Por Fábio Olmos
Chen Ku, o “poço de deus” cheio de cianobactérias pouco saudáveis, na cidade maia de
Chichen Itza.
Foto: Fábio Olmos
A ciência diz que
Chen Ku,
um dos pontos mais importantes na metrópole maia de Chichen Itza, é uma
dolina, uma caverna cujo topo desabou formando um poço. No caso, cheio
de água vinda do lençol freático. Os maias que lá moravam achavam que
era um local onde podiam se comunicar com Chaac, o deus da chuva e uma
das deidades mais importantes para uma civilização de base agrícola.
A região habitada pelos maias está sujeita a secas e quando estas
ocorriam a opção era aplacar Chaac com sacrifícios humanos e de objetos
de arte lançados em Chen Ku. Obviamente estes sacrifícios tinham impacto
zero sobre as chuvas, além de piorarem a qualidade da água.
"(...)a
lista de povos orgulhosos que viraram história quando o mais importante
recurso limitante deixou de ser disponível é extensa."
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A civilização maia clássica entrou em colapso quando sua estrutura sócio-política teve que encarar
uma seca intensa que destruiu sua agricultura, situação muito piorada pelo
desmatamento realizado pelos ruralistas
daquele império. Há evidências de que a classe dirigente, que dizia ter
contato direto com os deuses e fazer chover, foi massacrada por
revoltas populares quando caiu a ficha que eles não iriam entregar o que
prometiam.
Os maias foram apenas uma das muitas civilizações que quebraram quando faltou água. Do
Mediterrâneo da Idade do Bronze passando pelo
Vale do Indus, pelos
Anasazi e
Roma,
a lista de povos orgulhosos que viraram história quando o mais
importante recurso limitante deixou de ser disponível é extensa.
Erros que se repetem
É fácil fazer piada dos maias (e outros) sacrificando crianças a Chaac para trazer chuva, mas eles não são diferentes dos
brasileiros católicos que pedem o fim da seca no nordeste e dos
norte-americanos evangélicos que pedem a mesma coisa em sua terra.
Se há algo que a história e a ciência ensinam é que rezar tem impacto
zero sobre padrões climáticos, embora mantenha as pessoas ocupadas e as
faça esquecer de cobrar seus governantes. Também aprendemos que quanto
maior e mais complexa uma civilização maior o tombo, e que é uma boa
ideia tratar muito bem os recursos escassos das quais ela depende.
Especialmente a água.
O sudeste e nordeste do Brasil vivem uma seca que reduziu dramaticamente os reservatórios das hidrelétricas da
bacia do Tietê-Grande-Paraná e do
São Francisco, forçou o país a usar termoelétricas movidas a combustível importado – o que custará a bagatela de
R$ 66 bilhões apenas esse ano - e paralisou hidrovias (veja
aqui e a
qui). Não deixa de ser interessante ver como a natureza, ao secar o São Francisco, pouco se importa com as promessas feitas sobre
uma certa transposição.
O problema da seca é piorado graças ao desmatamento, que
afeta negativamente padrões de precipitação,
a perenidade das nascentes de água, a recarga dos aquíferos e o
assoreamento dos cursos d'água e dos reservatórios. Podemos agradecer
aos "heróis do progresso" que desmataram o que nunca deveria ter sido
cortado e seus representantes no Congresso Nacional que garantiram que
eles
não consertarão o estrago.
Em meio à encrenca, a maior região metropolitana do país, São Paulo,
se destaca como exemplo de como tratamos o alicerce do qual depende
nossa civilização.
Enquanto escrevo, zerou o volume útil do Sistema Cantareira, que abastece mais de 50% da região metropolitana. Com o aval da
Agência Nacional de Águas (ANA), a empresa de abastecimento, a
SABESP, raspa o fundo do tacho sugando o chamado volume morto (veja o que é
aqui e
aqui)
e o governador paulista garante que racionamentos são desnecessários,
embora ele já esteja acontecendo. Os reis maias devem ter se comportado
do mesmo jeito.
O
Cantareira
está na bacia do rio Piracicaba e não há água suficiente para garantir a
vazão desta, com impactos tanto sobre a população humana como os
ecossistemas. Falta água para as pessoas e
a famosa piracema do rio Piracicaba foi aniquilada.
