Tratores apreendidos em operação realizada na APA Triunfo do Xingu, que ocupa o 1o lugar
no ranking de UCs desmatadas. Foto: Divulgação/Ascom Semas
A recente arrancada do desmatamento na Amazônia não está poupando as
áreas protegidas. De 2008 a 2015, a perda em UCs da região dobrou em
termos percentuais, passando de 6% para 12% da área total derrubada. E,
nos últimos 4 anos, a área de floresta devastada em unidades de
conservação (UCs) da Amazônia Legal subiu 80%, contra 35% do
desmatamento em geral. Os dados estão no estudo
“Unidades de Conservação mais Desmatadas da Amazônia Legal (2012 – 2015)”, da ONG
Imazon,
que acaba de ser divulgado. Neste período, estima-se que o
desmatamento causou a morte
ou o deslocamento de cerca de 4,2 milhões de
aves e 137 mil macacos.
O Imazon listou as 50 UCs da região mais impactadas pelas
motosserras. Sozinhas, estas áreas protegidas perderam 230 mil hectares
de floresta, ou 97% do total de 237 mil hectares desmatados em UCs da
Amazônia entre 2012 e 2015. Elas se concentram ao longo do chamado
"Arco do Desmatamento",
em especial nos estados de Pará e Rondônia. Dessas 50 Unidades de
Conservação, 47 são de uso sustentável, aquelas que admitem atividades
humanas no seu interior.
“Queríamos identificar as áreas que estavam sofrendo mais
desmatamento e que deveriam receber mais atenção”, diz Elis Araújo,
pesquisadora do Imazon e uma das autoras do estudo. “As UCs mais
críticas estão em áreas mais cobiçadas, onde há expansão da fronteira
agrícola ou próximas a projetos de infraestrutura, como pavimentação de
rodovias, construção de portos, hidrovias e hidrelétricas”.
Viés político
A
Floresta Nacional Bom Futuro
é um caso emblemático do desmatamento em UCs. Em 2009, chegou a ter
mais de 35 mil cabeças de gado dentro de seus limites. Por isso, naquele
ano, uma megaoperação envolvendo Ibama, ICMBio, Polícia Federal, Força
Nacional e outras instituições levou 400 agentes para a Flona, a fim de
acabar com o desmatamento, retirar os rebanhos e retomar a gestão da
área pelo poder público. "Era a maior operação que já tinha sido feita
na área ambiental", diz Paulo Volnei Garcia, chefe da Bom Futuro na
ocasião. "Levamos em torno de um ano para fazer o planejamento das
ações".
Com os planos afiados, os agentes se instalaram nas quatro bases
construídas dentro da Flona para apoiar a operação. Dali em diante, o
cerco se fechou. Não entrava mais uma cabeça de gado, assim como não
entravam combustível, motosserras nem pessoas sem autorização. As áreas
desmatadas começaram a ser embargadas. "O pessoal foi ficando mais
resistente, os políticos locais se mobilizaram", conta Garcia. E aí os
ânimos se exaltaram. "Teve um momento em que um carro do ICMBio foi
incendiado".
Era época de licenciamento das hidrelétricas de Jirau e Santo
Antônio, e o governo de Rondônia precisaria reduzir UCs estaduais
atingidas pelas usinas. Para isso, reivindicou que, em troca, o
Ministério do Meio Ambiente suspendesse a operação na Flona Bom Futuro.
"O governador foi para Brasília com a proposta debaixo do braço e teve
uma reunião com o presidente da República [Lula da Silva]", diz Garcia.
"A assinatura saiu rápida. E foi um choque para quem estava em campo na
operação. Ninguém esperava".
O Ministério do Meia Ambiente redefiniu os limites da Flona: a área
mais ocupada e desmatada do território (144 mil hectares) foi
transformada na
Área de Proteção Ambiental (APA) Rio Pardo e
Floresta Estadual (Flota) Rio Pardo.
Segundo o Imazon, ambas seguem sem conselho gestor nem plano de manejo.
A APA Rio Pardo é a quinta unidade mais desmatada na Amazônia entre
2012 e 2015.
