quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Mais de um quarto da produção de ouro no Brasil é irregular

 

Mais de um quarto da produção de ouro no Brasil é irregular

Estudo da UFMG e do MPF evidencia cadeia de mineração ilegal no país. Em apenas dois anos, foram vendidas ao menos 48,9 toneladas de ouro com evidências de ilegalidade, o que corresponde a 28% de toda a produção.

Na Amazônia, evidências de ilegalidade chegam a 44% da produção aurífera, segundo Raoni Rajão, líder do estudo

As ilegalidades na produção brasileira não se limitam ao cultivo de soja em regiões desmatadas ilegalmente ou à pecuária em áreas de proteção ambiental, mas afetam também a mineração. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aponta que pelo menos 28% do ouro produzido no Brasil em apenas dois anos, e vendido com certificado da Agência Nacional de Mineração (ANM), tem evidências de ilegalidade.

“Na Amazônia, as evidências são ainda mais graves: 90% da produção aurífera ilegal do Brasil provem de lavras garimpeiras na Amazônia”, afirma Raoni Rajão, que coordenou o estudo intitulado Legalidade da produção de ouro no Brasil, uma parceria com o Ministério Público Federal (MPF).”

Segundo os pesquisadores, nos anos de 2019 e 2020, 174 toneladas de ouro foram negociadas. Desse total, 38% vieram de origem desconhecida, 28% foram identificadas como irregulares (ilegais ou potencialmente ilegais), e 34% aparentemente tiveram origem legal.

O estudo evidencia a falta de fiscalização e controle da cadeia de produção aurífera no Brasil, e vincula desmatamento e violações de Terras Indígenas (TIs) à produção ilegal de ouro.

Segundo a pesquisa, 21 mil hectares de Floresta Amazônica foram desmatados para mineração entre 2019 e 2020, sendo a grande maioria no estado do Pará. Desses 21 mil desmatados, ao menos 5 mil hectares ocorreram em terras indígenas homologadas, ameaçando assim os povos originários que vivem na Amazônia, como os Kayapó, Yanomami e Munduruku.

A produção de ouro segue caminhos já observados num estudo anterior feito pela equipe: “Nós já tínhamos feito um outro estudo, publicado na revista Science, The rotten apples of Brazil’s agribusiness [As maçãs podres do agronegócio brasileiro], que foi exatamente uma tentativa exitosa de sair da análise sobre desmatamento e ilegalidade na produção agrícola no nível de município e chegar no nível de transações individuais”, diz Rajão, que é professor associado de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia no Departamento de Engenharia de Produção da UFMG.

Seguindo a mesma lógica, o novo estudo se concentrou agora na produção e rastreabilidade de ouro no Brasil. “Como no estudo anterior, em que o primeiro passo foi distinguir desmatamento legal e ilegal, fizemos o mesmo com a cadeia do ouro, neste caso em colaboração com o Ministério Público Federal, que já tem uma série de investigações em andamento sobre a questão do ouro ilegal”, afirma o pesquisador, em entrevista à DW Brasil.

Cruzamento de dados com imagens de satélite

Como base para a análise, foram usadas as 17.500 transações de venda de ouro realizadas em 2019 e 2020, registradas na Agência Nacional de Mineração, totalizando 174 toneladas de ouro.

“O que chamou a atenção foi que 38% da produção de ouro não tinha uma localização específica nos mapas da ANM, sendo que é obrigatório ter a localização”, afirma Rajão. Mas como a maioria dessas ausências são em Minas Gerais e Goiás, que têm minas mais antigas e empresas maiores, o estudo descartou essas produções, já que não havia como comprovar a origem ilegal.

Nos casos em que havia a localização indicada, foi feito um cruzamento deste dado com imagens de satélite da região especificada. Quando realmente existia uma área de produção de ouro naquela região, restrita à área autorizada, a produção oriunda dali foi considerada legal. “Pode ser que o ouro, na verdade, tenha vindo de outro lugar. Mas não temos evidência de irregularidades.”

Em relação aos casos de produção identificados como irregulares, foram consideradas algumas questões: por exemplo, quando as imagens de satélite não apontaram qualquer atividade de mineração na região especificada na transação. “Então, certamente, [o ouro] foi produzido em outro lugar”, explica Rajão.

O estudo também considerou como produção irregular quando a área indicada no registro era uma região não autorizada para mineração, ou seja, quando o ouro vem de um garimpo ilegal.

“Em alguns casos, até encontramos uma autorização para a produção, mesmo se tratando de uma área não autorizada. O que mostra, inclusive, a incapacidade do órgão do Ministério de Minas e Energia em verificar a própria legislação brasileira sobre o assunto”, diz o pesquisador.

Entre as produções com evidências de irregularidades há ainda as consideradas “potencialmente ilegais” – quando uma produção legal invade uma área não autorizada. “Ou seja, quando existe uma chance de o ouro ter sido produzido, na verdade, fora da área de concessão.”

Todas essas categorias apontadas como irregulares compõem 28% da produção aurífera total no Brasil, o que corresponde a 48,9 toneladas de ouro. “Mas a prevalência de ilegalidade pode ser até bem maior”, alerta Rajão. Olhando apenas para a Amazônia, o quadro é ainda mais grave. “Do ouro produzido na Amazônia, 44% tem evidência de irregularidade”, conclui.

Para onde vai o ouro?

