Publicado em julho 18, 2016 por Redação
Os megaeventos esportivos mundiais, como a Copa do Mundo
FIFA e os Jogos Olímpicos, transformaram-se em um modelo de negócio na
era globalizada, responsável pela atração de fluxos financeiros,
reestruturação de circuitos de circulação e acumulação local. Em
entrevista para o INCT Observatório das Metrópoles, o pesquisador
Christopher Gaffney mostra como os Jogos Olímpicos Rio 2016 representam
mais uma etapa desse modelo, formado pela coalizão de interesses entre
classe política, elite econômica local e fluxos de capital
internacional.
Um processo com poucos ganhadores e muitos perdedores. O
legado que o Rio Olímpico deixará para a sua população é de
endividamento do Estado e da Cidade; falência do sistema de educação e
saúde; uma polícia mais militarizada e menos treinada; e muitos casos de
violações dos direitos humanos — com mais de 77 mil pessoas removidas
de suas casas.
O professor Christopher Gaffney possui mestrado em geografia na University of Massachusetts at Amherst e doutorado em geografia na University of Texas at Austin.
Atualmente leciona na Universidade de Zurich, na Suíça. Ele tem
realizado pesquisas no Brasil nos últimos 12 anos, monitorando e
avaliando os impactos sociais e urbanos dos megaeventos esportivos no
Brasil e no Rio de Janeiro, tratando de questões como segurança pública,
transporte, habitação e gentrificação, economia, culturas esportivas e infraestruturas desportivas.
Entre 2009-2014, Gaffney manteve o blog Hunting White Elephants,
que narrou as provações e agruras de uma cidade contorcendo-se às
exigências do espetáculo. Ele também colaborou com a Rede INCT
Observatório das Metrópoles, participando do projeto “Metropolização e
Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016”.
Nesta entrevista, Gaffney analisa os
processos de “fluxos, circulação e acumulação” que envolvem o modelo de
negócios dos megaeventos esportivos; fala também da coalizão formada
para a realização dos Jogos Olímpicos no Rio e como a elite local
consolidou o seu poder a partir do domínio dos sistemas de circulação
(transportes) e da especulação imobiliária. O pesquisador comenta o
legado negativo que ficará para a cidade e os movimentos de resistência
popular — que tiveram um papel fundamental na defesa dos direitos
humanos.
ENTREVISTA — CHRISTOPHER GAFFNEY
Por Breno Procópio — Jornalista da Rede INCT Observatório das Metrópoles
Você tem apontado que os
megaeventos esportivos transformaram-se em um novo modelo de negócio na
era global. Como ocorre esse processo?
C.G. Pensando os
megaventos esportivos como negócio faz toda uma diferença em termos de
análise. Normalmente, pensamos os Jogos Olímpicos, por exemplo, como
recordes, esporte de auto rendimento, dopings e outras questões; ou
seja, um esporte despolitizado.
Mas quando pensamos o megaevento no seu
viés político e nos perguntamos por que é importante para um país ou
cidade atrair esse tipo de evento? Ou quais coalizões de políticos e
capitais locais se arregimentam para atrair o megaevento esportivo?
Vemos que há muitos outros interesses por trás. Vemos que há o interesse
pelo poder — de capital político para exercer influência local; mas
também há um processo de acumulação econômica de recursos local e
globalmente, o que é fundamental para a manutenção de eventos como a
Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
Para acumular é necessário ter um
mecanismo de acumulação; um padrão de acumulação que deve estar atrelado
ao padrão de política econômica global. Então, vendo o mesmo tipo de
resultado em todas as cidades que receberam megaeventos esportivos, como
Londres, Vancouver, Seul, Atena, Atlanta; e isso desde a década de
1980. Ou seja, podemos dizer que os Jogos Olímpicos em particular — e
também a Copa do Mundo de uma outra forma — representam um modelo de business globalizado.
Você fala que esse modelo de negócio global ocorre a partir de mecanismos como fluxo, circulação e acumulação. Como isso se dá?
C.G. Para estimulara
acumulação de poder e de dinheiro, é necessário estimular a geração de
novos fluxos para uma cidade ou local. Quer dizer, colocar no mapa
global uma cidade é fazer com que os fluxos internacionais financeiros
conheçam aquela cidade, entendam seu funcionamento e saibam que terão
portas abertas para negócios.
