terça-feira, 15 de julho de 2014

O papel do desmatamento na crise de falta d’água em São Paulo



Seca na represa Jaguari, que faz parte do Sistema Cantareira
Seca na represa Jaguari, que faz parte do Sistema Cantareira
Publicado originalmente na DW.

Depois de atingir o menor nível já registrado – apenas 8,4% da sua capacidade –, o sistema Cantareira, principal fornecedor de água da região metropolitana de São Paulo, vai em busca das últimas gotas.


A crise no abastecimento de água não se deve apenas ao calor recorde e ao menor índice de chuvas já registrado nos últimos 84 anos. Especialistas defendem que o desmatamento em bacias hidrográficas contribui para diminuir a quantidade e a qualidade das águas, tanto superficiais quanto subterrâneas.


“Nós temos apenas 30% de área com florestas preservadas nesse manancial [Sistema Cantareira]. O restante precisa ser recuperado ou tem uso inadequado de solo”, afirma a coordenadora da Rede das Águas da SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro.


Resultados de um experimento feito pela ONG desde 2007 – que restaura uma floresta num centro em Itu, interior de São Paulo – comprovam essa relação. “Em 2012, apenas cinco anos depois, foi verificado que o nível dos lençóis freáticos subiu 20% e o dos reservatórios, 5%”, argumenta Ribeiro.


Estudos apontam que a floresta atua como reguladora do ciclo hidrológico, atenuando os impactos de eventos climáticos extremos, como secas e enchentes. “A floresta aumenta a resiliência dos mananciais. O desmatamento não é causa da seca, mas, se houvesse maior cobertura vegetal, o esgotamento dos reservatórios poderia ser evitado”, diz Ribeiro.


O problema, entretanto, não está restrito a São Paulo. De acordo com um levantamento inédito do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, os reservatórios considerados críticos pela Agência Nacional de Águas (ANA) perderam em média 80% de sua cobertura florestal.


“Ainda estamos detalhando o estudo, mas já podemos perceber que uma das semelhanças entre os mananciais críticos em relação ao abastecimento de água é o desmatamento”, explica o coordenador geral do Pacto e diretor para Mata Atlântica da Conservação Internacional, Beto Mesquita.



A pesquisa inclui as capitais do litoral do país, além de Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo, bem como cidades do interior paulista, como Sorocaba e Campinas.

O papel da floresta

A floresta tem uma série de funções no ciclo hidrológico. Quando a chuva cai num terreno com cobertura vegetal, a água infiltra lentamente no solo, até atingir os lençóis freáticos. Aos poucos, ela aflora nas nascentes e enche os rios, até chegar às represas.


“A floresta quebra a energia da chuva, porque parte da água fica na cobertura das árvores e atinge o chão devagar. Além disso, o solo da mata é muito poroso, com matéria orgânica e raízes. Por isso, há mais espaço interno e maior capacidade de armazenamento”, explica Mesquita. Ele aponta também que, por essa característica, o solo da floresta libera um fluxo de água mais constante, mesmo durante uma estiagem.


Malu Ribeiro ressalta que o desmatamento ao redor do Cantareira está prejudicando a oferta de água na região. “O sistema está localizado no fundo do vale do Rio Jaguari, que tem um conjunto de nascentes na Serra da Mantiqueira. O desmatamento no curso dos rios até o reservatório faz com que essas nascentes desapareçam e os cursos d’água não consigam se recuperar.”

Enchentes e assoreamento

Onde não há floresta, a infiltração da chuva no terreno é mais difícil. Num solo de pastagem, por exemplo, a quantidade de água escoada é até 20 vezes maior que em área de vegetação, segundo o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Philip Fearnside.



Por esse motivo, em período de muita precipitação, áreas desmatadas estão mais sujeitas a enchentes. A água escoa rapidamente e em quantidade, enchendo os rios e represas, muitas vezes de forma desastrosa. Neste processo, a água carrega consigo muito material orgânico, erodindo o terreno e assoreando os reservatórios.
“Esse é um problema grave no Brasil e principalmente no Sistema Cantareira, porque perdemos a capacidade de reservar água. Quando chove muito, o excedente acaba sendo jogado fora”, argumenta Ribeiro.


Segundo Mesquita, por evitar o assoreamento, a floresta aumenta a vida útil do reservatório, além de prolongar o tempo de abastecimento durante uma seca.