Templo de Ikas Calaveras: os maias tinham uma atitude positiva sobre a vida.... Foto: Fábio Olmos
A capital do desperdício
São Paulo e suas cidades-satélites sempre tiveram uma relação
complicada com a água. Uma cultura que acha que progresso é sinônimo de
concreto
canalizou e retificou os rios da região,
transformados em esgotos a céu aberto e inutilizados como mananciais.
Isso obriga o uso de bacias distantes como a do Piracicaba, que pagam o
pato.
Sucessivos governantes, incluindo o atual prefeito de São Paulo,
obsessivamente impermeabilizaram a maior área possível, deixando poucas
áreas verdes. Um resultado é a mudança no clima local, que fez a antiga
"terra da garoa" ser hoje mais adequada a árvores do cerrado do que da
mata atlântica, além de enchentes quando chove para valer, já que a água
não é absorvida pelo solo.
A isso se soma a pressão populacional. Válvula de escape para
problemas sociais de outras partes do país, a imigração para a Região
Metropolitana de São Paulo fez com que a população explodisse de 8,17
milhões em 1970 para 19,7 milhões em 2007, o que aconteceu na ausência
de planejamento urbano e políticas de habitação. O resultado é que, só
na cidade de São Paulo, a população favelada foi de 72 mil pessoas
(1,1%) em 1973 para 1,07 milhão (11,3%)
em 1992. Gente que, em geral, foi morar onde não deveria.
A demanda por moradia tanto por pobres como por ricos cobrou um preço pesado das
"áreas de proteção de mananciais" da região metropolitana. As áreas "de proteção" ocupadas por "assentamentos irregulares"
sofreram uma urbanização mais rápida do que áreas sem proteção legal, o que mostra quão interessadas estavam autoridades que deveriam cuidar das mesmas.
Áreas vitais para o abastecimento foram e são presas de loteamentos e
ocupações que sempre acabam legalizados graças ao "interesse social" e o
dos políticos que cultivam seus currais nestas áreas.
O tal "interesse social" garante que o entorno dos reservatórios continue sendo ocupado e reservatórios como a
Guarapiranga sejam um
caldo de plantas aquáticas dominado por
cianobactérias potencialmente produtoras de toxinas que afetam o sistema nervoso e causam câncer de fígado (veja
aqui e
aqui) Eu só tomo água que tenha passado por um filtro de carvão ativado.
Enquanto as opções de mananciais são limitadas e sua qualidade vai
para o ralo, a SABESP, considerada "um padrão" entre as empresas
brasileiras de saneamento e abastecimento,
desperdiça 31% da água captada no trajeto entre a represa e a caixa d'água . Um desempenho que dificilmente pode ser justificado.
Um problema estrutural
"A
gestão dos recursos hídricos no país mostra como é desastroso ter
políticos apenas interessados em eleições e para os quais longo prazo é
sinônimo de dois mandatos à frente de questões que demandam visão de
longo prazo."
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A má gestão da água na região metropolitana não é só culpa do governo
estadual e dos municipais. A Agência Nacional de Águas (ANA) é a
responsável por autorizar quanta água de cada manancial pode ser
retirada e para qual fim, mediando os diferentes interesses.
Infelizmente a ANA tem um mau histórico. No final de 2003, quando
vivíamos outra grande seca e o volume útil do sistema Cantareira zerou,
ela tanto autorizou o uso do volume morto como, pior, usou uma canetada
para transformar parte deste em volume útil (veja a história
aqui),
abrindo a possibilidade de lambanças futuras. Agora, ao invés de
obrigar medidas de economia, que já deveriam ter começado há muito
tempo, a ANA autorizou novamente o uso do volume morto, que é metade do
que era em 2003.
Isso significa não só o uso do fundo do tacho, onde estão
concentrados contaminantes, mas também que os reservatórios vão levar
muito mais tempo para recuperar um volume útil que possa ser considerado
seguro. É uma aposta que só dará certo se as chuvas voltarem a cair em
abundância e um risco que não precisaríamos correr se houvesse
planejamento (de novo).
A gestão dos recursos hídricos no país mostra como é desastroso ter
políticos apenas interessados em eleições e para os quais longo prazo é
sinônimo de dois mandatos à frente de questões que demandam visão de
longo prazo.
