De todos os barulhos urbanos, o que mais me incomoda é o da motosserra. Mesmo que esteja sendo usada “apenas” para podar galhos, aquele som de serra elétrica sobre a madeira sempre me leva a pensar na relação pouco harmoniosa entre homem e a natureza. Na prática, é um dos motivos que levaram os cientistas a classificarem  nossa era de Antropoceno. Até galhos de árvores nos incomodam porque podem escurecer ruas e trazer uma série de outros pequenos incômodos com os quais nossa existência urbana, cada vez mais afastada do contato com terra, plantas e bichos, tem dificuldade de conviver.

Mas é quando a motosserra está matando uma árvore que fico mais angustiada.  Até pouco tempo eu costumava parar e conversar com os profissionais encarregados do corte para tentar saber o que estaria condenando a árvore à morte. Parei de fazer isso porque as justificativas que ouvia se tornaram repetitivas. Ora a retirada acontece para respeitar pedidos de moradores da área, já que os frutos que caem amassam carros e/ou põem em risco a vida de pessoas, ora porque ela própria já estava corroída por bichos. Mas a explicação mais frequente é que aquele tipo de árvore não poderia ter sido plantada ali porque suas raízes não suportam estar confinadas ao tamanho da calçada.

Dia desses, andando por Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, ouvi o barulho irritante da motosserra na Rua Visconde de Caravelas. Segui meu caminho, fui fazer o que tinha que fazer e, na volta, encontrei só o toco de uma bela árvore. A equipe da Comlurb, que exerce essa tarefa, já que a retirada de galhos e árvores é entendida como “limpeza” das ruas, já tinha ido embora.

É importante dizer aqui que a Visconde de Caravelas é uma das ruas da cidade que tem problemas sérios de enchente. Basta cair uma chuva um pouco mais forte que os moradores não conseguem chegar a suas casas, os carros estacionados viram piscinas, não há chance de transitar. E talvez seja desnecessário lembrar que árvores drenam a água da chuva, amenizam o calor, melhoram a qualidade de nossas vidas nas cidades. Quanto mais cimento e menos árvores, mais problemas de drenagem. Mais enchentes. É assim, todos sabemos. Mas parece mais confortável esquecer isso e abrir passagem para o crescimento desordenado, para a especulação imobiliária que nos condena a viver cercados de concreto e asfalto.

Vim pensando sobre isso quando voltei de Botafogo.  Marcara uma entrevista com Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA), para tentar trazer aos leitores informações sobre um programa que tem o objetivo de plantar um milhão de árvores para recuperar as nascentes e as matas da beira do Rio Xingu, um dos mais importantes rios brasileiros. É uma iniciativa do capital privado que está sendo abraçada pelo Rock in Rio e se chama Amazonia Live.

Quando demonstrei a Rodrigo meu ceticismo com relação ao sucesso da empreitada, já que plantar 1 milhão de árvores é uma tarefa que me parece grandiosa demais, pelo menos ao meu olhar de cidadã urbana, ele me explicou de um jeito que foi capaz de diminuir minha descrença. De quebra, me deixou refletindo sobre a incoerência de nossa era. O zelo com as sementes que vão gerar árvores e o descaso com que se desmata andam lado a lado:

“Bom, se fossemos começar do zero, se nós não tivéssemos nada, resolver plantar um milhão de árvores seria mesmo muito duvidoso. Mas essa iniciativa está ancorada numa campanha de mais de dez anos que foi batizada de Y Ikatu Xingu e nasceu para proteger e recuperar as nascentes e as matas ciliares das áreas que correm para o Xingu. A campanha foi desenvolvida por parceiros de diversos setores: povos indígenas, agropecuaristas, agricultores familiares, pesquisadores e organizações da sociedade civil. Durante dez anos nós fomos aprendendo, desenvolvendo tecnologias para poder atender a essa demanda. E uma dessas principais demandas foi batizada de “Muvuca de sementes”, que é o plantio direto com as sementes misturadas. Então, quando se imagina um millhão de mudas, se for pensar cada árvore sendo um indivíduo, aí é muita coisa mesmo. Mas estamos falando de milhares de sementes que vão se transformar em um milhão de árvores”, contou-me ele.