De acordo com Garcia, a Flona sofre até hoje com invasões. "Abriu-se
um precedente", lamenta o analista do ICMBio. "A gente sabe que o
pessoal entra com expectativa de ganhar a terra, como ganharam os
ocupantes ilegais daquela época".
Polícia Militar flagra desmatamento e invasão na Reserva Extrativista Jaci Paraná, 4o lugar no ranking.
Foto: Batalhão de Polícia Militar Ambiental/Rondônia.
Criadas, mas não cuidadas
O estudo do Imazon cruzou os dados de desmatamento em UCs com uma
auditoria divulgada em 2013 pelo Tribunal de Contas da União (TCU),
em que o órgão classificou as UCs segundo seus níveis de implementação.
O resultado é sintomático: dentre as 50 UCs mais desmatadas, quase
todas apresentam baixo (42%) ou médio (44%) grau de implementação.
Trocando em miúdos, isso significa que essas áreas não possuem os
instrumentos necessários e os recursos suficientes para sua gestão. E
tampouco são utilizadas para as finalidades previstas.
Este fato fica ainda mais evidente quando se trata das unidades de
uso sustentável. Para Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Pró-UC,
isso não é surpreendente: "Em geral elas [UCs de uso sustentável]
recebem pouco investimento e estão entre as categorias menos
restritivas, com uso mais intenso. As Áreas de Proteção Ambiental
(APAs), por exemplo, têm povoados, cidades dentro delas".
As APAs ocupam cinco posições dentre as 10 UCs mais desmatadas.
"Esta
categoria foi criada para tentar realizar o grande sonho de se permitir
ocupações humanas e garantir a conservação ambiental ao mesmo tempo",
diz Elis Araújo. A prioridade na criação de uma APA é identificar as
áreas relevantes para conservação, embora não seja isso o que ocorre,
pois a maioria não resolveu seus problemas de regularização fundiária,
não tem plano de manejo ou conselho gestor.
50 UCs correspondem a mais de 96% do desmatamento em todas as Unidades de Conservação na Amazônia Legal. Fonte: Imazon
Zona de guerra na BR-163
No Pará, a situação não é muito melhor. Principalmente nas UCs que
acompanham o traçado da BR-163, rodovia que liga Cuiabá (MT) a Santarém
(PA). “Várias unidades de conservação foram criadas ali justamente para
conter a ocupação e barrar o desmatamento ao longo da via”, diz Araújo.
Paulo Carneiro, diretor de Criação e Manejo de Unidades de Conservação do
ICMBio,
órgão que administra as UCs federais, corrobora que a região é, hoje,
uma das mais problemáticas para as áreas protegidas: “São muitos fatores
e atores que contribuem para o desmatamento: grilagem de terra, áreas
de garimpo, pequenos produtores e projetos de infraestrutura sendo
instalados na região. A pavimentação da BR-163 é o principal deles”.
Carneiro engrossa as críticas levantadas pela pesquisadora do Imazon, fazendo referência ao
Projeto BR-163 Sustentável,
lançado em 2006, que envolvia mais de 10 ministérios. “Uma de suas
ações era a criação das unidades, mas havia outras como o ordenamento
territorial, a titulação de terras, o incentivo à produção sustentável. E
algumas políticas avançaram de maneira mais lenta, facilitando a
pressão sobre as UCs”, diz.
A falta de sinergia entre as políticas públicas tem emperrado ações
dos órgãos ambientais que poderiam reduzir o desmatamento nas UCs. A
concessão para exploração florestal manejada é uma delas. A
Flona Altamira,
por exemplo, teve uma significativa queda do desmatamento nos últimos
anos, e um dos motivos apontados pelo Imazon é ter 50% do seu território
sob concessão florestal. “Todo tipo de uso compatível com a unidade
ajuda na proteção dela. Existem pessoas usando, há mais parceiros
presentes e a oferta de produtos legais”, diz Carneiro.