Agências reguladoras como a ANA deveriam ser técnicas e evitar que
chegássemos a situações assim, mas a gestão política as considera como
moeda de troca... política. A tomada de decisões comumente passa ao
largo do tecnicamente correto e/ou do interesse comum. Enquanto escrevo
há uma disputa entre a ANA, o Operador Nacional do Sistema Elétrico e a
Agência Nacional de Transportes Aquaviários porque
não há água suficiente para todos os interessados. Além de água faltou competência.
Nossos políticos preferem realizar grandes e caras obras para trazer
água de centenas de quilômetros (a "solução" para São Paulo é trazer
água da bacia do rio Ribeira de Iguape e a "solução" para o nordeste é a
transposição do São Francisco...) e dão pouca atenção à água
desperdiçada por canos furados e coisas simples como plantar árvores e
proteger as bacias de captação, embora esta seja a estratégia seguida
por metrópoles como
Nova York, Tóquio e
Quito. Será devido ao apetite por grandes obras das empreiteiras que bancam campanhas eleitorais?
A gestão política também acha que as coisas vão dar certo mesmo
quando se faz tudo errado, fato também visível na nossa economia. Hoje
precisamos de um milagre (ou desastre) climático, talvez temporais no
final do ano trazidos por um
El Niño que está se formando no Pacífico.
O Brasil glorifica a ignorância desinibida (basta olhar nossos
dirigentes mais populares) e tem o jeitinho como sua maior
característica cultural. Outros povos já perceberam que encostas que
caem, rios que secam, hidrelétricas que não geram, crianças sem cérebro e
universidades interditadas por causa de contaminação no solo são sinais
de que meio ambiente é coisa séria, não perfumaria.
Infelizmente, aqui não é assim e não damos valor aos recursos dos
quais nossa sociedade depende. O resultado é que somos mais vulneráveis
do que acreditamos. Vemos isso a cada morro que despenca e a cada
torneira que seca.
Uma saída
Muita gente já sugeriu o que deveria ser feito a respeito da atual
crise de abastecimento de água. É consenso, pelo menos entre os
técnicos, que as perdas no sistema de distribuição devem ser reduzidas, a
vegetação nativa das bacias de captação dos reservatórios deve ser
recuperada, e todo esgoto deve ser coletado e tratado possibilitando o
reuso da água.
Tenho uma modesta contribuição.
"É
duro ver empresas de limpeza urbana lavando calçadas e particulares
fazendo o mesmo com seus carros durante uma estiagem, bancando o Nero
enquanto Roma pega fogo."
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Concessionárias como a SABESP deveriam pagar uma taxa por metro
cúbico (m³) de água captada dos reservatórios. A taxa seria duplicada
para cada m3 perdido ao longo do sistema de distribuição, esse valor
punitivo não podendo ser transferido ao consumidor final. Assim a água
perdida por ineficiência do sistema passaria a ter um valor que
incentivaria a redução de perdas.
A arrecadação dessa taxa deve suprir tão somente três finalidades: 1)
compra de terras em áreas de mananciais visando sua transformação em
unidades de conservação; 2) recuperação da vegetação em áreas de
proteção de mananciais, margens de rios e nascentes; e 3) pagamentos a
proprietários de terras que sejam produtores de água e suprem mananciais
de abastecimento (nos passos do
Projeto Oasis, da Fundação Grupo Boticário).
Isso implica em maior custo para o consumidor? Talvez, mas o fato é
que ninguém valoriza o que é de graça ou barato demais. Água mais cara
seria um estímulo ao consumo consciente. É duro ver empresas de limpeza
urbana lavando calçadas e particulares fazendo o mesmo com seus carros
durante uma estiagem, bancando o Nero enquanto Roma pega fogo.
O El Niño talvez traga alívio para esta estiagem, mas outras
certamente virão. Será que daqui a poucos anos estaremos falando, de
novo, em volumes mortos e agências reguladoras desreguladas?
Divulgado com antecedência também para a imprensa, o “cardápio” – nome dado pela assessoria própria da FPA às pautas que estarão em debate – na terça-feira (16) incluiu a tributação de produtos agrícolas, a indenização de propriedades quando desapropriadas e a indicação de membros para as comissões permanentes da Câmara dos Deputados, cuja composição é renovada a cada ano.