Esse processo atrai investimentos e mais
fluxo de dinheiro para determinado local – turismo, eventos, negócios e
empresas, e por aí vai. Logo, quando uma cidade se candidata para
receber os Jogos Olímpicos isso funciona com um sinal de aviso
internacional: estamos aqui abertos para negócios, ou seja, a cidade
está a venda, seu solo, seus espaços estão à venda ou podem ser
alugados. Nesse sentido, os cidadãos também estão à venda, também
participam desse processo.
Esse sinal tem várias direções, é um
marco para os fluxos financeiros internacionais, como também para os
capitais regionais e locais interessados em participar do negócio. Em
seguida, quando a cidade é escolhida para sediar os jogos — como
aconteceu com o Rio de Janeiro em 2009 — ocorre um aumento do fluxo
financeiro, que vem de todas as direções interessados em realizar mais
negócios.
Porém, para que esses fluxos virem acumulação e, em
decorrência, poder, é necessário colocar esses fluxos em um circuito de
circulação, seja através de informação em redes de fibra óptica, centros
de mídia internacional e/ou grandes estádios capazes de receber os
turistas endinheirados do mundo. Outro exemplo de circuitos de
circulação são novos sistemas de transporte que reafirmam ou apontam
novas centralidades econômicas e políticas no território. Então, esse
processo de remanejar o sistema de circulação de uma cidade gera
implicações na sua economia política, na forma de acumulação da sua
população.
Essa é uma questão central no Rio de
Janeiro, já que todo o transporte público é privatizado — está nas mãos
de empresas privadas. E é notório os casos de corrupção e máfia das
empresas de ônibus, os processos licitatórios não transparentes como o
caso da Linha 4 do metrô.
Esse triângulo — que em certo sentido é
lefebvriano e dialético — mostra que no centro está o poder. O passo
seguinte é estimular os fluxos e, em seguida, direcional os circuitos de
circulação para locais já dimensionados com o arranjo da economia local
já preexistente. Ou seja, a coalizão é feita para que os meus
ganhadores continuem ganhando. Nesse sentido, os atores locais podem
acumular mais e exercer poder no território para gerar mais fluxos, e
circulação e acumulação.
Podemos dizer que conceitos como global city e
cidades criativas, usados pelo Rio de Janeiro para se vender para o
mundo ao longo dos últimos anos, fazem parte dessa estratégia de atração
de fluxos para a geração de negócios globais?
C.G. O Governo do Rio de
Janeiro falava que a cidade era a capital de investimentos no Brasil,
ou seja, queria dizer que o Rio era o estado mais inserido nos fluxos
globais de capital. Nesse sentido, cidade global significa que é a
cidade mais conectada com esses fluxos, mais aberta para circulação e
acumulação de capital tanto para o investidor estrangeiro como para o
local.
No contexto local, por exemplo, o
objetivo é ampliar novas formas de acumulação de capital pelo estímulo
de circulação de fluxos. Nesse caso podemos pensar as UPPs como a
entrada do Estado na favela e a possibilidade também do capital nacional
entrar nesses territórios, e, é claro, dos turistas. As UPPs derrubaram
as barreiras físicas dessas favelas onde o Estado não entrava, e onde o
capital também não. Quem dominava os fluxos e a circulação nas favelas
era o traficante ou, nos últimos tempos, as milícias. A UPP representou
também essa abertura. É claro que na proposta inicial o Estado iria
oferecer serviços sociais, mas isso parece que não aconteceu de fato.
Os megaeventos esportivos nem
sempre representaram um modelo de negócio global, não é? Como foi a
transição para essa modelo? Barcelona 1992 é um marco neste novo
processo global de fluxos de acumulação?
C.G. Acho que esse
processo acontece um pouco antes. Em 1976 em Montreal, por exemplo,
ocorreu o endividamento total da cidade, com dívida a ser paga nos
próximos 30 anos. Daí ninguém no Canadá quis saber mais daquele modelo
de evento esportivo. Nos jogos de 1984 só tinha uma candidata que era
Los Angeles; mas é claro que a cidade norte-americana podia dizer ao COI
o modo como ia realizar o megaevento.
