sábado, 7 de novembro de 2015

O maior sucesso biológico de todos os tempos

Por Marcos Rodrigues
Avestruz da somália. Foto: Wikipedia
Avestruz da somália. Foto: Wikipedia


Todo mundo sabe o que é uma ave, ou um pássaro. O senso comum diz que aves ou pássaros são os animais que possuem penas revestindo o corpo. Assim, o bizarro pinguim (que na verdade é um grupo de 17 espécies e não apenas uma) nada mais é do que uma ave.


Sim, aquele animal de ‘sangue quente’ que vaga pelos gélidos confins do continente antártico e ilhas adjacentes; aquele animal que caminha toscamente sobre o gelo; aquele animal que nada como um raio e mergulha em águas geladas em busca de peixes não passa de uma ave.


A avestruz, aquele animal bípede e grandalhão, que chega a pesar 140 quilos e que caminha pelas planícies quentes e secas das savanas africanas também é uma ave, pois seu corpo, assim como o dos pinguins, é todo revestido por penas.



Aquele sabiá que gorjeia sobre as palmeiras dos nossos jardins tropicais, que não passa de uma avezinha com menos de 30 gramas e 15 centímetros de tamanho (do bico à cauda) também é uma ave (muitos o chamam exclusivamente de pássaro, mas considero aqui estas palavras como sinônimas).

O sabiá-do-barranco. Foto: D. Sanches/Wikipedia
O sabiá-do-barranco. Foto: D. Sanches/Wikipedia


Agora pense numa galinha. Todo mundo sabe o que é uma galinha. Ela está na nossa dieta há mais de 3000 anos. Dez entre dez brasileiros comem galinha pelo menos uma vez por semana. Galinha assada, ao molho pardo, à caçarola, na brasa, frita em pedacinhos (ironicamente “à passarinho”), coxinha de galinha, caldo de galinha e mais uma infinidade de formas, jeitos e receitas para se comer galinha. Pois saiba, a galinha, quando viva, tem boa parte do seu corpo recoberto por penas e, portanto, é uma ave.


Mas não são só as penas que tornam um animal uma ave, mas este assunto veremos mais a frente, à luz da ciência e não à luz do senso comum.


Um chá no Saara
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Abetarda africana (Chlamydotis undulata). Foto: Wikipedia


Você pode encontrar uma ave em qualquer lugar deste planeta. Mesmo no deserto do Saara, a região mais quente e árida da Terra, quando estiver caminhando junto aos tuaregs, não se espante se lá avistar uma abetarda africana andando e gritando pelas dunas secas. Abetardas são aves altamente terrestres de grande porte, pernas e pescoços longos que lembram uma seriema (mas não são parentes destas).


As abetardas são aves adaptadas aos ambientes mais áridos do globo e conseguem sobreviver muito bem sem beber água por períodos de tempo muito longos. Como elas vivem sem água?


Sabemos que o metabolismo das proteínas produz amônia, que é um composto muito tóxico, mas é solúvel na água e difunde-se rapidamente. Abetardas, como qualquer ave, comem proteínas eventualmente e assim precisam eliminar a amônia.


Os mamíferos, como nós, conseguem converter a amônia tóxica em ureia, que é uma substância menos tóxica. A ureia pode ser acumulada no corpo e liberada em uma solução concentrada na urina, conservando água desta maneira.


Para isso os mamíferos desenvolveram um rim que é extraordinariamente eficiente em produzir urina concentrada. As aves, no entanto convertem a amônia e outros compostos nitrogenados em ácido úrico. 


Diferentemente da amônia e da ureia, o ácido úrico é insolúvel e combina-se prontamente com íons sódio e potássio para precipitar como urato de sódio ou potássio. Assim, as aves desenvolveram a capacidade de excretar ácido úrico e recuperar a água que é liberada durante a formação do precipitado1.


A baixa solubilidade do ácido úrico se torna vantajosa, porque o ácido úrico precipita quando entra na cloaca (região final do trato digestório das aves). O ácido úrico dissolvido se combina com os íons na urina e se precipita como uma massa de cor clara que inclui sais de sódio, potássio, e sais de amônia de ácido úrico, assim como outros íons. (É o cocô de passarinho, também conhecido por guano, um esterco com propriedade incrivelmente fertilizadora do solo).


