Ao aliar ecoturismo e pesquisa científica, o Onçafari trabalha pela preservação do maior felino das Américas
Terceiro maior felino do mundo e o maior das Américas, a espécie Panthera onca, também chamada de jaguar, originalmente era encontrada desde o sudoeste dos Estados Unidos até o norte da Argentina. Atualmente, ela está oficialmente extinta em território americano, mas ainda pode ser vista em alguns países da América do Sul, entre eles, o Brasil.
Neste último, não há números oficiais de sua população, mas estima-se que sejam aproximadamente 11 mil indivíduos, espalhados por fragmentos de Mata Atlântica, na região Sul e Sudeste, na Caatinga e Amazônia e no Pantanal.
Seu desaparecimento se deu, como para outras espécies da fauna mundial, devido ao desmatamento, à expansão agropecuária e também, a uma crença muito forte de que a onça-pintada valia mais morta do que viva. “A cultura antiga era matar porque a onça causava danos ao rebanho e ao lucro do fazendeiro”, diz o biólogo José Sabino, professor e pesquisador da Universidade Anhanguera-Uniderp, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.
Todavia, há cerca de uma década esta visão começou a mudar. E entre os motivos está o trabalho realizado pela Associação Onçafari, desde 2011, um projeto que alia ecoturismo à pesquisa científica e conservação, no Refúgio Ecológico Caiman, uma área de quase 53 mil hectares no Pantanal.
O fascínio de seu criador pela vida selvagem é antigo. Depois de décadas como piloto de automobilismo no exterior, o paulista Mario Haberfeld tinha uma certeza: queria trabalhar com preservação. “Eu tinha 12 anos na primeira vez que fui para a África. Lembro de estar na caçamba de um caminhão com meu pai em Serengeti (o mais famoso parque nacional da Tanzânia)”, conta. “Quando parei de correr em 2018, passei dois anos viajando pelo mundo e aprendendo mais sobre o ecoturismo”.
Haberfeld cita experiências bem sucedidas como as realizadas na Uganda, onde hoje a atividade é a segunda maior receita econômica no país, e na minúscula Churchill, no Canadá – com menos de 1 mil habitantes -, que apesar de distante, atrai turistas ansiosos para poder ver um urso polar de perto.
De volta ao Brasil, o empreendedor se decidiu pelo Pantanal. “É o melhor lugar para ver bicho”, explica. “Além da Amazônia já ter alguns projetos de ecoturismo, é mais difícil a observação dentro da mata fechada”, explica.
Estimativas indicam que sejam cerca de 11 mil onças-pintadas no Brasil
Habituação das onças-pintadas
Patrimônio da Humanidade e Reserva da Biosfera, o Pantanal é a maior planície alagável de água doce do mundo. Uma vez por ano, o ciclo das águas provoca mudanças drásticas na paisagem. De savana seca e árida, entre maio e novembro, torna-se um enorme pântano nos meses seguintes. Jacarés, capivaras, ariranhas, onças e aves vêm e vão, seguindo o ritmo das águas.Mas nem todos conseguem ser vistos facilmente pelo turistas. “Quando fizemos uma visita pelas pousadas pantaneiras, reparamos que nos livros em que os hóspedes deixavam mensagens, sempre elogiavam muito a estadia, mas relatavam que infelizmente não tinham visto uma onça”, revela Haberfeld.
É por esta razão que a onça-pintada é a grande estrela dos passeios do Onçafari. Entretanto, para que sua observação se tornasse mais frequente entre os turistas foi necessário “treiná-las”. O processo chamado de habituação, que vale frisar – não tem relação nenhuma com domesticação -, faz com que os animais se familiarizem com os veículos do safari e não os vejam como uma ameaça.
O método, aprendido com especialistas da África, faz com que, os bichos percebam a presença do carro, mas não se intimidem com ele.
O veículo fica distante e a onça não mais o percebe como uma ameaça
Graças à habituação, os avistamos, que no passado eram de duas a três onças por ano, passaram para cerca de 900 em 2019.
“Hoje em dia as onças nem olham mais os veículos”, diz o criador do Onçafari.
Esperança, com um de seus filhotes
Monitoramento da espécie
Além do ecoturismo, o trabalho do Onçafari é dividido em outros cinco braços: Ciência, Educação, Reintrodução, Social e Florestas.Na parte científica, os biólogos monitoram e estudam cerca de 30 onças-pintadas que vivem na região da Caiman (algumas já morreram). Todas foram batizadas. Assim como Esperança, a lista conta com nomes criativos como Flor, Fera, Gatuna, Gaia, Felino e Fantasma.
Os profissionais acompanham a movimentação de alguns indivíduos que recebem colar GPS e assim, podem estabelecer o padrão de deslocamento desses felinos.
“Entre os grandes felinos, a onça-pintada era a menos estudada. Relatos sobre a espécie eram baseados em animais de zoológicos ou cativeiro, mas aqui conseguimos conhecer a espécie de perto”, afirma Haberfeld.
Durante a captura, as onças são sedadas e passam por diversos exames
Foi em razão dessas análises que a equipe do Onçafari já conseguiu publicar alguns artigos científicos sobre a Panthera onca. Um deles demonstrou que as onças-pintadas que vivem no Pantanal norte apresentam uma maior concentração de mercúrio na raiz do pelo, no bulbo, devido à maior atividade de mineração que aconteceu naquela área no passado.