Além do colegiado de Agricultura, os ruralistas estão de olho especialmente em outros dois: o de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) e o de Meio Ambiente.
“Nós vamos tentar colocar o máximo de pessoas que tenham condições de debater a questão ambiental no Brasil, não de forma ideológica nem radical, mas de forma equilibrada. Vamos tentar, sim, ter uma grande maioria”, disse à Pública, após o almoço, o deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT).
Vice-presidente da FPA, ele é o relator da CPI da Funai e do Incra, que pretende devassar os órgãos federais, e presidiu a comissão especial que em 2015 aprovou a PEC 215 – que inclui o Congresso Nacional no processo de demarcação de terras indígenas. “Nós vencemos na parte da comissão; agora é tentar colocar logo em plenário, ver o que a Câmara vai decidir e fazer com que o Senado também possa acelerar o processo”, diz, sobre a PEC 215, cuja aprovação em definitivo é um dos principais objetivos da frente para 2016 – por mais que ela seja taxada por muitos juristas como inconstitucional.
Além da FPA, diversas outras bancadas atuam diariamente no Congresso Nacional, reunindo deputados com ideologias, motivações ou objetivos semelhantes, ou ainda com financiadores do mesmo setor. A dinâmica de funcionamento desses conjuntos temáticos é heterogênea. Nem todos possuem estrutura ou estratégia semelhante aos ruralistas – que contam com coordenadores, agitadores e negociadores entre os seus inscritos –, e em muitos casos a formação da bancada só fica clara com o desenrolar de pautas específicas ou com a ajuda dos dados de doação de campanha.
Para mostrar quais parlamentares defendem quais interesses, a Pública levantou a composição de onze das bancadas mais atuantes. Além dos ruralistas, que contam com 207 deputados, mapeamos outras gigantes da Câmara: a evangélica (196), a empresarial (208), a das empreiteiras e construtoras (226) e a dos parentes (238), o maior agrupamento da Casa – confirmando a tendência de aumento do número de deputados com familiares políticos, como a Pública mostrou recentemente.
Adicionamos ainda as bancadas da mineração e da bola, respectivamente com 24 e 14 deputados federais. Também pequenas mas igualmente fortes, pelo teor dos conteúdos que defendem, mapeamos a composição das bancadas da bala (35), dos direitos humanos (24) e da saúde (21).
Nesses casos, os critérios para defini-las foram a atuação diária de cada parlamentar em temas relacionados aos segmentos específicos. Para a das construtoras, partimos exclusivamente do financiamento de campanha, que também ajudou a elaborar o levantamento da bancada da mineração.
A empresarial e a sindical consistiram em uma atualização do material publicado pouco após cada eleição pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), que faz uma radiografia das bancadas no Congresso Nacional. A simples troca de alguns titulares por suplentes – 33 exerciam mandato em janeiro de 2016 –, curiosamente, implicou redução nos dois grupos. A primeira perdeu treze integrantes e a segunda encolheu oito cadeiras. Proporcionalmente, a perda foi mais sentida pela sindical, que conta agora com apenas 43 deputados, contra 208 dos empresários.
Ruralistas de carteirinha
Para mapearmos os defensores do agronegócio, incluímos todos os parlamentares que subscreveram a criação da FPA. Embora regimentalmente haja um número mínimo de assinaturas para a criação de uma frente – tornando comum um companheirismo na linha do “assina a minha, que eu assino a sua” –, esta regra geral de cordialidade não se aplica à bancada ruralista, na análise de Antônio Augusto Queiroz, diretor do Diap.“Isso vale muito para a frente de direitos humanos, por exemplo, a questão de assinar e não efetivar o apoio. É simpático pra opinião pública, mas quando é pra valer o cara desaparece ou não vai pra linha de frente. Mas ninguém assina a bancada da agricultura se não tiver vínculo direto com o setor”, explica.
Um dos mais aguerridos defensores do agronegócio na Câmara, Leitão diz que o tamanho da bancada não atrapalha o fluxo dos trabalhos. Temas espinhosos como o impeachment da presidente Dilma Rousseff, que ele defende, costumam ter debates menos consensuais entre os integrantes da FPA, mas, em outras pautas, o convencimento dos 207 deputados – ou 40% da Câmara – que compõem a bancada é mais simples. “Nos assuntos do setor produtivo no Brasil, naquilo que a frente deve defender, como a PEC 215, nós sempre temos a maioria para poder ter a vitória necessária”, afirma.
