quinta-feira, 22 de maio de 2014

Opinião: A Polícia Federal e a falsa camisa da Seleção


Uma camisa oficial da seleção, da Nike, custa R$ 349,90, ou seja, quase a metade de um salário mínimo, que é de R$ 724.

Um juiz, então presidente de importante associação de magistrados, foi convidado para um congresso de empresas contra a pirataria. No meio da palestra, perguntaram: “O senhor compra produtos falsos?” 
 
O juiz não se perturbou. Respondeu com outra pergunta: “Se o senhor ganhasse salário mínimo, e seu filho de 10 anos lhe pedisse para comprar uma camisa da seleção brasileira, o senhor compraria a camisa falsa?”...
 
Uma camisa oficial da seleção, da Nike, custa R$ 349,90, ou seja, quase a metade de um salário mínimo, que é de R$ 724. No Brasil, de acordo com dados do Censo 2010, cerca de 45 milhões de pessoas ganham até um salário mínimo. São todos torcedores. Impossível não comprar.
 
O preço do produto não condiz com seu mercado. Gera-se a exclusão econômica da camisa da seleção. Patrocínios são indispensáveis à cultura e ao esporte. Apoio empresarial também. Assim como respeitar direitos autorais e de marca. Mas há limites. 
 
Em boa hora a Copa do Mundo de 2014 levanta esta questão: Quais os limites quando se trata de uso de símbolos nacionais? A lei traz alguns critérios: não deixa registrar como marca “brasão, armas, medalha, bandeira, emblema, distintivo e monumento oficiais, públicos, nacionais, estrangeiros ou internacionais”. Mas ainda assim há fronteiras indefinidas. 
 
Afinal, as camisas estão impregnadas do que em inglês se chama com certa elegância de “publicness”. Impregnadas endogenamente de interesse público relevante. Será ela um bem cultural imaterial do Brasil, como defendeu a Coca-Cola numa disputa judicial contra a CBF?
 
O Judiciário tem enfrentado essa questão. Em geral, diante de casos como compra de camisas falsas com o símbolo da CBF, concede-se a reparação do dano material, mas não de dano moral. 
 
Pergunta-se: por que um cidadão compra uma camisa falsa? Não é pelo emblema da CBF ou da Fifa. Nem pela nova gola, design ou tamanho da manga. É pelo símbolo de nacionalidade que representa. Como se dissesse: “Eu também quero competir pela pátria amada, Brasil”.
 
Diz, nos autos, em decisão recente, a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça: “As pessoas que adquirem os produtos licenciados estão muito mais interessadas em ostentar algo que tenha relação com a Seleção Brasileira de Futebol do que com a marca CBF propriamente dita”.
 
Quem construiu o que a camisa da Seleção simboliza não foi uma empresa. Foi a cultura, o talento e a paixão do Brasil pelo futebol. Foram jogadores, torcedores, vitórias, garra, clubes, federações, mídia e estádios públicos com recursos públicos.
 
Nesta Copa do Mundo, serão vendidas mais camisas falsas ou verdadeiras? Ou subfalsas? O problema é que a legislação de proteção da marca é irrealista e complexa. Merece mais discussão. 
 
Por um lado, tem-se que proteger o direito autoral, marca e outros direitos intelectuais. Por outro, ao se exigir que se cumpra uma lei contrária à realidade do mercado, desmoraliza-se a lei, o sistema. Quem planta a ilegalidade coletiva colhe a irresponsabilização coletiva. O Estado Democrático de Direito e suas instituições perdem. 
 
Quando qualquer empresa tem problemas legais relativos ao consumo de seus produtos, discute a questão no Judiciário. No caso das marcas, a lei criminalizou a compra do consumidor. A polícia pode apreender bens em fiscalização de rotina ou após denúncia. 
 
Mas, imaginem hoje, se a Polícia Federal vai promover a queima pública das camisas da Seleção brasileira, com televisão ao vivo, como promovia há alguns anos, queimas públicas de CDs e DVDs piratas. 
 
A queima ajudou muito pouco na proteção a propriedade intelectual. O que ajudou foi a modernização tecnológica, a música via internet por preços acessíveis. Não era um problema de polícia. Era um problema de mercado.
 
Se a polícia hoje fizer queimas púbicas com as camisas da Seleção, o tiro sai pela culatra. O ônus é grande. Prejudicará a imagem da Polícia Federal e a marca aos olhos dos torcedores. 
 
O dano de longo prazo de radicais legislações irrealistas é que se desmoraliza o sistema legal, a Polícia Federal e o Judiciário. Corrói-se a crença de que as leis são feitas para serem cumpridas. Estimula-se a ilegalidade porque de baixo risco. Causam-se danos de longo prazo ao Estado de Democrático de Direito.
 
JOAQUIM FALCÃO 

Professor da Fundação Getulio Vargas

Fonte: JOAQUIM FALCÃO - Correio Braziliense - 22/05/2014 - - 14:17:07

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