Há alguns anos, o chefe indígena Atamai, que morava na aldeia waurá, no
Xingu, deslocava-se, como passageiro de um carro, por uma via pública de
Goiânia (episódio que talvez já tenha sido narrado neste mesmo espaço,
mas que vale a pena rememorar).
Em certo momento, voltou-se para o autor destas
linhas e perguntou: “Por que caraíba (homem branco) cobre de asfalto
todo o piso de ruas e não deixa lugar pra terra respirar?”. Foi-lhe dito
que o asfalto servia para nivelar a terra, remover buracos e permitir
mais velocidade aos veículos.
Mais adiante, ao passar por uma lombada na
pista, Atamai quis saber para que ela servia. E, ante a resposta de que
servia para obrigar motoristas a reduzirem a velocidade, de modo a não
ameaçar pedestres e evitar colisões, foi fulminante: “E por que caraíba,
primeiro, cobre a terra pra aumentar a velocidade dos carros e, depois,
constrói calombos no chão e obriga a reduzir a velocidade dos carros?”.
Felizmente, chegávamos ao destino e ele ficou sem resposta.
Respostas
como essa, capazes de esclarecer complexidades do nosso mundo,
continuam sendo buscadas em todos os lugares, por estudiosos de todos os
setores do conhecimento, além de fazerem parte dos questionamentos de
todas as pessoas. Ainda há pouco tempo, o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) lançou o livro Megatendências Mundiais 2030,
em que reúne o pensamento de entidades e personalidades internacionais
sobre “o futuro do mundo” daqui a uma década e meia.
E ali está dito o
que neste tempo deve moldar o panorama mundial nas áreas de população,
geopolítica, ciência e tecnologia, economia e meio ambiente.
“Muitos dos
problemas que enfrentamos hoje é porque no passado não olhamos para o
futuro no longo prazo. Ou não nos preparamos para evitar que ocorressem
ou para que estivéssemos mais bem preparados para essa ocorrência”,
escreveu a professora Elaine Coutinho Marcial, que organizou a edição
(Eco-Finanças, 16/10/2015).
O pensamento e a ação concreta dos
colonizadores, a pequena escala dos problemas, certamente, os levaram a
desconsiderar o modo de se organizar e de viver das culturas indígenas
em todo o território brasileiro. E chegamos aonde chegamos.
O fato é
que, como lembra o Ipea no livro sobre as megatendências mundiais, “o
modelo econômico vigente, associado ao comportamento dos cidadãos e dos
países, é agressivo ao meio ambiente, provoca a poluição do ar,
desmatamento, perdas ecossistêmicas nos meios marinho e da costa, enfim,
degradação, de forma geral”.
Pensam os autores do livro que, “se não
houver ruptura nos padrões de consumo e diminuição na geração de
resíduos, esse modelo continuará conduzindo à escassez de recursos
naturais nos próximos anos”.
É um bom momento, então, para que
nos debrucemos sobre os formatos de vida entre povos indígenas – há
muita documentação sobre o passado e ainda se encontram no Brasil cerca
de 1 milhão de índios, de 305 etnias, falando 274 línguas em mais de 500
terras reconhecidas. No mundo são mais de 5 mil povos.
E, de
fato, no Brasil as perdas são gigantescas. Produzimos mais de 250 mil
toneladas diárias de lixo, que são inteiramente desperdiçadas. O lixo
orgânico (metade do total) poderia ser reaproveitado de muitas formas, a
começar pela compostagem que o transforma em adubo. Os resíduos da
construção civil, dos quais quase nada se fala, têm um volume superior
ao dos domiciliares.
A reciclagem é ínfima. Valeria a pena, nesta hora,
visitar uma aldeia indígena que, isolada, ainda mantenha os modos de
vida dos antepassados – para ver se ali se produz lixo. Ou o que
acontece quando uma aldeia cresce muito e decide se separar em duas,
também para não ameaçar os modos de vida – e assim aconteceu, por
exemplo, no Xingu, com os waurá.
Também se poderá ver a questão do
poder: o chefe não dá ordens; ele é o que mais sabe da cultura de seu
povo e é procurado sempre para saber o que pensa – mas não dá ordens a
ninguém.
Cada morador da aldeia planta e colhe alimentos e pesca para os
que com ele vivem. Mas, se alguém lhe der ordens, vai achar graça. O
conhecimento é aberto: o que um sabe todos podem saber. São questões
descritas e estudadas com muita competência por Pierre Clastres em seu
livro A sociedade contra o Estado.
Mesmo que se saiba de tudo
isso, continuamos a colocar como centro de tudo o cálculo do chamado
Produto Interno Bruto (PIB) – a soma, em valores monetários, dos bens e
serviços finais produzidos em certo período (ano, em geral) – e
compará-lo com outro ano, ou com outro país. E isso determinaria se um
país é rico, médio ou pobre. Não leva em conta nada do meio ambiente,
nada da cultura. E isso tem implicações fortes na política e na relação
entre países ou regiões.
Um país como o Brasil tem muitos
privilégios – território continental (só na Amazônia, milhões de
quilômetros quadrados), sol durante todo o ano, quase 12% dos recursos
hídricos do planeta, biodiversidade extraordinária, clima ameno, mais de
7.300 quilômetros de costa marítima, possibilidade de matriz energética
“limpa”, sem emissão de gases que acentuam mudanças climáticas, etc.
Mas nada disso é considerado para o PIB. O desmatamento amazônico voltou
a crescer no ano passado (474 quilômetros quadrados). Desperdiçamos uma
fatia considerável dos alimentos que produzimos, embora tenhamos em
torno de 40 milhões de brasileiros que vivem na pobreza extrema – a
renda é fortemente concentrada.
A população junta-se cada vez mais em
grandes cidades, onde os problemas crescem exponencialmente.
Multiplicam-se os conflitos com populações indígenas, quase sempre em
disputa de suas terras.
É claro que não faz sentido propor que
voltemos todos a viver como índios. Mas pelo menos veremos com clareza
os nós que nos engasgam.
Fonte: Envolverde