Quando o ácido úrico e os íons se precipitam dessa solução, a urina se torna menos concentrada e a água é reabsorvida no sangue através da parede da cloaca. A excreção nitrogenada de ácido úrico é mais econômica quanto à água do que a excreção da ureia, porque a água usada para produzir urina é reabsorvida e reutilizada. Assim, as aves são chamadas de animais uricotélicos, pois excretam resíduos nitrogenados principalmente na forma de ácido úrico1.


É desta maneira que muitas espécies de aves conseguem viver em ambientes áridos como os desertos. Não se esqueça de procurar pelas abetardas quando estiver passeando pelo Saara.


Visita ao continente gelado
O pinguim imperador (Aptenodytes forsteri) curtindo o inverno na Antártica. Foto: Wikipedia
O pinguim imperador (Aptenodytes forsteri) curtindo o inverno na Antártica. 

Foto: Wikipedia
Depois de caminhar numa caravana de camelos cruzando o Saara, nada mais refrescante do que uma visita a Antártica, o continente gelado. Ali as temperaturas são as mais frias, o ar é o mais seco e o vento é o mais uivante de todo o planeta Terra. As temperaturas no inverno podem alcançar 89 graus Celsius negativos.


Não há população permanente de seres humanos nesta área de mais de 14 milhões de metros quadrados (o dobro da Austrália). Neste passeio pelo continente gelado o que encontraremos serão pinguins.


As dezessete espécies de pinguins vivem nestas condições hostis de clima a maior parte do ano. O pinguim imperador é a única espécie que consegue se reproduzir em pleno inverno. Como eles conseguem sobreviver é uma questão importante na biologia.


A dieta do pinguim imperador consiste principalmente de peixes, crustáceos e cefalópodes (lulas). Na caça, os indivíduos podem permanecer submersos por até 18 minutos e mergulhar a uma singela profundidade de 535 metros. Eles apresentam diversas adaptações para empreender tal façanha, como uma hemoglobina estruturada para permitir que funcione em níveis de oxigênio baixos.


Os ossos sólidos e pesados lhes permitem uma redução do barotrauma (danos físicos causados aos tecidos do corpo por diferenças de pressão do ar ou da água). Além disso, os pinguins têm a capacidade de reduzir seu metabolismo e interromper as funções não essenciais de alguns órgãos. As penas do pinguim imperador proporcionam de 80 a 90% do seu isolamento térmico.


Eles ainda possuem uma camada subdérmica de gordura que pode chegar a ter três centímetros de espessura. As suas penas são rígidas e curtas e formam um conjunto denso ao longo de toda a superfície da pele. Cerca de 100 penas cobrem 6,5 cm², o que significa que é a espécie de ave com maior densidade de penas no corpo. Os músculos permitem que as penas permaneçam eretas quando as aves estão em terra, reduzindo a perda de calor ao fixarem uma camada de ar junto à pele.


Inversamente, a plumagem ajusta-se junto à pele quando a ave está na água, provocando a impermeabilização da pele e da camada de plumagem adjacente. A limpeza das penas é vital para garantir o isolamento térmico e para manter a plumagem oleosa e repelente de água2.


O pinguim imperador tem ainda a capacidade de fazer termorregulação (manter constante a sua temperatura corporal) sem alterar o seu metabolismo, num intervalo grande de temperaturas (entre –10 e 20 °C).



Abaixo de –10, a sua taxa metabólica aumenta significativamente, apesar de o indivíduo poder ainda manter a sua temperatura corporal entre os 37,6 e os 38,0 °C até em gélidos 47 graus negativos de temperatura ambiente. Para aumentarem o metabolismo, podem fazer um conjunto de movimentos: nadar, andar e tremer. Um quarto processo envolve a quebra metabólica de gorduras por enzimas, ação induzida pelo hormônio glucagon2. Quer mais?


É melhor deixarmos a Antártica. Está muito gelada, não é mesmo? Para isso temos que pegar um navio e rumarmos norte, seja pelo Oceano Atlântico, Pacífico ou Índico. O que veremos então? Água. “Água, água, tanta água//e nem uma gota para beber”. Se o navio em que estivermos não tiver uma provisão de água doce suficiente, morreremos todos de sede.