Daí, os jogos de Los Angeles
foram os mais comercializados/mercantilizados na história dos jogos. Já
em 1988 nos jogos de Seul, foram removidas cerca de 200 mil pessoas de
suas casas, e as manifestações de estudantes pelo direitos foram
reprimidas duramente. Aquele período marca a saída da Coreia do Sul da
ditadura, então os jogos olímpicos de 1988 foram utilizados como
propaganda das empresas coreanas para o resto do mundo — Hyundai, entre
outras marcas — foi o nascimento do tigre asiático nessa época.
Em 1992 já temos o fim da Guerra Fria. É
uma nova época com a experimentação de novos modelos, e a intensificação
do processo de globalização, ou seja, não havia mais a luta do
capitalismo contra o comunismo. Então, vemos a Espanha e Barcelona se
inserindo em uma nova rota do turismo internacional, com a explosão dos
novos meios de comunicação. Podemos dizer que Barcelona se tornou o novo
modelo de negócio nesse momento da globalização internacional.
E o Rio de Janeiro já está interessado
nesse modelo desde a década de 1990. Após os Jogos Olímpicos de
Barcelona, o prefeito da época, César Maia, contratou os catalães para a
construção de um novo plano estratégico para a cidade. Quer dizer, o
Rio está buscando este modelo de circuito financeiro e turístico global
há mais de 25 anos. Quando os políticos cariocas dizem que é a capital
do investimento, significa que a cidade está aberta aos fluxos
financeiros internacionais. É um modelo de coalizão local para a geração
de fluxo e acumulação. A questão é que são poucos os ganhadores.
Quando o Rio de Janeiro foi
escolhido em 2009 para ser sede dos Jogos Olímpicos de 2016, os atores
políticos e a grande imprensa comemoraram a escolha como a possibilidade
de retomada da cidade; e, sobretudo, de construção de um legado
olímpico para a sua população. Nas vésperas de começar os jogos, o
carioca pode comemorar esse legado?
C.G. Primeiro temos que recuperar o
significado de legado, que pode ser tanto positivo quanto negativo. É
óbvio que os legados para a cidade do Rio de Janeiro são negativos ao
extremo: endividamento do Estado e da Cidade; falência do sistema de
educação e saúde; trânsito pior do que nunca etc. E são vários os
culpados nesse processo.
Embora possamos notar no caso dos megaeventos
esportivos o chamado “vácuo de responsabilidade”. Ou seja, o COI pode
dizer que a cidade é responsável pela infraestrutura; e a cidade dizer
que o COI demanda certa coisas. Na Copa do Mundo de 2014 foi a mesma
coisa — governo federal, governo estadual, cidade-sede ou FIFA ninguém
era responsável por nada, ninguém queria assumir a culpa. É o famoso
jogo de empurra. E o resultado são vários “elefantes brancos” andando
pelo país todo.
Sobre a questão do legado, vemos que para
o carioca o que fica é negativo. O cidadão tem menos opção de
transporte; ou tem opções afuniladas para determinados locais — como a
Barra da Tijuca; e/ou superlotados — temos várias reportagens mostrando a
superlotação das linhas de BRTs e os problemas frequentes. A cidade
tem agora também uma polícia mais militarizada e equipada, e menos
treinada. Podemos ter o contexto no qual um novo policial vende seu
armamento no mercado negro — e ganha muito mais do que o seu salário.
Isso pode ocorrer. Isso ocorre no Rio.
Ou seja, todo o contexto de discurso
positivo de legado para a cidade e sua população foi agora perdido. Não
pode ser provado e tampouco experimentado. Não é a cidade do dia a dia.
E podemos ver o poder público dizer que,
por exemplo, o Parque de Madureira é um legado, já que não teria sido
feito sem o contexto dos megaeventos.
Mas por que não? Quer dizer, cada
coisa que a Prefeitura do Rio fez nos últimos 8 anos vai dizer que foi
por causa dos Jogos Olímpicos, que é resultado dos jogos. Mas isso é uma
maquiagem discursiva. Ainda mais se notarmos que tudo que dá errado na
cidade o prefeito Eduardo Paes diz que é culpa do Estado do Rio ou do
Governo Federal, sempre joga a culpa pra longe dele.
