domingo, 16 de março de 2014

É possível ler a mente dos cachorros?





Um time de inventores suecos criou um dispositivo que promete traduzir o que se passa na cabeça de um cão. 

Ao site de VEJA, neurocientistas e especialistas em comportamento animal discutem a validade da invenção e mostram o que sabemos — e o que descobriremos — sobre a mente canina 

 


Rita Loiola

Cachorro com o dispositivo No More Woof

Equipado com sensores de eletroencefalograma, o dispositivo 'Chega de Latido' ('No More Woof', em inglês) promete traduzir os pensamentos dos cães (Divulgação)
 
Um par de fones de ouvido, dois eletrodos e um microfone. 


Essa é fórmula do projeto "No More Woof" ("Chega de Latido", em português), desenvolvido há um ano por inventores suecos da Sociedade Nórdica para a Invenção e Descobertas (NSID), para revelar os pensamentos dos cães. 


Por 65 dólares é possível comprar uma versão simplificada do dispositivo, que promete identificar cansaço, fome e curiosidade. 


Ao desembolsar 300 dólares, o comprador recebe um produto que seria capaz de distinguir quatro ou mais pensamentos.


Funciona assim. Os eletrodos do dispositivo fazem um eletroencefalograma em tempo real do cachorro, e identificam padrões. 


Os padrões elétricos são então transmitidos aos fones, conectados a um software de interface cérebro-máquina e traduzidos em voz alta por um microfone. 


Dessa forma, quando menos se espera, o cão avisa: "Estou cansado" ou "Quero brincar".



"Tínhamos um sensor de eletroencefalograma no escritório — aqui na Suécia eles podem ser encontrados em qualquer loja de brinquedos, pois são usados para interagir com videogames — e o colocamos na cabeça de um cachorro que estava brincando por ali.


Vimos que ele emitia sinais e tivemos a ideia", explica Per Cromwell, responsável pela criação do produto. 


A cognição canina é um assunto ao qual muitos pesquisadores têm se dedicado. 


Em uma pesquisa publicada neste mês no periódico Behavioural Processes, o neurocientista Gregory Berns, da Universidade Emory, nos Estados Unidos, descobriu, com a ajuda da ressonância magnética, que os cães têm a habilidade de experimentar emoções positivas, como amor e apego.  


Berns e os inventores nórdicos se dedicam a responder a mesma questão: "Em que meu cachorro está pensando?". O que varia — e muito — é o rigor metodológico empregado. 

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Da equipe sueca fazem parte designers, cientistas, técnicos e artistas — "alguns deles malucos", esclarece Cromwell. 


"Nossa tecnologia mede a quantidade de atividade cerebral. Se ela é muita, então sabemos que, provavelmente, o cão está curioso ou agitado, o que se traduz como 'Quero brincar' ou ‘O que é isso?'. Se a atividade é menor, sabemos que o cão está cansado e, provavelmente, diria 'Quero ficar sozinho'", explica. 


Até o fim do ano, a promessa é identificar mais padrões e desenvolver versões chamadas "superiores".


Para isso, o time lançou em dezembro uma campanha de crowdfunding para arrecadar recursos na plataforma digital Indigogo. 


O objetivo era criar "o primeiro protótipo para traduzir pensamentos animais em inglês". Da meta de 10.000 dólares, os suecos arrecadaram mais que o dobro: 22.664 dólares.



Mais criatividade que ciência — O grupo de inventores nórdicos deixa claro em seu site que todos os seus produtos devem ser encarados como esboços ou suportes de pesquisas. 


Além do tradutor de pensamentos caninos, eles criaram um tapete mágico para animais de estimação (que eleva a 7 centímetros do chão bichos com até 2,4 quilos), uma nuvem para colocar dentro de casa e reproduzir o clima exterior e uma cadeira de balanço que recarrega iPads e iPhones.



"A Sociedade é feita, principalmente, de pessoas criativas com um grande interesse em tecnologia. Somos mais criativos do que científicos", explica Cromwell. 


"Como nosso trabalho é conceitual, precisamos de mentes ágeis. Cientistas às vezes não são tão flexíveis, então tentamos encontrar pessoas que tenham um conhecimento maior de coisas diferentes."



Sinais confusos — A crítica talvez seja dirigida a neurocientistas e especialistas em comportamento animal, que se unem para dizer que a invenção sueca não deve ser levada a sério. 


Por enquanto. "O projeto descrito no site 'Chega de latidos' não é ciência", afirma o neurocientista Attila Andics, pesquisador da Universidade Eötvös Loránd, na Hungria. 


"Na minha visão, um grupo de pessoas criativas e entusiasmadas apareceu com algo divertido e agora está querendo dinheiro para testá-lo — sem, talvez, ter consultado um especialista no assunto."