Mar sem fim. Foto: Wikipedia
Mar sem fim. Foto: Wikipedia
Ó mar salgado, quanto do teu sal //São lágrimas de Portugal!
Mas lá em alto mar, milhas e milhas distante de qualquer pedaço de terra plainam suavemente os albatrozes. Os albatrozes pertencem ao grupo chamado de Procellariiformes, que é uma ordem de aves marinhas que compreende quatro famílias: os albatrozes, os petréis, as pardelas e os bobos.


Essas aves são quase que exclusivamente pelágicas (vivendo e alimentando-se em mar aberto) e se distribuem por todos os oceanos do mundo. Essas aves vagueiam em busca de alimento durante todo o ano e só pousam em terra firme (ilhas oceânicas isoladas) para se reproduzir.


Alimentam-se exclusivamente de lulas, peixes e crustáceos. Como vimos acima, o metabolismo dessa proteína ingerida produzirá amônia. Vimos também que as aves conseguem economizar água do corpo excretando ácido úrico. Mas como excretar todo o sal ingerido após a digestão desses animais marinhos?


Um albatroz. Foto: Fabio Olmos
Um albatroz. Foto: Fabio Olmos


A solução está nas glândulas de excreção de sal. Tais glândulas proporcionam um caminho extrarrenal que excreta o sal com menos água do que a urina. Em muitas aves, as glândulas nasais laterais se especializaram para a excreção de sal. As glândulas são situadas ao redor da órbita, usualmente sobre os olhos.


Aves marinhas (pelicanos, albatrozes, pinguins) possuem glândulas de sal bem desenvolvidas, assim como muitas aves de água doce (patos, aves lacustres em geral, mergulhão), aves de praia (maçaricos e batuíras), cegonhas, flamingos, aves carnívoras (gaviões, águias) e aves de savana (avestruz). As glândulas de sal tem uma microestrutura semelhante a um rim e usam um sistema de fluxo de sangue em contracorrente para remover os íons de sais da corrente sanguínea. Estas glândulas são lobadas contendo muitos túbulos secretores que irradiam para fora a partir de um canal de excreção no centro.


Túbulos secretores são revestidos com uma camada única de células epiteliais. O diâmetro e comprimento destes túbulos variam dependendo da quantidade de sal que é geralmente absorvido pelas espécies que as possuem. Assim, essas glândulas de sal mantêm o equilíbrio de sal do corpo do indivíduo e permite aos albatrozes a beber água do mar1.


Voando na ‘zona da morte’
O monte Everest. Foto: Wikipedia
O monte Everest. Foto: Wikipedia


Chega de horizontes infinitos, oceanos monocromáticos, planícies enfadonhas, desertos inimigos. É hora de embarcarmos para as montanhas, a mais alta delas. Na cadeia do Himalaia impera o monte Everest com seus 8.848 metros de altitude.


Em 1953, os alpinistas Edmund Hillary e Tenzing Norgay mal podiam caminhar quando chegaram a 20 metros do cume do Monte Everest. Estavam exaustos, na chamada ‘zona da morte’, onde, acima dos 8 mil metros a pressão atmosférica é de cerca de um terço da pressão ao nível do mar, resultando na disponibilidade de apenas cerca de um terço do oxigênio para respirar. Os efeitos debilitantes da ‘zona da morte’ são tão grandes que é preciso que os escaladores levem até 12 horas para percorrer a distância de pouco mais de 1,5 quilômetros.


Na ‘zona da morte’, o corpo humano não pode aclimatar. Uma estadia de pouco tempo na ‘zona da morte’ sem oxigênio suplementar irá resultar na deterioração das funções corporais, perda de consciência, e, finalmente, a morte. Hillary e Norgay sabiam disso e por isso mesmo usavam máscaras acopladas a um tubo de oxigênio complementar.


Sem isso talvez jamais tivessem atingido o cume do Everest pela primeira vez na história. Mas foi exatamente neste dia histórico, 29 de Maio de 1953, em meio à exaustão e a êxtase do triunfo, que os alpinistas observaram um bando de gansos asiáticos cruzarem os céus, bem acima da cabeça deles, voando e conversando como se nada estivesse acontecendo. Sim, isso mesmo, gansos asiáticos, conhecidos cientificamente por Anser indicus.