Enfim, é um discurso que devia ter sido
desconstruído na época da candidatura e/ou indicação do Rio para ser
sede dos jogos. Por isso, acho que o debate deve ser politizado ou
polemizado, já que os Jogos Olímpicos 2016 devem ser vistos sim não como
uma oportunidade de retomada da cidade ou de construção de legado, mas
(uma análise mais realista) como um modelo de negócio local e global,
uma grande oportunidade sim de consolidar o poder da elite carioca pelos
próximos 50 anos.
Muito dinheiro foi roubado, desviado ou
mal aplicado nesse processo. E ainda assim a elite econômica carioca
conseguiu remanejar e deslocar os circuitos de circulação, impedindo que
as pessoas possam circular facilmente pela cidade para perseguir as
suas possibilidades de acumulação. E os meios de circulação na cidade,
de dinheiro, informação e mobilidade estão nas mãos privadas de sempre.
Então a consolidação desse poder da elite local sobre os circuitos de
circulação vai refletir nos processos de acumulação da cidade pelos
próximos 50 anos.
É por isso que podemos perguntar: Jogos Olímpicos 2016 — para o benefício de quem?
C.G. Acho importante
perguntar para quem, onde, como e por quanto tempo. É lógico que podemos
apontar questões graves como a as remoções de milhares de pessoas; a
revitalização da região portuária que vai beneficiar a especulação
imobiliária e os grandes negócios, enquanto promove um processo de gentrificaçãoe
expulsão da população local; a construção da Linha 4 do metrô, que está
custando bilhões de reais e foi criticada por muitos engenheiros e
especialistas na área; a falta de transparência nos contratos públicos
para as obras estruturais — o que faz reafirmar a suspeita de casos de
influência e corrupção.
A Operação Lava Jato, por exemplo, já está
mostrando que as grandes empreiteiras envolvidas com as obras do projeto
Porto Maravilha estão imersas em casos de corrupção com a elite
política do Estado do Rio de Janeiro.
Obras da Linha 4 do Metrô Rio na Barra da Tijuca (Crédito: Vitrolebus/Reprodução)
O processo todo mostra, acima de tudo,
que quem se beneficiou com os Jogos Olímpicos no Rio é quem já estava na
posição de se beneficiar antes. A coalizão nacional formada para a
realização dos jogos teve como objetivo, desde o início, captar os
recursos públicos para acumulação privada. Enfim, é um jogo de cartas
marcadas — e a população está excluída dele.
E, infelizmente, podemos dizer que o Rio
de Janeiro vai demorar a ter um contexto econômico tão favorável como
foi na última década para receber tantos investimentos — decorrentes de
fatores como petróleo, fluxos financeiros etc. Nesse sentido, o que foi
feito em termos estruturais nos preparativos para os megaeventos
esportivos é algo que seria aportado ao longo de 50 anos, ou seja, esses
investimentos deveriam dar condições para a cidade pelas próximas
décadas. E a questão estrutural é aquela que dá condições à população da
cidade de buscar acumular de maneira mais igualitária. E isso não
aconteceu no Rio.
A Prefeitura do Rio de Janeiro
sempre faz propaganda da “revolução dos transportes” na cidade que tem
ocorrido por conta dos investimentos dos megaeventos esportivos. Como
você avalia essa questão?
C.G. É uma revolução
entre aspas. Pode-se dizer que é uma revolução revoltante. Só isso. O
BRT, por exemplo, não é uma nova tecnologia – é algo já usado há tempos
por outras cidades. Além disso, esse tipo de modal abre espaço para o
carro, incentiva continuamente o uso do transporte individual, já que
uma linha é exclusiva para o ônibus, logo ele se deslocará mais rápido;
enquanto sobram duas ou três faixas para os carros. Quem está sendo
estimulado nesse cálculo?
