Se há algo que as esquerdas possuem em comum, pouco importa em que lugar
do mundo atuem, é a estupidez. Graças à esquerda local, encarnada pelo
primeiro-ministro Alexis Tsipras, a Grécia está hoje mais próxima da
Venezuela chavista que da civilizada Europa. Pelo andar da carruagem, o
oráculo de Delfos poderá, de fato, ser substituído pelo Passarinho de
Maduro. Leiam o divertido e instrutivo artigo de Paulo Tunhas, publicado
hoje no Observador:
Uma das passagens mais justamente célebres da História da Guerra do Peloponeso de
Tucídides é aquela em que Nícias e Alcibíades opõem argumentos, face a
uma assembleia de Atenienses, quanto à oportunidade de uma expedição
destinada a conquistar a Sicília. Nícias opunha-se-lhe e Alcibíades era
favorável a que ela tivesse lugar. Como sempre, Tucídides é admirável e o
texto lê-se quase como um tratado sobre a persuasão política. No fim,
por muito sólidos que fossem os argumentos de Nícias, é Alcibíades que
convence a assembleia. A expedição tem lugar. E é o princípio do fim de
Atenas.
Alexis Tsipras é a última flor que resolveram adorar os descendentes
imaginários daqueles que se sentaram, em Setembro de 1789, à esquerda do
sr. Clermont-Tonerre, na sala dos Pequenos Prazeres do palácio de
Versalhes. A esquerda pegou-se de amores por Tsipras, embora os êxtases
outrora reservados a Alcibíades sejam, segundo se lê, agora dedicados
não a Tsipras mas ao seu ministro das Finanças, Varoufakis. Como tudo o
que ouvi da boca de Tsipras foram coisas contraditórias entre si,
aproveitei a oportunidade de um livro em que ele colabora para buscar
detalhes.
O livro, traduzido em português na Relógio D’Água, e intitulado O que quer a Europa?,
é, de facto, constituído por textos de um autor croata, Srecko Horvat,
de quem, confesso, nunca tinha ouvido falar, e do intelectual esloveno
Slavoj Zizek, de quem ouço falar imenso, e até já li. A sua edição
original data de 2013. As contribuições de Tsipras limitam-se ao
prefácio, a uma entrevista e a um diálogo com Zizek.
Ninguém, é claro, é responsável pelas opiniões dos outros, mas
prefaciar um livro exige, em princípio, alguma afinidade com o autor
prefaciado – uma afinidade que, de resto, é patente no diálogo. Estou
longe de ser uma autoridade em Zizek, e Deus proteger-me-á, estou certo,
de algum dia o vier a ser. Mas a afinidade com um autor que reivindica
abertamente a reabilitação da violência e que, em perfeita coerência,
escreveu uma fervorosa introdução a uma selecção de textos de
Robespierre, não anuncia nada de bom.
Eu sei que Zizek, que gosta de adoptar uma postura de
intelectual-clown (William Saroyan diria: festivo-fascista), pretende
tanto divertir quanto convencer. E não se pode acusá-lo de não tentar
divertir. No diálogo com Tsipras, diz, por exemplo: “Segundo a minha
maneira de ver o futuro democrático, todos os que não apoiassem o Syriza
deveriam ser enviados em primeira classe, mas com um bilhete só de ida,
para o Gulag!”. É um brincalhão, embora a graça possa parecer pesada. O
que parece não incomodar muitos leitores.
A busca da sofisticação
intelectual não anda forçosamente de mão dada com a sensibilidade. Como
vários autores, acerta mais quando está desprevenido. Pessoalmente,
gostei muito da passagem, num capítulo do livro, em que sugere, para o
Verão de 2014, um “turismo solidário” na Grécia. Não se percebe se é
como com o Gulag, com bilhete só de ida.
Mas esqueçamos o inesquecível Zizek, e procuremos o pensamento de
Tsipras para além das declarações, com bravata e sem gravata, a que os
jornais nos habituaram. Tsipras não é um intelectual-bufão como Zizek.
Em geral, limita-se a propor, como se diz, uma narrativa segundo a qual
“os mercados”, com propósito explícito e consciente, afinco e
determinação, visam a destruição da democracia. A coisa releva, ele
di-lo naturalmente, do “espírito perverso do neoliberalismo global”. A
Grécia é apenas a “primeira etapa” do vasto projecto concebido pelos
“espíritos neoliberais mais iníquos”.
Contra isto, a Grécia deverá denunciar o Memorando. E, bem entendido,
definir bem o inimigo. Com absoluta originalidade, o verdadeiro
conflito é determinado: “O conflito na Europa não é entre países. É
entre o capital e os mercados, por um lado, e os trabalhadores, por
outro.” Ele lá o sabe. Mas os jornais não dizem exactamente isso.
“Aquilo que precisamos é de uma Primavera Mediterrânica – como a
Primavera Árabe”. Bom…
Exemplos a seguir? Para além, é claro, da Síria, onde a Primavera
anda particularmente vibrante. Tsipras refere de passagem Mário Soares, o
que infelizmente deve dar prazer a este, e, é claro, Hugo Chávez. Vindo
do funeral de Chávez: “A Venezuela de Chávez é o brilhante exemplo de
um país que combina o crescimento económico com uma redução das
desigualdades sociais”. Tal sociedade “continua a ser um modelo para
nós, como para a esquerda de todo o mundo”.
Teremos uma Venezuela dos Balcãs? O Oráculo de Delfos será
substituído pelo Passarinho de Maduro? Ou uma Argentina, cujo exemplo
Tsipras também aprecia? Ninguém sabe. Uma coisa, no entanto, se sabe.
Tsipras não fará o mesmo que Alcibíades, que, depois de ter conduzido
Atenas ao desastre, se passou para o lado de Esparta. Em 2013, prometeu
que, no caso de aceder ao poder, o poder não o modificaria nem o
“assimilaria”. Nada de “concessões e compromissos contra os nossos
princípios”.
É claro que os gregos têm muitas razões de queixa contra o mundo. A
União Europeia seguiu um caminho, com o euro, em que a soberania
possível se foi estiolando. E, por razões que a construção europeia
perfeitamente obliterou, as comunidades políticas vivem mal sem a
soberania. O progresso da extrema-esquerda e da extrema-direita tem
muito a ver com isso. Bem como o aumento das tentações nacionalistas e
outras coisas muito feias.
Mas têm, desculpe-se, muito mais razões de queixa contra si mesmos. E
isto não é moralismo nenhum, nem absurda Schadenfreude. Viveram
alegremente em regime de elevada corrupção durante décadas, e acabaram
com uma cereja em cima do bolo: elegeram um partido populista de
extrema-esquerda, que se associou, para formar governo, com um muito
pouco recomendável partido de direita.
O Syriza jura com toda a força
que vai dar uma surra na corrupção e pôr tudo na ordem. Não parece assim
lá muito verosímil. O que se arrisca a fazer é conduzir a população a
uma desgraça ainda maior. Neste caso, a Sicília está dentro de Atenas.