Segundo Gregory Berns, o eletroencefalograma não é a estratégia adequada para analisar os sinais cerebrais de emoções em cães.


 "Diferentemente dos humanos, a maior parte da cabeça dos cachorros é feita de músculos. E o movimento desses músculos causa sinais elétricos que também são captados pelos eletrodos. Eles incluem movimentos das mandíbulas, dos olhos e das orelhas", explica o pesquisador.


Isso quer dizer que a agitação da orelha do animal ao espantar um mosquito emitiria uma quantidade considerável de sinais elétricos. No dispositivo da Suécia, esse movimento isso seria traduzido por "Quero brincar".


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No que os cães pensam — Nos últimos três anos, Berns tem se dedicado a decifrar o pensamento canino — embora a ciência ainda não saiba se os animais são capazes de raciocinar. 


Ele treinou o seu cão e mais onze cachorros para se submeterem a um exame de ressonância magnética, mapeou seus cérebros e descobriu que a estrutura e função de uma de suas partes importantes, chamada núcleo caudado, é bastante semelhante a de humanos. 


Em nós, essa região está ligada à antecipação de coisas que gostamos, como comida ou amor. 


Os cães estudados por Berns mostraram uma intensa atividade no núcleo caudado quando sentiam o cheiro dos donos ou viam sinais de comida. 


Também respondiam positivamente quando o dono retornava após um rápido momento fora.

Suas conclusões, publicadas no periódico científico e no livro How Dogs Loves Us: A Neuroscientist and His Adopted Dog Decode the Canine Brain (Como os Cachorros nos Amam: Um Neurocientista e Seu Cão Adotado Decodificam o Cérebro Canino, lançado em 2013 e sem edição em português), indicam que os cães demonstram amor por meio de atitudes inequívocas: depois de comerem, sentam-se aos pés do dono como se agradecessem o alimento; querem dormir perto de quem passa mais tempo com eles ou fazem festa quando o dono volta depois de horas afastado.



"Nossa meta é determinar como funciona o cérebro dos cães e, mais importante, o que eles pensam de nós. 


Depois de treinar e escanear uma dúzia de cachorros, minha conclusão é: cães também são gente", afirmou o pesquisador em artigo publicado em dezembro no jornal The New York Times

Engenhocas que ajudam a entender (e controlar) seu cão

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Televisão



Indicador de saúde


O Whistle é um dispositivo que, acoplado à coleira, aponta quando o cachorro está fazendo exercícios, por quanto tempo e em que intensidade. Ligado a um aplicativo de celular, ele avisa o dono se o cão está praticando
a quantidade de exercício físico ideal para seu peso e idade, monitora vacinas e relata como vai a saúde do animal. Criado em 2013 por uma empresa da Califórnia, nos Estados Unidos, o aparelho foi desenvolvido
em conjunto com veterinários e pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, que, no futuro, pretendem utilizar seus dados para 
conduzir estudos sobre comportamento canino.
  
Comunicador
O Petcube é um cubo equipado com câmera, microfone e um raio laser. Conectado à internet wireless da casa e ao celular, permite que o dono veja, escute, converse 
e brinque com o animal de estimação com o laser, quando está fora de 
casa. Também é possível tirar fotos dos cachorros e compartilhá-las nas redes sociais. 

Silenciador

As coleiras antilatidos funcionam por meio de ultrassons que impedem 
que o cachorro se comunique. Um dispositivo acoplado na coleira capta
a vibração das cordas vocais e emite sinais inaudíveis aos humanos, 
mas que incomodam os cachorros, silenciando-os. 



Tradutor de latidos
 

O tradutor de latidos Bowlingual foi criado em 2002 pela empresa de brinquedos japonesa Takara. Com um microfone acoplado na coleira do cachorro, o aparelho identificava os latidos e interpretava-os com frases como "Que chato!" ou "Estou sozinho!". Ele foi feito com base em uma coleção de latidos interpretados por psicólogos caninos — as mensagens são ligadas às tonalidades dos sons emitidos pelo cão. No ano do lançamento, ganhou dois prêmios: o da revista americana "Time" como "melhor invenção" e também o IgNobel, concedido à invenção mais esquisita do ano. Em 2010, tornou-se um aplicativo para smartphones.

Localizador

 
Com o nome de Tagg, o aparelho é uma coleira equipada com 
GPS e sistema wi-fi conectados ao computador ou ao celular do 
dono. 
Além de contar por onde anda o cachorro, ela monitora a saúde 
do bicho, contando que tipo de exercício ele está fazendo, por 
quanto tempo e em que intensidade. Se o animal sair da área 
permitida pelo dono, o dispositivo emite sinais de alerta por 
mensagens e e-mails. Criado em 2011 por uma empresa 
americana, o aparelho funciona com uma bateria recarregável 
e pode ser usada também em gatos.