No entanto, os conflitos dificultam: “quando uma unidade é criada e a
questão fundiária não está resolvida a gente herda o problema e
levam-se décadas para resolvê-lo. Todas as Flonas da BR-163 já têm
planos de manejo e estão aptas para a concessão florestal", diz
Carneiro. Florestas Nacionais, como
Jamanxim,
chegaram a entrar no planejamento de concessões, mas acabaram
suspensas. Em 2016, o ICMBio se envolveu em três conflitos armados na
região, com troca de tiros.
Recuar ou resistir
A Flona do Jamanxim está em terceiro lugar entre as mais desmatadas e
enfrenta uma batalha com ocupantes ilegais desde sua criação, em 2006.
Segundo Carneiro, o ICMBio tem focado seus esforços na região, e
especialmente na Jamanxim: “depois de vários anos só com ações de
comando e controle, vimos que elas são importantíssimas mas não
suficientes. Junto com o MMA, estamos apostando agora numa alternativa
de ordenamento territorial, transformando parte da Flona em APA
Jamanxim, e regularizando as pessoas que estão ali”.
A estratégia, porém, é encarada por Elis Araújo como um tiro no pé.
“Dessa forma, o governo acaba premiando quem está agindo na ilegalidade.
É notável, por exemplo, o aumento do desmatamento na
Rebio Nascentes da Serra do Cachimbo
em 2015, vizinha à Flona do Jamanxim: 355% maior em relação a 2014. Os
ocupantes da Rebio acreditam que podem pegar carona nas negociações,
sendo os próximos beneficiados por alteração semelhante à da Jamanxim”.
Falta de gente e dinheiro
Independentemente das estratégias traçadas pelos órgãos ambientais, o
fato é que não há recursos financeiros nem humanos necessários para
implementá-las.
Entre 2010 e 2016, o número de analistas ambientais do ICMBio que
atuavam na Amazônia caiu 40%. “Temos cerca de mil vagas abertas de
pessoas que saíram depois da criação do órgão, seja porque se
aposentaram ou arrumaram outra ocupação”, diz Carneiro.
No Ibama, esta redução foi de 33% entre 2009 e 2015. No ano seguinte,
três portarias determinaram o fechamento de 89 bases do Ibama em todo o
país, metade delas na Amazônia Legal.
No caso do ICMBio, Carneiro diz que a saída tem sido fechar parcerias
com colaboradores. O programa de voluntariado do ICMBio, por exemplo,
conta com mais de duas mil pessoas atuando em unidades de conservação. O
Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA)
também tem alavancado a implementação das UCs da região: desde 2002,
recursos do Banco Mundial, do Fundo Amazônia, do Banco de
Desenvolvimento da Alemanha (KfW) e de outras instituições
internacionais facilitaram a proteção de 60 milhões de hectares.
Mas o ideal está distante. Em seu estudo, o Imazon afirma que somente
as 16 UCs federais mais críticas precisariam de R$ 10,6 milhões anuais
para serem consolidadas. O valor, no entanto, é 3,3 vezes maior que a
média de recursos de investimento do ICMBio entre 2014 e 2016 para todo o
país.
Horizonte nebuloso
Para Angela Kuczach, da Rede Pró-UC, este cenário desfavorável é
fruto de uma ignorância nacional sobre os potenciais das unidades de
conservação. “Temos uma série de mecanismos que estão a anos luz de
serem usados nas UCs do Brasil, e que podem gerar muitos recursos – seja
pelo uso público dessas áreas, pela concessão, pelo manejo florestal”,
diz ela. “Existe uma visão de que as unidades são entraves ao
desenvolvimento. Só que elas podem ser manejadas não só para proteger a
biodiversidade e o próprio setor agropecuário, mas também para gerar
recursos para o país”.
É por esta visão equivocada, diz ela, que há no Congresso cerca de
300 projetos de lei que têm como alvo enfraquecer as unidades de
conservação. Por isso, Kuczach defende que haja uma mobilização para que
as áreas protegidas sejam consolidadas e sirvam aos seus propósitos. “O
Kruger National Park, na África do Sul, é intocável. E só é assim
porque as pessoas amam aquele lugar. No Brasil não temos esse vínculo
com nossas UCs”.