Além disso, o BRT está sendo feito pelas
mesmas empresas que já dominam o transporte de ônibus na cidade do Rio
de Janeiro. Ou seja, é manutenção de um mesmo sistema, com os mesmos
donos e as mesmas regras. Além do mais, as linhas de BRTs vão todas em
direção à Barra da Tijuca, isto é, é a construção de uma nova
“centralidade”, ou de um polo econômico definido a partir de cima. As
linhas de BRTs levam a população pobre para trabalhar na Barra da Tijuca
– é isso que as linhas estão estimulando — de Santa Cruz para a Barra,
da zona Norte para a Barra. A população se desloca em ônibus
superlotados para fazer trabalhos de mão de obra e precarizados na Barra
da Tijuca, como jardinheiro, cozinheiro, garçom, servente, faxineira
etc.
Portanto, quando eu falo sobre a
limitação das possibilidades de acumulação da população é bem
representada por essa “revolução de transportes”. Áreas com trabalhos
formais — como o Centro e a Zona Sul, e o interior da Zona Norte estão
sendo menos estimulados pelos novos modais. O poder público define a
área que a população deve chegar para trabalhar.
Além do mais, o sistema de transporte do
Rio é muito falho. Os pontos de ônibus, por exemplo, não têm itinerário e
mapas. Uma pessoa que não conhece a cidade, não consegue pegar um
ônibus com facilidade. E houve ainda um remanejamento das linhas de
ônibus. Com qual interesse?
Racionalização das linhas de ônibus é uma
maneira autoritária de remanejar as circulações na cidade. É uma forma
de limitar as possibilidades de acumulação (busca por trabalho) e também
de lazer. A população da zona Norte, por exemplo, está mais limitada
para ir à praia na zona sul. E agora escutei que o Estado do Rio quer
fazer cortes do bilhete único. Essa é a revolução que temos.
Ônibus do BRT superlotado
Você monitorou durante os
preparativos para a Copa do Mundo 2014 as obras e os incentivos ao
esporte nas cidades-sedes brasileiras. O que você diz sobre o Rio
Olímpico em tempos de estímulo ao esporte? O que a cidade do Rio fez em
termos de investimento ao esporte? E o que a cidade deixará como legado
esportivo para a sua população?
C.G. Tem vários tipos de
cidadãos no Rio de Janeiro. As pessoas que moram na Zona Norte não
praticam esporte, porque não tem espaços para a prática — praças,
quadras públicas etc. O cidadão que habita as áreas periféricas gasta
ainda em média duas a três horas no ônibus para voltar para casa; quando
chega já está esgotado e sem energia para o lazer e a prática
esportiva.
O chamado Rio esportivo e do lazer se
concentra no Centro e orla da Zona Sul, até a Barra da Tijuca. Nessas
regiões, as pessoas praticam esporte ao ar livre, fazem uso das quadras
do Aterro do Flamengo e têm acesso a modalidades esportivas diversas.
Nesse sentido, o acesso à prática do esporte no Rio de Janeiro é algo
completamente desigual e segregado.
E podemos dizer que nos últimos anos até
piorou, já que os remanejamentos das linhas de ônibus e a piora do
trânsito dificultou a chegada das pessoas à orla da zona sul e às
praias. Ademais, vemos que há uma carência de equipamentos esportivos
descentralizados — nos bairros da Zona Norte e Oeste, nas escolas etc.
E há ainda a oferta desigual. No Rio
existem 4 quadras públicas para a prática do tênis para 6 milhões de
pessoas. E para os Jogos Olímpicos a Prefeitura construiu um Centro
Internacional de Tênis, no valor de 200 milhões de reais, na Barra da
Tijuca — local repleto de condomínios fechados que possuem suas quadras
privativas de tênis. Então, é um modelo de oferta e acesso que se
espalha no Rio de Janeiro e também no Brasil. Uma oferta para a prática
do esporte que atende a quem já tem condições de acesso.
É claro, que no contexto dos jogos, o Rio
investiu no esporte de auto rendimento — que é um negócio
internacional. Se o Brasil vai ganhar ou não ganhar medalhas isso não
importa, já que o país não tem tradição nessas competições — e não tem
tradição porque não tem investimento.
Outro debate importante é o que liga
esporte-saúde, porque a cada um real investido em esporte, o poder
público economiza três reais em saúde. É a oferta de lazer que gera
saúde. E isso tem a ver com planejamento urbano e política pública. Acho
que o Rio de Janeiro segue na contramão dessa noção, com uma política
do espaço urbano extremamente mercantilizadora e de exploração do valor
de uso.