Umidade e qualidade da água

Outra importante função da floresta é reter água da atmosfera. Na bacia do Rio Guandu, no estado do Rio de Janeiro, 30% da água é incorporada ao sistema por essa via, segundo estudo da Conservação Internacional. “Quando vêm a neblina e nuvens carregadas, quanto mais floresta tiver em regiões montanhosas, maior a retenção de água”, diz Mesquita.


A floresta contribui para manter a umidade do ar, através da transpiração das plantas. “Cerca de 30% da água na atmosfera vêm das florestas. Num reservatório, se o ar está seco, isso também aumenta a evaporação na represa”, alerta o presidente e pesquisador do Instituto Internacional de Ecologia de São Carlos, José Galízia Tundisi.


A vegetação também participa no ciclo hidrológico, atuando como um filtro para manter a qualidade da água. “A floresta retém metal pesado em suas raízes e matéria em suspensão. Ela também filtra a atmosfera e diminui a quantidade de partículas que podem cair na água”, afirma Tundisi.


Um levantamento deste ano da Fundação SOS Mata Atlântica em sete estados também comprova essa relação entre floresta e a qualidade da água. Dos 177 pontos avaliados, apenas 19 (11%), localizados em áreas protegidas e de matas ciliares preservadas, tiveram bons resultados.


O desmatamento na Amazónia influencia no regime de chuvas de SP
O desmatamento na Amazônia influencia no regime de chuvas de SP

Desmatamento na Amazônia

Não é apenas a perda de floresta nos mananciais que pode ameaçar a oferta de água em São Paulo. O desmatamento na Amazônia também impacta negativamente a quantidade de chuva que chega ao sudeste.



Estudos revelam que até 70% da precipitação em São Paulo, na estação chuvosa, depende do vapor d’água amazônico. O meteorologista Pedro Silva Dias, da Universidade de São Paulo, também pesquisa o tema. “O desmatamento na Amazônia vem causando impacto, por exemplo, a produção de arroz no Brasil. Se houver um processo muito intenso de perda de floresta amazônica, as regiões sul e sudeste sofrerão um processo de desertificação”, defende Ribeiro.


Philip Fearnside diz que esse desmatamento, em torno de 20%, não explica a seca atual em São Paulo. “Ainda tem 80% da floresta amazônica, isso não é suficiente para causar uma queda dramática na chuva de São Paulo de um ano para o outro”, diz o pesquisador, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2007, com outros cientistas, por alertar contra os riscos do aquecimento global.


Fearnside ressalta, entretanto, que o impacto é gradual e progressivo. “Se continuar desmatando, como é o plano do governo com os projetos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), vai diminuir o fluxo de água para São Paulo, que já está no limite para o abastecimento. Cada árvore que cai, é menos água indo para lá.”

Mentalidade do esgotamento

Para os especialistas, há uma mentalidade voltada para o esgotamento dos mananciais, que prejudica a gestão dos recursos hídricos no Brasil.


“É a falsa cultura da abundância, a ideia de que podemos esgotar os reservatórios, porque depois vem o período de chuvas e enche de novo. Só que há uma diminuição do volume de águas ao longo das décadas em vários reservatórios do sudeste. Em São Paulo, isso ocorre na bacia do Piracicaba e na bacia do sistema Cantareira”, afirma Ribeiro.


José Galízia Tundisi chama esse pensamento de “aqueduto romano”. Consiste em usar o reservatório até esgotar e depois buscar água limpa em uma região mais distante. “É o que São Paulo está fazendo. Em breve vai ter que pegar água no Paraná”, afirma o pesquisador.


Os pesquisadores alertam que é muito difícil recuperar um manancial depois de exaurido. O solo fica pobre e seco, funcionando como uma esponja. “Quando chover, o terreno vai chupar grande volume de água, até que ele recomponha os aquíferos subterrâneos. Em alguns casos é até impossível reverter a degradação”, diz Ribeiro.
Com a retirada do “volume morto” do Cantareira, especialistas temem pela recuperação do reservatório.


 A reserva, que nunca foi usada antes, será puxada por bombas, já que fica abaixo do ponto de captação da represa.”Se usar todo o volume morto do Cantareira, vai levar anos para retornar ao que era antes”, lamenta Tundisi.

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