, começou a corrida meridiana das fronteiras cercadas daquelas terras de liberdade. Ou que um dia foram isso mesmo.





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Com a atenção do professor Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
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Telefone Sala de Professor: (61) 31077467
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