Além disso, vejo uma certa perversidade
em investimentos de bilhões e bilhões de reais em equipamentos
esportivos de auto rendimento, enquanto o Maracanã, por exemplo, símbolo
da cultura carioca perdeu suas características, foi transformado para
atender um conceito internacional de cidade global para o consumo.
Você tem pesquisado e refletido sobre esse processo de gentrificação do esporte.
C.G. Acho que o estádio
de futebol, numa cultura como a brasileira, é um reflexo da cidade e de
seu povo, socialmente e culturalmente. O Maracanã, antes da chegada do
circuito de investimentos dos megaeventos esportivos, refletia muito bem
a cidade do Rio de Janeiro e seu povo: era aberto, decadente, caindo
aos pedaços, mas era vivo, diverso. Havia violência, mas também tinha
uma cultura bastante particular, e era um lugar que dava o tom do
funcionamento da cultura carioca. O Maracanã está localizado perto do
centro, recebia pessoas de todas as áreas da cidade.
Porém, nos últimos 15 anos, a população
foi expulsa de lá. O lugar foi transformado, gentrificado, para ser o
símbolo de um novo Brasil que queria se expor ao mundo, apto a receber
negócios e a ser global. O Maracanã foi privatizado uma vez; e agora
deve ser privatizado de novo. Houve uma bagunça institucional envolvendo
Estado e Prefeitura do Rio.
O estádio foi usado com moeda política
também. Enfim, o Maracanã foi útil para os políticos e fantástico para a
elite carioca, que tem condições de pagar 100 reais para assistir a um
jogo de futebol com 8 mil espectadores. Essa elite acha interessante
essas condições, porque tem mais conforto e é apto às suas famílias. As
classes alta e média cariocas gostam dessa ideia. Mas eles não são a
maioria da população.
Pra finalizar a conversa,
gostaria que você comentasse o papel de resistência dos movimentos
populares no contexto dos megaeventos esportivos no Rio de Janeiro? Qual
a relevância dessas ações?
C.G. Se houve algo
realmente positivo, nesses últimos 10 anos no Brasil e no Rio de Janeiro
que marcam os preparativos para os megaeventos esportivos, acho que
foram os movimentos de resistência. Especialmente os Comitês Populares e
o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, e mais os outros movimentos,
que resistiram e lutaram em defesa dos direitos humanos, do esporte mais
democrático, da transparência do uso do dinheiro público. E esses
movimentos lutaram contra forças enormes, governos, grandes empresas e
corporações.
E acho que um dos resultados dos
movimentos de resistência foi mudar a opinião internacional sobre os
megaeventos esportivos no Brasil. Vemos agora várias cidades ao redor do
mundo e suas populações compreendendo o processo que se dá aqui;
estrangeiros que estão acompanhando desde 2013 as lutas dos comitês
populares e entendendo as graves violações de direitos que ocorreram
aqui — como as remoções de milhares de pessoas de suas casas.
Parte da comunidade internacional está
entendendo que a realização dos megaeventos esportivos sempre é à custa e
nas costas das populações locais. A mensagem que a resistência
brasileira passou foi essa. E vejo que a realização dos Jogos Olímpicos
2016 representou um momento central para a história dos movimentos de
resistência brasileiro, movimentos da sociedade civil engajados no
debate sobre o desenvolvimento social e pela democracia brasileira. A
resistência aqui será levada como modelo para outros grupos nos próximos
jogos.
Ato do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas
O que o Rio vai deixar de olímpico para a sua população?
C.G. Olimpíadas sempre
têm vencedores e perdedores. Nos jogos sempre são três vencedores em
cada modalidade. No Rio de Janeiro sabemos exatamente quem são: os
grandes empreiteiros de construção civil — parte deles envolvido com a
Operação Lava Jato; a especulação imobiliária — que ganhou muito nos
últimos anos; e a classe política e elite local — que conseguiu
construir uma rede de poder que vai durar pelos próximos 50 anos.
Nos
jogos quem fica em quarto ou quinto lugar, não é lembrado. Não importa.
O espírito olímpico é isso: vencedores e perdedores. E a população
carioca faz parte dos que estão sendo esquecidos.
Colaboração de José Eustáquio Diniz Alves, in EcoDebate, 18/07/2016
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