O Brasil tem esse preconceito ainda, que é cultural. Eu moro num estado [Mato Grosso] que é eminentemente agrícola, que é o maior produtor de tudo. Eu moro numa região [Centro-Oeste] que é a maior região de produção. Se eu não defender o enriquecimento e a população da minha região, eu não tenho razão de estar na Câmara federal.”
Bala e Bíblia
A bancada da bala, assim chamada pela imprensa para se referir aos parlamentares financiados por indústrias de armas e munições, teve ao longo do ano passado “acréscimos” de deputados que fizeram jus a serem incluídos pela veemência e repetição com que defendem a redução da maioridade penal, o aumento de penas e, principalmente, a revisão do Estatuto do Desarmamento – algumas vitórias parciais foram conseguidas em 2015.Conhecido por ostentar um impecável uniforme militar pelos corredores e plenários da Câmara, o PM e deputado federal Capitão Augusto fala com bom humor do epíteto recebido pelo grupo.
“Acabou que esse termo, que tinha um sentido pejorativo, se popularizou e com viés até contrário, demonstrando que a bancada da bala está, sim, compromissada com a questão da segurança, com o endurecimento da legislação penal, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e por aí vai. Hoje, já não nos incomoda mais esse termo ‘bancada da bala’, mas nós somos, na verdade, da bancada da vida. O que a gente defende é a vida, principalmente do cidadão de bem”, disse.
A relação entre a turma que em parte defende a linha do “bandido bom é bandido morto” e a Frente Parlamentar Evangélica é um bom exemplo da força da articulação de grupos conservadores. “As frentes de segurança pública e a evangélica correm juntas aqui. Nós temos os mesmos valores. A gente se ajuda realmente, não integramos [a frente evangélica, da qual Augusto também faz parte] apenas com o nome, para constar, mas para efetivamente ajudar em todos os projetos que eles estão apoiando”, reconhece o PM.
Ele rechaça a ideia de os pontos que unem os dois grupos sejam de um conservadorismo extremista.
“Preservamos a questão da família, da moral, da ética, da honestidade. Não tem como ser radical nesses valores – ou você tem, ou você não tem. Ou você é honesto, é um cidadão de bem, ou você não é.”
Pequenos, mas aguerridos
Diametralmente oposta às bancadas da Bíblia e da bala, está a turma dos direitos humanos. Apesar do reduzido número de deputados que militam diariamente no combate da opressão às mulheres, à população LGBT, aos índios e populações tradicionais, do racismo e da violência estatal, a mobilização de setores da sociedade e da militância de causas específicas rendeu a esses deputados algumas vitórias parciais importantes ao longo dos últimos anos, mesmo com somente 23 parlamentares no seu núcleo duro.A própria PEC 215, por exemplo, obsessão ruralista desde que foi proposta, no ano 2000, somente no ano passado conseguiu avançar até estar pronta para a votação em plenário. “Você pode ter uma bancada de dez aguerridos que vale por 300 que não se mobilizam. A influência de cada grupo também está associada ao número de integrantes, naturalmente, mas principalmente ao número dos que efetivamente têm compromisso com o tema”, analisa Antônio Queiroz, diretor do Diap.
Exercendo o primeiro mandato na Câmara, o paraense Edmilson Rodrigues (Psol) travou diversos embates com a bancada ruralista na comissão especial que analisou a PEC 215. Mesmo conhecendo de perto o radicalismo de boa parte de seus integrantes, entretanto, mantém a esperança no poder do convencimento. “Por mais que haja uma ação às vezes muito truculenta por alguns representantes, particularmente do agronegócio, do latifúndio, mesmo entre eles há pessoas com capacidade de diálogo. Eu sou um otimista.”
Ele conta que em determinada votação sobre direitos das crianças se surpreendeu com a atitude de um deputado que é pastor. “Ele estava ao meu lado. Pegou a Bíblia e me citou um versículo para fundamentar uma posição favorável à minha e contrária à quase totalidade da bancada evangélica, mesmo que em outras situações ele seja obediente à linha geral da bancada.”
