[EcoDebate] A cidade de São Paulo completa 461 anos no dia 25 de janeiro de 2015. Originária da pequena Vila de Piratininga, se tornou o município mais populoso e mais rico do Brasil. O desenvolvimento humano foi impressionante, mas a crise hídrica que se abate sobre os paulistanos, a imobilidade urbana, a desigualdade social e os elevados níveis de violência mostram que algo está errado com o modelo adotado. A “cidade que não pode parar” vê seu futuro comprometido diante de um dia a dia poluído, devorador de recursos, gerador de lixo e que segue um rumo insustentável.
O município de São Paulo (SP) tinha 31.385 habitantes em 1872, ultrapassou um milhão em 1940, superou 10 milhões de pessoas no ano 2000 e chegou próximo de 12 milhões de habitantes em 2014. A região metropolitana de SP tem mais de 20 milhões de habitantes (sete vezes a população do Uruguai). Nos últimos 150 anos, na média, houve melhoria da renda, da educação, da esperança de vida, etc.
Mas a cidade se enriqueceu às custas da pauperização do meio ambiente e da depleção dos seus recursos naturais. A críse hídrica atual é o resultado de 460 anos de descaso com as fontes de água e com a vegetação que brota ao redor e protege o precioso líquido. Os rios da cidade foram degradados, enterrados vivos e transformados em esgoto. O volume das atividades antrópicas ultrapassou os limites da sustentabilidade, especialmente nos últimos 60 anos. O aquecimento global é mais um vetor da crise.
Reportagem de Gustavo Angimahtz, no Huffington Post Brasil (01/10/2014), mostra o crime de ecocídio contra os rios de Pinheiros. São três os rios mais expressivos da região, sendo que todos nascem no espigão entre as ruas Cerro Corá e Paulista e todos já estão canalizados. A canalização é fator que aumenta as enchentes, já que faz parte do ciclo de um rio o período de cheia e de vazante, levando sedimentos e constantemente modificando a paisagem. Porém, ao canalizar um curso d’água, os gargalos naturais da cidade são obstáculos a serem transpostos com uma chuva forte.
Segundo Angimahtz: “O menor dos córregos, Belini, nasce pouco acima da praça Panamericana, no Alto de Pinheiros. É um rio relativamente curto, que corta por Alto de Pinheiros, avenida Pedroso de Moraes e passa rente ao Parque Villa-Lobos para então desaguar no Pinheiros. Totalmente encoberto, tudo o que se vê dele é uma boca de cano no rio Pinheiros. Observando um pouco mais à direita do mapa, o rio das Corujas, mais caudaloso, nasce na travessa Raul Seixas, na Vila Madalena, em uma região com muitas minas d’água. Ainda pode ser percebido na praça de mesmo nome, onde corre a céu aberto por um curto espaço para logo correr por galerias e canos direto para o rio Pinheiros” (…) “Mais à direita no mapa, o maior rio da região, o Verde, nasce em múltiplos focos de nascentes, numa formação geológica chamada anfiteatro – pois parece com a arquibancada de um anfiteatro, alta e em curva -, em milhares de pontos diferentes do bairro. As minas d’água do Verde formam dois córregos que se juntam na Rebouças”.
O jornalista mostra que existem vários projetos para reduzir a poluição e as enchentes, mas ressalta: “Para que a sociedade se dê conta da importância dos rios que por ela passam, é preciso muito mais que um projeto de despoluição”. Na verdade, a especulação imobiliária e a ocupação desordenada e exagerada do território transformou a “selva de pedra” em um conjunto urbano hostil ao meio ambiente, que sujou, estreitou, canalizou e enterrou os rios da cidade e agora passa por um grande crise hídrica. A malha urbana virou túmulo dos rios e nascentes.
O pior é que os governantes atuais parecem que não aprendem com os erros do passado. Por exemplo, o prefeito de São Paulo – Fernando Haddad – tem sido alvo de protestos, pois revogou, em dezembro de 2013, um decreto de utilidade pública de uma área de 994 mil metros quadrados nas margens da Represa Billings e que é usada há 40 anos como área de lazer. O decreto revogado era requisito à implantação do Parque dos Búfalos, uma demanda dos 70 mil habitantes do bairro. A revogação abre espaço para especulação imobiliária que quer construir 14 condomínios com 3.800 apartamentos, que vão gerar mais adensamento populacional numa área de mata atlântica e de fartos recursos hídricos, incluindo 8 nascentes.
A legislação que favorece o desmatamento avança em nível nacional e estadual. A Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou, no final do ano passado, o Projeto de Lei Nº 219/2014, que institui o Programa de Regularização Ambiental (PRA) previsto no Código Florestal nacional, possibilitando a flexibilização da preservação ambiental no Estado. Tal iniciativa (de origem do deputado ruralista Barros Munhoz – PSDB), deve consolidar a diminuição da proteção de nascentes e olhos d’água, reduzindo a faixa de preservação permanente para apenas 15 metros em áreas consolidadas. Além disto, também permite que os ruralistas possam compensar o desmatamento em São Paulo com reflorestamento em outros estados (Santini, 2014). A lógica da dominação da natureza se espalha e avança mesmo com todos os sinais de que o rumo do modelo de produção e consumo é insustentável.