O canal Dogtv, lançado em 2012, nos Estados Unidos, promete entreter, relaxar e estimular os cachorros. 


Sua programação, baseada em estudos científicos sobre a percepção canina, tem frequências sonoras agradáveis aos ouvidos caninos e predominância das cores vermelha e verde, já que os cães não distinguem amarelo e azul. 


A programação alterna imagens de paisagens tranquilas, com cachorros descansando, e outras "brincalhonas" e agitadas. 


Está disponível nos Estados Unidos e pode ser vista online.


Percepção canina — Além das sensações positivas, os cães também sabem decodificar sons humanos. 


Há pouco menos de um mês, o neurocientista húngaro Attila Andics, comprovou em um estudo publicado no periódico Current Biology que, pelo tom da voz, cachorros podem identificar se o dono está feliz ou triste. 


Para chegar a essa conclusão, ele e sua equipe fizeram exames de ressonância magnética nos animais, também treinados para os testes. 


Perceberam que seu cérebro tem mais atividade quando ouve vozes humanas ou latidos, e se intensifica se o som ouvido é emocionalmente positivo.


Os pesquisadores foram os primeiros a perceber que as áreas cerebrais que respondem à voz são parecidas em homens e cães. 


"Acreditamos que, por isso, a comunicação vocal entre as duas espécies é fácil e bem sucedida", diz Andics. 


Entre os próximos passos de suas pesquisas está descobrir como funciona a sensibilidade dos bichos a palavras e analisar se os cães processam e consolidam sua memória durante o sono, de maneira semelhante aos humanos.


"O fato de que os cachorros são capazes de participar desses experimentos abre espaço para um novo caminho na área da neurociência comparada. 

Listamos uma dezena de testes que queremos fazer, que possam mostrar como o cérebro dos animais responde a informações fonéticas e semânticas e como eles reconhecem e categorizam informações sociais", diz o pesquisador.


 "Sabemos muito bem que cães são bons em se conectar com os sentimentos de seus donos e que um bom dono pode detectar mudanças emocionais em seus bichos — mas agora começamos a entender por que tudo isso acontece."


Linguagem de cachorro — Os milhares de anos de convivência entre cães e humanos fizeram com que a comunicação entre as duas espécies se tornasse bastante eficaz. 


E isso se baseou em duas estratégias bem pouco tecnológicas: a atenção dos donos e os latidos dos animais. 


No livro Seu Cachorro é um Gênio!, publicado em 2013, o neurocientista americano Brian Hare, fundador do Centro de Cognição Canina da Universidade Duke, nos Estados Unidos, mostra que os animais desenvolveram três grandes grupos de latidos: os de alerta, os para chamar a atenção e os para brincar. 


Os primeiros são mais graves e os últimos, mais agudos e espaçados. Cães também são capazes de emitir diversos sons para se expressar — com altura, duração e frequências diferentes.



De acordo com o biólogo John Bradshaw, pesquisador da Universidade de Bristol, na Inglaterra, que estuda o comportamento de animais de estimação há trinta anos, toda essa variedade de barulhos surgiu porque esses bichos evoluíram desenvolvendo estratégias comunicativas complexas com os humanos. 


Em seu último livro, Cat Sense (publicado em 2013 e ainda sem tradução no Brasil), Bradshaw compilou os últimos estudos sobre comportamento e neurociência animais e mostra como essa nova leva de pesquisas está ensinando os homens a interpretar não só os latidos, mas também as atitudes e gestos de seus bichos. 


É o avanço científico que vai nos ensinar a decodificar os pensamentos de nossos cachorros, sem a necessidade de nenhum aparelho. 


Por isso, para o cientista, um equipamento como o dos inventores suecos ainda está na categoria de produtos caros e enganosos.


 "Hoje ainda não há tecnologia para ler a mente de um cachorro enquanto ele está se movimentando. E duvido que alguém consiga captar eletroencefalogramas confiáveis através dos pelos", afirma. 


Em alguns anos, no entanto, teremos mais habilidades para compreender as emoções de nossos animais — e essa capacidade virá do conhecimento fornecido por uma série de estudos em biologia, neurociência e comportamento animais, que se intensificaram nas últimas décadas. 

A união das três áreas fará com que, em alguns anos, possamos aprender ainda mais sobre o que se passa dentro da cabeça de nossos cachorros, interpretando suas sensações e sinais.


"Os cães certamente se beneficiam do conhecimento que temos de suas verdadeiras naturezas, que só pode vir da ciência", afirma o biólogo. 


"Eventualmente, no futuro, será possível medir as emoções caninas por meio de ressonância magnética."


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