Identificação
Embora sejam uma forte maneira de influenciar os deputados, as determinações partidárias ou do bloco do governo nem sempre são seguidas, e é frequente haver a liberação da bancada – quando a liderança permite que os parlamentares votem conforme bem entenderem, mesmo contra as orientações recebidas. “É uma distorção do sistema que tem levado a vários problemas.Os partidos não têm o comando, não tem nenhum partido unificado, fechado, talvez o Psol, mas porque é muito pequeno. Os blocos de interesses aqui são mais fortes que os partidos, por isso nem sempre a orientação partidária se reflete na votação”, opina o deputado José Stédile (PSB-RS).
Dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Porto Alegre (RS) de 1989 a 1998, ele se surpreende ao saber que é nome frequente nos mapeamentos da chamada bancada sindical. “Ela não chega a 30 deputados, os que realmente lutam em defesa da classe trabalhadora aqui dentro. Isso é reflexo do modelo eleitoral, em que você só tem chance de ganhar se tiver recursos, se é um grande líder, de uma categoria grande, ou acontecem outros casos, por exemplo, como o meu.
Os meus votos não são somente da minha categoria, mas por ter sido prefeito [duas vezes do município gaúcho de Cachoeirinha] e a minha cidade ajudou a me eleger.” Stédile diz defender os trabalhadores, aposentados, agricultores e operários, mas não se identifica com nenhuma bancada. “Elas não reconhecem perdas, e a gente sabe que um país como o nosso não tem como atender tudo, então às vezes tem que abrir mão de algumas coisas pra ganhar outras.”
Financiamento e ideologia
“Algumas siglas são fortemente dependentes de recursos empresariais, enquanto outras se proíbem de recebê-los, como é o caso do Psol. Teoricamente, quanto mais dependentes desse tipo de doação, maior seria a probabilidade de o parlamentar cooperar com as demandas dos grupos financiadores”, analisa Dalson Britto, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).Especialista em comportamento legislativo, ele conduziu um estudo em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre a influência das doações eleitorais na elaboração da agenda legislativa. O trabalho, publicado em 2015, analisou as votações na Câmara de 1999 a 2007 em relação aos projetos de interesse da Confederação Nacional da Indústria (CNI) para confirmar que, quanto maior a proporção de recursos corporativos recebidos por um parlamentar, maior a cooperação com determinado setor.
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Alguns cruzamentos de dados indicaram que cada ponto percentual adicional do financiamento corporativo no total arrecadado pelo candidato resultou em 30,7% a mais de chance de o parlamentar votar a favor da indústria. Em outro modelo estatístico, o resultado foi de 19,8% a mais de chance de ajuda ao segmento para cada ponto percentual. O professor, entretanto, analisa os números com cautela. “Um determinado deputado votou de acordo com os interesses do grupo X porque recebeu doações de campanha, ou o grupo X financiou aquele deputado porque já dispunha de informações sobre o seu posicionamento ideológico?”, questiona.
“Metodologicamente, um dos principais desafios enfrentados pelos estudiosos da relação entre grupos de interesse e comportamento congressual é mensurar influência. Essa dificuldade é ainda maior na ausência de dados confiáveis sobre o assunto”, observa Britto. Ele ressalta que o financiamento de campanha não compra os votos dos deputados, mas garante um acesso facilitado a eles, tanto para defender projetos quanto para pedir a sua rejeição.
“A interação entre agentes privados e parlamentares resulta não só na formulação de uma agenda de pautas favoráveis a determinado setor, mas também na exclusão de matérias que possam ser danosas aos seus interesses.”
A ideologia, a trajetória e a base eleitoral de cada deputado também pesam na balança na hora das votações, enquanto as alianças entre diversas legendas para garantir bases de apoio aos governos contribuem para a infidelidade às orientações das lideranças partidárias.
“Em uma mesma coalizão tem-se apoiadores contumazes de pesquisas científicas com células-tronco e opositores fervorosos da união homoafetiva, por exemplo. Em termos de clivagens ideológicas, é de se esperar algum nível de consistência entre as legendas partidárias e o comportamento parlamentar, mantidos outros fatores constantes. Imagine a situação de um deputado que tem que escolher entre votar de acordo com a indicação do seu líder, agradar à sua base e ao mesmo tempo contemplar os interesses dos grupos que financiaram sua campanha.