A cidade de São Paulo é ponta de lança do desenvolvimento brasileiro. Mas, por trás da lógica da expansão urbana existe uma natureza doente que tem sofrido agressões crescentes nos últimos 4 séculos. Abaixo do concreto e do asfalto há uma enorme bacia hidrográfica que foi totalmente desconfigurada. A cidade cresceu em torno das nascentes dos pequenos fluxos d’água, enquanto os rios Tietê e Pinheiros eram fronteiras ao urbano e estavam nos limites da cidade. Mas agora a cidade sem limites engoliu e maltratou toda a sua rede de rios e córregos. Além do asfalto e do concreto impedir a infiltração da água de chuva, os poços artesianos – legais ou clandestinos – estão acelerando o processo de depleção dos aquíferos. As águas dos lençóis freáticos podem resolver o problema no curto prazo, mas no longo prazo devem ser mais um vetor da crise no futuro.
Artigo de Júlio Ottoboni, no Envolverde (2014), mostra que São Paulo pode entrar em num ciclo de desertificação e de extermínio de suas reservas hídricas existentes no subsolo. Com o volume de águas de superfície em diminuição, as reservas subterrâneas estão ficando, em boa parte, comprometidas por contaminação dos esgotos, pesticidas ou mesmo pela falta de potabilidade.
O autor mostra que desde 1998, pesquisadores da USP e outras entidades alertam para a exploração demasiada e sem critérios das águas subterrâneas, principalmente na agricultura. No trecho paulista, o Aquífero Guarani é explorado por mais de mil poços e isso ocorre numa faixa no sentido sudoeste-nordeste. Já a área de recarga ocupa cerca de 17.000 Km², onde se encontram a maior parte dos poços e grande parte dos problemas de contaminação.
Na cidade de São Paulo, vários condomínios estão colocando placas nas grades avisando que não utilizam água da Sabesp e “Temos poço artesiano, Grato”, como se isto resolvesse a escassez de água. Todvaia, o diretor do Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas da Universidade de São Paulo, Reginaldo Bertolo, em entrevista concedida ao IHU (14/01/2014), deixa claro que abrir um poço artesiano não resolve o problema de abastecimento. Pelo contrário, pode colocar em risco reservas subterrâneas de água, ameaçando até mesmo rio e lagos em épocas de menos chuva. Além disso, é necessário que se adotem critérios técnicos para assegurar a potabilidade da água.
Como se vê, o maltrato é geral não só no solo, mas também no subsolo. Além de respeitar os aquíferos, o encontro dos rios Tietê e Pinheiros deveria ser um local “sagrado” e rodeado de parques e de biodiversidade ecossistêmica. Mas virou um local degradado e recortado por diversos viadutos que canalizam o fluxo de carros que sobrepassam o encontro das águas, que na verdade se tornou o encontro de dois esgotos a céu aberto. O Complexo Viário Heróis de 1932 (mais conhecido como Complexo do Cebolão), interliga a Marginal Tietê, a Marginal Pinheiros e a Rodovia Castelo Branco, sendo o “marco zero” para a contagem da quilometragem das duas Marginais, marginais que ocuparam o espaço de respiração dos rios e que deveria ser preenchido pelas matas ciliares.
Os cidadãos de São Paulo, da chamada “terra da garoa”, convivem com uma situação esdrúxula: têm medo de muita ou pouca precipitação, pois chuva em abundância provoca alagamentos e chuva escassa provoca falta de água potável. Os paulistanos não sabem o que esperar do céu e o governador Geraldo Alckmin ainda não sabe se tem ou não tem racionamento, enquanto a situação de abastecimento se agrava a cada dia.
A crise hídrica de São Paulo não decorre de escassez ou da avarez da natureza, mas sim da forma como os paulistanos maltratam suas fontes d’água e seus recursos naturais. Foi grave São Paulo não se preocupar com a água, mas, ironicamente, a água também não se preocupa com São Paulo. Por ironia, depois de tanto desmatamento e agressões humanas à natureza, os recentes temporais têm derrubado centenas de árvores na capital paulista (mostrando a falta de manejo adequado da prefeitura).
Na verdade, todo o modelo de produção e consumo adotado no mundo está provocando uma crise ecológica e mudanças climáticas que vão impactar cada vez mais a vida das pessoas, colocando em xeque o processo de avanço do progresso humano.
2015 pode ser o ano em que a megalópole moderna descubra que é impossível viver e manter o atual estilo de vida sem grandes reservas de água potável, que, por sua vez, dependem de fontes arcaicas geradas pela infiltração da chuva no solo, chuva que nasce da transpiração da vegetação e das árvores. Como disse Beto Guedes: “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender”. Quem sabe os paulistanos, paulistas e brasileiros aprendam com as torneiras vazias em função de uma grande seca, que em grande parte é autoinfligida.
As autoridades municipais, estaduais e nacionais deveriam esquecer as mentiras propagadas nas últimas eleições e aproveitar o aniversário de São Paulo para decretar estado de emergência diante da crise hídrica, diante da crise energética e diante de um sistema de produção e consumo que está no rumo insustentável e pode entrar em colapso em muito pouco tempo.
Como escrevi em artigo anterior (Alves, 25/01/2012), a cidade de São Paulo seria mais alegre, mais bonita, mais agradável e mais ecológica se sua rica bacia hidrográfica estivesse minimamente próxima do que já foi no passado antes da ocupação portuguesa. Ao invés da especulação imobiliária e da imobilidade urbana, a maior cidade do Brasil ganharia muito se pudesse recuperar e conviver “com suas matas ciliares, com as águas limpas, com os peixes, com as demais plantas aquáticas, com as aves, enfim, com a vida em toda a sua diversidade e esplendor”.
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