“O mercúrio é um mineral cumulativo e as onças se alimentam de presas que moram na água, como jacarés e capivaras. Com isso, ela acaba sendo um indicativo que esse é um problema que também pode acometer os humanos, já que comemos peixe”, ressalta Lilian.
Em outro artigo, os pesquisadores relataram a relação entre onças-pintadas e queixadas. Apesar dos primeiros serem predadores dos segundos, percebeu-se que muitas vezes, as queixadas podem se juntar, em grupos, e conseguem repelir e amedrontar esses felinos.
Desde 2011, os biólogos do projeto já publicaram 17 artigos científicos e outros 20 estão em processo de finalização. Além disso, já foram lançados três livros e dois documentários, um deles, o da BBC, citado abaixo.
Mario Haberfeld, segurando uma
antena com receptor de sinal VHF, que capta uma onda emitida pelo colar
de monitoramento colocado nas onças
Sucesso na reintrodução da onça-pintada na vida selvagem
Uma das histórias mais marcantes dessa quase uma década de atuação do Onçafari envolve duas onças-pintadas que ficaram orfãs, em 2015. Naquele ano, por causa do alto volume das águas, uma fêmea levou seus dois filhotes para o alto de uma árvore, no quintal de uma casa, em meio a um povoado.Uma equipe de resgate tentou tirar os animais do local, mas a onça adulta caiu no chão e morreu. Os filhotes, batizados mais tarde de Isa e Fera, foram encaminhados para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.
No ano seguinte, após passarem por um cuidadoso processo de adaptação à vida selvagem, feito pelo time do Onçafari, em conjunto com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), as fêmeas foram soltas novamente no Pantanal – as primeiras onças-pintadas no mundo a serem reintroduzidas com sucesso na natureza.
Hoje Isa é mãe de Aurora e Aracy e Fera também deu à luz a um casal de gêmeos, Olympia e o macho Ferinha.
“Eu encho meu peito de orgulho de falar sobre essa história. Já havia uma tentativa anterior à nossa de reintrodução da onça-pintada, mas que deu errado. Quando aventamos a possibilidade de tentar o mesmo, fomos muito criticados”, conta a coordenadora do Onçafari. “Mas observamos os erros da primeira tentativa para não repeti-los. Não tivemos contato nenhum com as onças para que elas não ficam apegadas a nós e elas nunca nem perceberam que éramos nós que colocávamos presas vivas no recinto para que elas aprendessem a caçar”.
O sorriso no rosto da bióloga Lilian revela a paixão pelo projeto
“Elas não apenas se adaptaram super-bem e se estabeleceram no território, caçando e convivendo com outras onças, como se nunca tivessem saído da natureza, mas também estão procriando. E o mais legal é que no mês passado a gente já viu a filha da Fera copulando, ou seja, logo ela vai ser avó”, comemora a bióloga. “Cada vez que eu encontro elas em campo, meu coração se enche de alegria”.
Geração de renda e o surgir de uma nova mentalidade
A presença da onça-pintada em seu ambiente é muito importante porque ela é um predador de topo de cadeia. No caso do Pantanal, sem elas, haveria um crescimento exacerbado da população de outros animais, que são suas presas, como porcos-do-mato, capivaras, jacarés e veados. “Com a onça presente, não teremos desequilíbrio ambiental”, assegura Lilian.Atualmente, após muito trabalho, que incluiu a conscientização da comunidade local, todos sabem que a onça-pintada não tem apenas uma importância para o meio ambiente, mas para o ecoturismo local e a consequente geração de renda que ele produz.
“O ecoturismo, desde que conduzido com boas práticas, como limites de visitantes, distanciamento dos animais, não oferta de alimento, entre outras atitudes, é uma excelente ferramenta para conservação da biodiversidade. A prática de observação de onça-pintada no Pantanal sempre foi um desejo, tendo em vista o caráter majestoso desse grande felino”, concorda José Sabino.
O sonho de qualquer turista no Pantanal: ver de perto uma onça-pintada
Muitas famílias que antes trabalhavam na lavoura ou na pecuária, agora atuam na área do turismo. Mulheres deixaram de ficar em casa e estão nas pousadas, nas mais diversas funções. E ao ver pai e mãe trazendo mais dinheiro para casa graças a um animal que é um dos símbolos do Pantanal, as novas gerações já crescem com uma visão diferente.
“Entre nossas ações está a visita a escolas para falar da onça e pelo menos uma vez por mês levar os funcionários e a criançada para ver as onças em campo”, conta Haberfeld. “No começo, o sonho dessas crianças era ser peão de boi, como o pai, hoje em dia elas querem ser biólogos, veterinários, guias de turismo”.
Do Pantanal, o Onçafari agora alça voos por outros biomas brasileiros e inclui outros animais, como o lobo-guará. Cerrado, Mata Atlântica e Amazônia são os próximos a abrigar este lindo projeto de conservação, que surgiu inspirado num modelo africano, mas já conquistou o coração pantaneiro.
A equipe do Onçafari: ao centro a bióloga Lilian Rampim e sentado no carro, do lado esquerdo, está Mario Haberfeld
Jornalista,
já passou por rádio, TV, revista e internet. Foi editora de jornalismo
da Rede Globo, em Curitiba, onde trabalhou durante 6 anos. Entre 2007 e
2011, morou na Suíça, de onde colaborou para publicações brasileiras,
entre elas, Exame, Claudia, Elle, Superinteressante e Planeta
Sustentável. Desde 2008 , escreve sobre temas como mudanças climáticas,
energias renováveis e meio ambiente. Depois de dois anos e meio em
Londres, vive agora em Washington D.C.