É de se esperar alguma consistência ideológica nas votações; no entanto, se for para escolher entre a fidelidade às diretrizes ideológicas do partido e a lealdade aos financiadores, eu acredito que os parlamentares escolham a fonte de recursos. Afinal, campanhas eleitorais custam caro e alguém tem que arcar com esse custo. Lembrando: ‘não existe almoço grátis’”, observa o professor da UFPE.
Água e circo
O fim do financiamento empresarial, determinado por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015 e já válido para as eleições municipais de 2016, leva às mais diversas análises do que pode acontecer daqui para a frente durante as eleições e nas futuras composições dos blocos temáticos na Câmara.Para Nilson Leitão, vice-presidente da bancada ruralista, amplamente financiada por empresas agropecuárias, o fim dos repasses pode resultar em uma pequena queda da representação do setor no Congresso, mas a base eleitoral não se perderá com campanhas mais baratas.
“Alguns defendem porque acreditam – como eu disse, eu moro num estado que eu preciso defender a produção. Isso gera votos pra mim, além de dar o resultado pra minha sociedade.”
E se essa suposta identificação com o eleitorado não se confirmar? “Talvez seja um bom treinamento, agora em 2016 [nas eleições municipais], para saber se a ausência do financiamento empresarial – que existe nos países desenvolvidos – realmente vai fazer essa falta toda. Se fizer, automaticamente vai ter mudança na lei”, adianta-se. “Se não fizer, quem sabe todos vão aprender a fazer campanha eleitoral bem mais barata, de forma que possa ser nivelada por baixo, e não pelo absurdo que muitos gastam em campanha eleitoral”, afirma o deputado, que investiu R$ 2,4 milhões para se reeleger em 2014 – os altos gastos bancados por empresas e empresários são uma tônica entre os mais influentes nomes ruralistas.
Britto, da UFPE, cita a teoria hidráulica da regulação para comparar os recursos financeiros à água – que sempre encontrará um caminho. “A proibição do financiamento empresarial fortalece sobremaneira o papel do lobby, que ainda não foi regulamentado no Brasil. Como resultado, devemos observar vários escândalos envolvendo representantes governamentais interinstitucionais e representantes políticos nas próximas eleições.”
Para Antônio Queiroz, embora seja possível um aumento de parlamentares de partidos pequenos como o Psol– e consequentemente da bancada dos direitos humanos, por exemplo, na qual atuam hoje todos os cinco deputados federais da sigla –, esse suposto crescimento não será significativo. “O quociente eleitoral é muito elevado. Nos estados em que não existe uma liderança consolidada ou alianças com outros partidos, ainda que alcancem excelentes votações, os candidatos não atingirão o quociente e os votos serão perdidos”, acredita.
Calculado a partir da divisão entre o número de votos válidos e as vagas a preencher, o quociente eleitoral significa o número mínimo de votos que um partido ou coligação precisa ter para eleger um candidato. Nas eleições de 2014 em São Paulo, por exemplo, foram necessários cerca de 300 mil votos para conquistar uma vaga na Câmara.
O diretor do Diap teme que o resultado para a democracia brasileira do fim do financiamento empresarial seja desastroso. “Você vai ter como candidatos prioritários os endinheirados, que podem bancar 100% da campanha com recursos próprios, as celebridades e os fundamentalistas, que defendem causas que têm seguidores cegos. Os partidos de esquerda poderiam tirar proveito do fim do financiamento, já que têm um ativo muito importante, a militância, mas a maioria deles está vinculada ao governo, que tem uma pauta rejeitada por muitos desses segmentos”, diz.
Embora as celebridades nem sempre exerçam protagonismo durante o mandato, são disputadas pelos partidos, já hoje, por ajudarem a eleger outros parlamentares. Foi graças aos mais de 1 milhão de votos recebidos pelo deputado Tiririca (PR-SP), por exemplo, que o Capitão Augusto – aquele da farda militar e que defende a vida, “principalmente do cidadão de bem” – conseguiu se alçar ao Congresso, apesar de ter alcançado apenas cerca de 47 mil votos.
Atualização (19/02, às 15h30): O nome do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) foi erroneamente incluído na bancada evangélica e excluído da bancada de direitos humanos. Alteramos o número dos integrantes das duas bancadas no texto e corrigimos os infográficos.