Os míticos alpinistas Edmund Hillary e Tenzing Norgay em 1953 já felizes e fora da ‘zona da morte’ (note os tubos de oxigênio). Fonte: Wikipedia
Os míticos alpinistas Edmund Hillary e Tenzing Norgay em 1953 já felizes e fora da ‘zona
da morte’ (note os tubos de oxigênio). Fonte: Wikipedia


O ganso asiático é uma ave de grande porte que se reproduz na Ásia Central em colônias de milhares de indivíduos perto de lagos de montanhas e migra para o sul da Ásia, até o sul da península da Índia, onde passam seu ‘inverno’. Isso significa que estes gansos atravessam o Himalaia pelo menos duas vezes por ano. Como eles conseguem sobreviver no ar rarefeito é uma das mais importantes questões da biologia.


Como os gansos respiram no ar rarefeito? Uma das grandes questões científicas.
Como os gansos respiram no ar rarefeito? Uma das grandes questões científicas.


Para uma ave voar em altitudes elevadas ela precisa aumentar a taxa de batimentos cardíacos o que aumenta os custos metabólicos dos gansos. A capacidade destas aves de sustentar as altas demandas de oxigênio durante o voo em um ar que é extremamente rarefeito depende da fisiologia cardiorrespiratória única das aves, juntamente com várias especializações que evoluíram para o transporte de oxigênio3.


A tolerância excepcional a hipoxia em aves é provavelmente o mais importante fator responsável pelo voo em ar rarefeito. Mesmo pardais comuns conseguem suportar a falta de oxigênio quando foram estimulados a voar em túneis com ar que mimetizava 6 mil metros de altitude. As aves são muito mais tolerantes a hipoxia do que os mamíferos. Muitas características únicas do aparelho respiratório e cardiovascular das aves são os responsáveis por essa tolerância3.


O sistema respiratório das aves é único entre os animais vertebrados atuais. Dois grupos de sacos aéreos, cranial e caudal, ocupam a maior parte da região dorsal do corpo e estende-se em cavidades  em muitos dos ossos (chamadas espaços pneumáticos). Os sacos aéreos são pouco vascularizados e não participam das trocas gasosas, mas são grandes – aproximadamente nove vezes o volume dos pulmões.


Os sacos aéreos são espaços por onde o ar flui durante os períodos do ciclo respiratório. Isso cria um fluxo de ar contínuo em um único sentido nos pulmões. Nas aves é possível um fluxo oposto do sangue e do ar, somente porque o ar flui no interior dos pulmões em uma mesma direção durante a inspiração e a exalação.


Esse fluxo de ar em sentido único nos pulmões das aves tem muitos benefícios. O fluxo em corrente-cruzada do ar e do sangue permite trocas de gases mais eficientes, semelhante ao fluxo de contracorrente do sangue e da água nas brânquias dos peixes1.


O mais árido deserto, o mais gelado dos climas, a mais alta montanha. Qualquer lugar do planeta onde o homem possa estar terá sido precedido por uma ave. Lembre-se disso.


O maior sucesso do planeta
As aves são os animais mais conspícuos (aos nossos olhos) no mundo moderno. Elas são extremamente diversificadas, com mais de 10.000 espécies existentes distribuídas por todo o planeta, preenchendo uma variedade de nichos ecológicos e uma gama em tamanho desde o diminuto colibri com apenas dois gramas ao gigante avestruz, com seus 140 quilos.



Seus corpos emplumados são otimizados para o voo, suas taxas de crescimento e metabólicas se destacam entre os animais vivos, e seus cérebros grandes, sentidos aguçados e habilidades de vocalizar e usar ferramentas as torna organismos inteligentes. Isto suscita uma pergunta fascinante: como esse grupo de animais alcançou tão grande diversidade e tão grande sucesso evolutivo4?


Este é o tema de uma vida de pesquisas e descobertas essenciais para o entendimento de todas as questões filosoficamente importantes: Aristóteles, Lineu, Darwin, Wallace, Watson & Crick, Lorenz, Tinbergen, entre tantos outros que o digam.


Para saber mais
  • Pough, F.H., Janis, C.M e Heiser, J.B. 2003. A Vida dos Vertebrados. Atheneu Editora São Paulo, São Paulo. 4a ed.
  • Williams, T.D. 1995. The Penguins. Oxford University Press.
  • Scott, G.R. et al. 2015. How Bar-Headed Geese fly over the Himalayas. Physiology 30:107-115.
  • Brusatte, S.L. et al. 2015. The origins and diversification of birds. Current Biology Review 25.

*Este artigo foi publicado originalmente no blog Vida das Aves e republicado em O Eco. logo21


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