A partir da campanha Y Ikatu Xingu, surgiu outro movimento muito interessante, criado em 2007, que se chama Rede de Sementes do Xingu. Trata-se de um processo de inclusão social produtiva de indígenas e agricultores, que gera renda para essas famílias através de uma dinâmica que começa na hora em que os membros da Rede saem para colher sementes na Floresta Amazônica. Cada semente é trazida e tratada depois com um cuidado que dá gosto ver. Acho que só em vídeos sobre o funcionamento do Banco de Sementes da indiana Vandana Shiva eu percebi algo parecido. Perguntei a Rodrigo se é possível fazer essa comparação:

“Não é a mesma coisa que o Banco de Sementes porque não estamos lidando com sementes agrícolas. Mas o importante desse projeto Amazonia Live é que ele dá a oportunidade para que essas sementes coletadas e tratadas sejam devolvidas para o mesmo local de onde elas saíram. Portanto, é um projeto de mão dupla. Se não tivesse o Rock in Rio ajudando, a Rede comercializaria as sementes para outras pessoas. Com essa ajuda, é uma chance de as sementes ficarem na região e, dessa forma, poderem gerar a renda que vai chegar a cerca de R$ 750 mil ao longo de três anos”, disse Rodrigo.

Bem, mas no meio do caminho há pedras, como se sabe. Leio no site da campanha Y Ikatu Xingu  que quando ela foi lançada, em 2004, a estimativa é que já teriam sido desmatados quase seis milhões de hectares de vegetação nativa na Bacia do Rio Xingu em Mato Grosso, o que significa que aproximadamente 33% da cobertura vegetal original já foram suprimidas no estado. Os responsáveis pela degradação são os de sempre, e nossos velhos conhecidos: soja e agropecuária. Pergunto a Rodrigo como conseguir que esses fazendeiros, que de lá não saíram, agora sejam parceiros e abram suas porteiras para que lá se plantem as árvores.

“Eles reconhecem que não dá mais para ter gado e soja nessas áreas. É um convencimento que já está se dando, ao longo desses anos vimos conseguindo um leque de parceiros dispostos, e esperamos que mais parceiros cheguem.  Nesse tempo que estamos atuando já contribuímos para a recuperação de aproximadamente 3.500 hectares, que é pouco dentro do tamanho do estrago, mas é uma quantidade significativa. Tem áreas que já estão muito degradadas e desmatadas, mas outras que têm algum grau de recuperação. Esse trabalho estabelece uma grande parceria com diferentes pessoas”, disse Rodrigo Junqueira.

A Rede de Sementes Xingu vem sendo uma referência no Amazonas. Conheci o projeto quando estive no Bailique no ano passado para acompanhar o processo do Protocolo Comunitário e o técnico Dannyel Sá, assessor socioambiental da Rede, foi até lá a convite do Rubens Gomes, presidente do GTA (Grupo de Trabalho Amazônico) para compartilhar a experiência com os moradores do Arquipélago. É um projeto bonito, sensível, que lida com vida todo o tempo. Pois não é disso que se trata, uma semente?

“Ali se trata de natureza, os coletores de sementes não estão apertando parafusos, cada semente tem seu jeito de ser colhida, de ser tratada para poder voltar à natureza. É uma coisa grandiosa do ponto de vista do encontro das pessoas, de troca de experiências, de saberes. E a semente é o elo de ligação entre tudo isso, ela faz a urdidura dessa transformação socioambiental”, conta Rodrigo Junqueira.

Torço para que o Amazonia Live prospere. A estimativa é que até o final de 2018 esse um milhão de árvores estarão em franco desenvolvimento. Ainda não serão árvores maduras, porque isso leva tempo, mas já estarão a caminho.

E assim vou refletindo sobre nossas contradições. Tanto cuidado, tanto zelo, para se plantar uma árvore que pode,em minutos ir ao chão, condenada por ter se metido no caminho do maior predador da natureza. Seja para plantar soja, criar gado ou mesmo por querer se livrar do incômodo causado por sementes que caem sobre carros e sujam o chão.  

Crédito da foto 1: Dannyel Sá/Acervo ISA (Beneficiamento de semente no Xingu)

Crédito da foto 2: Amelia Gonzalez