“A prosperidade da vida humana e das suas culturas é compatível
com um substancial decrescimento da população” (1984)
Arne Næss and George Sessions em 8 Princípios da Ecologia Profunda
[EcoDebate]
Enquanto a roda viva dos eventos sociais gira de maneira alucinante e
as atividades antrópicas crescem continuamente, há um desastre ecológico
ocorrendo em câmara lenta (para os olhos humanos), mas que segue um
ritmo aceleradíssimo para a escala geológica. Aquilo que os cientistas
chamavam de maneira cautelosa de “mudanças climáticas” se transformou em
“crise climática” ou “caos climático”, passando a representar um perigo
existencial à civilização e uma ameaça concreta à sobrevivência da vida
humana e não humana. Como disse Greta Thunberg: “Nossa casa está
pegando fogo”. A crise climática é a ameaça mais urgente do nosso tempo.
E o tempo para reverter o aquecimento global está se esgotando.
Depois
de 5 anos (2014-2018) das temperaturas mais altas já registradas desde o
início da série histórica que começou em 1880, o ano de 2019 marcou a
vice-liderança e, mesmo não sendo um ano de El Niño, ficou 0,95º C acima
da média do século XX. A atual década tem sido marcada por um calor
excepcional, indicando uma tendência preocupante. O cenário climático
está ficando cada vez mais perturbador, mais ameaçador e se agravando
com muita rapidez e profundidade e os incêndios e queimadas da Austrália
são apenas uma “amostra grátis” do que vem por aí.
O
gráfico abaixo, da NOAA, tendo como referência básica a temperatura
média do período 1901-2000, mostra as temperaturas mensais entre 1880 e
2019 e a reta de tendência dos últimos 20 anos (1999-2019). Assim, em
relação à média do século XX, a temperatura de 2019 foi 0,95º C mais
alta (sendo que no mês de dezembro apresentou um aumento de 1,05º C).
Mas em relação ao período pré-industrial a anomalia foi de cerca de 1,2º
C. Na primeira metade do século XX as temperaturas estavam abaixo da
média do século e passaram a ficar bem acima da média na segunda metade
do século. Já no século XXI o aumento é ainda mais significativo, pois
das 19 maiores temperaturas, 18 ocorreram entre 2001 e 2019 e 8 dos anos
mais quentes ocorreram na atual década.
Nota-se
que, não somente o ano de 2019 apresentou um calor excessivo, como o
ritmo do aquecimento da série histórica aumentou para 0,22º C por
década. A tendência do aumento da temperatura entre 1880 e 2019 foi de
0,07º C por década. A tendência entre 1950 e 2019 foi de 0,14º C por
década e entre 1999 e 2019 foi de 0,22º C por década. Mas o mais
surpreendente é que a tendência 2009 a 2019 apresentou um aumento de
0,36º C.
Desta
forma, há, indubitavelmente, uma inquestionável aceleração do ritmo do
aquecimento global. Isto quer dizer que o aquecimento pode atingir 1,5º C
(o limite estabelecido no Acordo de Paris) até 2030 e pode atingir 2º C
antes de 2050, abrindo a possibilidade de se chegar a algo em torno de
4º C no final do século. O mundo sairia da “emergência climática” para o
“caos climático”.
Os
seis anos mais quentes do Antropoceno aconteceram entre 2014 e 2019 e
os dois gráficos abaixo mostram as variações mensais da temperatura. No
primeiro gráfico são apresentadas as anomalias mensais e o valor de cada
entre parênteses. No segundo gráfico são apresentas as variações
mensais para todos os anos da série, sendo os anos mais frios em azul e
os mais quentes em vermelho (2019 com os marcadores pretos).
Com
os sucessivos recordes anuais, a atual década (2011-20) é a mais quente
já registrada desde o início das medições em 1880. A temperatura média
da atual década ficou 0,82º C acima da linha de base 1901-2000. Nota-se
que a década de 1970 ficou 0,09º C acima da média do século XX, a década
de 1980 ficou 0,30º C, a década de 1990 ficou 0,41º C e a década de
2001-10 ficou 0,63º C acima da média do século XX.
Todos
os dados acima foram reforçados por estudo publicado dia 15 de janeiro
de 2020 por James Hansen e colegas do Goddard Institute for Space
Studies (GISS). Utilizando uma linha de base de 1880-1920 (início da
série histórica), os autores mostram que a temperatura em 2019 ficou em
1,2º C acima. O estudo mostra que a emissão de CO2, em função da queima
de combustíveis fósseis é o principal vetor de aumento da temperatura.
De
fato, a humanidade vive uma situação inusitada. Nunca, desde o
surgimento dos primeiros hominídeos – há cerca de 3 milhões de anos –
houve concentração tão alta de CO2 na atmosfera e nunca, desde o
surgimento do Homo sapiens – há cerca de 200 mil anos – houve uma
temperatura tão alta como a que se projeta para os próximos 30 anos. Na
maior parte de sua história, o Homo Sapiens viveu em temperaturas
menores do que as atuais. O clima atual é uma situação totalmente
atípica e que a humanidade nunca conviveu desde que desceu das árvores e
passou a derrubá-las.
Acontece
que esta súbita mudança climática pode levar a civilização ao colapso.
Não é a natureza que está ameaçando o ser humano. O ser humano é que
está se autodestruindo ao aquecer a temperatura do Planeta. E o pior é
que muitas espécies inocentes podem desaparecer no Antropoceno devido à
irresponsabilidade e ganância de uma espécie egoísta e que só pensa em
aumentar o seu padrão de vida às custas das riquezas naturais.
O
Acordo de Paris, de 2015, propõe limitar o aquecimento global
preferencialmente até 1,5º C e, no máximo, em 2º C. Porém, a meta mais
baixa já está praticamente impossível de ser atingida e a meta superior
pode ser ultrapassada até meados do atual século. O resultado deste
processo de aquecimento deve ser calamitoso.
Artigo
recente publicado na revista Geophysical Research Letters (Mark
Zelinka, 03/01/2020) mostra que os modelos antigos subestimaram o ritmo
do aquecimento global e novos estudos “representam as tendências
climáticas atuais com mais precisão”. Segundo os autores, no ritmo atual
o mundo caminha para uma temperatura de 5º C acima dos níveis
pré-industriais, o que torna as metas do Acordo de Paris cada vez mais
distantes.
O
aquecimento global derrete o gelo dos polos, da Groenlândia e dos
glaciares elevando o nível do mar e deixando bilhões de pessoas afetadas
pela invasão da água salgada e escassez da água potável. A acidificação
e a morte dos oceanos vai ter um impacto devastador para a humanidade. O
aquecimento e a acidificação também vai afetar a agricultura e o preço
dos alimentos deve subir, aumentando a insegurança alimentar e acendendo
uma centelha capaz de incendiar grandes mobilizações de massa.
O
jornalista David Wallace-Wells tem escrito sobre a possibilidade de uma
catástrofe ambiental. Seu influente livro “The uninhabitable Earth:
life after warming” (2019), começa com a frase: “É pior, muito pior do
que você pensa”. Ele mostra que o aquecimento global vai ser abrangente,
terá um impacto muito rápido e vai durar muito tempo. Isso quer dizer
que os efeitos danosos das mudanças climáticas vão se agravar com o
tempo e, embora todas as gerações já estejam sendo atingidas, são as
crianças e jovens que nasceram e vão nascer no século XXI que vão sentir
as maiores consequências do colapso ambiental. A degradação ambiental
vai ocorrer em várias áreas, com a acidificação dos solos, águas e
oceanos, a precarização dos ecossistemas e os desastres climáticos
extremos (secas, chuvas, furacões e inundações de grandes proporções),
tornando muitos lugares da Terra bastante inóspitos ou inabitáveis
(Alves, 2019)
Para
mudar este quadro, libertar-se dos combustíveis fósseis é essencial.
Porém, está cada vez mais evidente que não basta mudar a matriz
energética, descarbonizar a economia e promover uma maquiagem verde no
processo de produção e consumo. É preciso, urgentemente, colocar na
ordem do dia o debate sobre os meios de se promover o decrescimento das
atividades antrópicas. A meta de redução da pobreza deve ser alcançada
pelo decrescimento das desigualdades sociais e não pelo crescimento
demoeconômico desenfreado.
A
destruição do meio ambiente e os efeitos deletérios da globalização vão
provocar um agravamento das condições sociais de amplas parcelas da
população mundial, gerando levantes populares e rebeliões. Análise da
consultoria Verisk Maplecroft (16/01/2020) mostra que 47 países ao redor
do mundo conviveram com distúrbios civis no ano passado, tais como Hong
Kong, Chile, Nigéria, Sudão, Haiti e Líbano. E este número pode subir
para 75 países em 2020.
Até
a elite econômica de Davos, na Suíça, reconhece a gravidade da situação
ecológica. O novo relatório do Fórum Econômico Mundial, de janeiro de
2020, afirma que a crise climática é o maior risco global, pois se nos
anos anteriores os problemas econômicos eram considerados as maiores
ameaças, agora os temores de colapso climático ficaram no centro do
palco. As percepções de risco se desviaram para condições climáticas
extremas, desastres ambientais, perda de biodiversidade, catástrofes
naturais e falha na mitigação das mudanças do clima. Uma das estrelas do
evento será Greta Thunberg que reforçará a demanda pelo fim do uso dos
combustíveis fósseis.
Assim,
não é possível mais negar a gravidade da situação. A 6ª extinção em
massa das espécies e o agravamento do aquecimento global são apenas o
prelúdio de um colapso ecossocial que se vislumbra no horizonte. No dia
22 de abril de 2020 se comemora os 50 anos do Dia da Terra e será uma
boa oportunidade para as pessoas se manifestarem e se mobilizarem contra
o caminho ecocida e suicida que a humanidade está seguindo.
Colunista do EcoDebate.
Referências:
ALVES, JED. A maior temperatura em 5 milhões de anos, Ecodebate, 19/09/2016
ALVES, JED. O clima na era dos humanos, Ecodebate, 27/07/2016
James Hansen et. al. Global Temperature in 2019, GISS, 15 January 2020
Mark D. Zelinka et. al. Causes of higher climate sensitivity in CMIP6 models, Geophysical Research Letters, 03 January 2020
Miha
Hribernik and Sam Haynes. 47 countries witness surge in civil unrest –
trend to continue in 2020. Political Risk Outlook 2020, Verisk
Maplecroft, 16 January 2020
in
EcoDebate, ISSN 2446-9394, 20/01/2020