Segundo Rajão, o Brasil exporta mais ouro do que legalmente produz. Ao todo, 72% do ouro exportado vai para o Canadá, Reino Unido e Suíça. Ou seja, “existe uma chance muito grande de que boa parte desse ouro ilegal esteja indo para esses três países, além de outros países como Índia e Emirados Árabes”.

O pesquisador cobra, assim, uma fiscalização mais detalhada por parte dos compradores internacionais, como já é exigido nos Estados Unidos.

Outra opção seria a criação de um selo, emitido pelos estados brasileiros, que indica a origem legal, como é feito na produção agrícola através do código CAR (Cadastro Ambiental Rural), para verificar o título minerário do ouro.

Inação do governo

Uma vez que os dados usados no estudo estão disponíveis publicamente, a ausência de ações do governo para inibir a produção ilegal de ouro é uma incógnita para o professor da UFMG.

“Se nós, pesquisadores, com base em dados disponíveis publicamente, já conseguimos ver quase 30% da produção com evidências de ilegalidade, como é que o governo, que tem muito mais informações, não consegue ver isso e não toma as providências?”, questiona Rajão.

Com base no estudo, o Ministério Público Federal entrou, em julho deste ano, com uma ação civil pública contra a Agência Nacional de Mineração e o Banco Central do Brasil, que são as agências responsáveis pela fiscalização.

Fonte: Deutsche Welle

O que está ao nosso alcance diante da iminente crise climática?

 

O que está ao nosso alcance diante da iminente crise climática?

Com base no último relatório do IPCC, especialista da TNC Brasil analisa as evidências e possíveis soluções para mitigar os efeitos das mudanças climáticas

Incêndio na Califórnia (EUA), em 2021 (Foto: CALFIRE_Official)

Em meio a tantas notícias de desordem mundial, a divulgação do relatório Mudanças climáticas 2021: a base científica, com cenários catastróficos em nível global projetados para um futuro cada vez mais próximo, acabou passando quase despercebida pela população em geral. Aprovado por 195 estados membros membros do grupo de especialistas do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC), o relatório foi elaborado a partir de mais de 14 mil artigos científicos.

Segundo o documento, o aumento de 1,5ºC da temperatura na superfície da Terra em comparação ao período pré-industrial será atingido em até duas décadas, independentemente do cenário considerado. Se as emissões de gases de efeito estufa (GEE) não forem reduzidas nos próximos anos, isso poderá acontecer ainda mais cedo.

O IPCC trabalhou em cinco cenários diferentes, do mais otimista ao mais sombrio. Em todos os cinco casos, o aumento da temperatura global chegaria a 1,5 ou 1,6ºC por volta de 2040, uma década antes do estimado pelo Painel há apenas três anos. Na ausência de reduções imediatas, rápidas e em grande escala das emissões de GEE, é possível ainda um aumento de 2ºC ou pouco mais.

Todas as regiões do mundo estão em risco. Cada 0,5ºC adicional de aquecimento resultará em um aumento na intensidade e na frequência dos eventos extremos. Globalmente, precipitação diária intensa e consequentes inundações devem aumentar em cerca de 7% para cada 1 grau de aquecimento global. Em altas latitudes, espera-se que a precipitação aumente; já nas latitudes menores, onde se localiza todo território brasileiro, deve diminuir.

Evidências não faltam para essas projeções: 1) na última década, a temperatura média global na superfície da Terra foi 1,09ºC superior à de 1850-1900 ; 2) os últimos cinco anos foram os mais quentes já registrados desde 1850; 3) a recente taxa de aumento do nível do mar quase triplicou em comparação com o período de 1901 a 1971; 4) a influência humana é “muito provavelmente” (probabilidade de 90%) o principal fator pelo derretimento de geleiras desde a década de 1990 e pela diminuição do gelo marinho do Ártico; 5) é “praticamente certo” que os extremos de calor se tornaram mais frequentes e intensos desde a década de 1950, enquanto os episódios de frio se tornaram menos frequentes e menos severos.

Tampouco faltam exemplos reais: ondas de calor extremo como as observadas nas últimas semanas nos países ao longo do Mediterrâneo e no oeste da América do Norte, com a temperatura alcançando 49,6ºC no Canadá; ou inundações como as que tomaram parte da Alemanha e da China; e ainda secas e incêndios florestais cada vez mais intensos e extensos na Califórnia, no Brasil e até na Sibéria.

Na ausência de reduções imediatas, rápidas e em grande escala das emissões de GEE, é possível um aumento de 2ºC ou pouco mais. (Foto: Pixabay)

Tudo isso acompanhado por perdas de vidas humanas e da fauna, aumento de problemas cardiorrespiratórios, quebras de safra e aumento do preço dos alimentos, falta de água e custo energético elevado, danos materiais e morais, entre muitos outros problemas. Ou seja, as mudanças climáticas já estão afetando o nosso dia a dia. No entanto, ainda estamos vivenciando apenas uma amostra atenuada do que pode acontecer.

Sem as alterações no clima, alguns desses eventos ocorreriam devido a outros fenômenos naturais. Mas não todos e tantos quase simultaneamente ou com tamanha intensidade. Para se ter ideia, o recorde de temperatura atingido em 2021 no Canadá, um país de clima temperado a polar, é 5ºC mais elevado que a marca anterior do país, registrada em 1937, e 5ºC maior que o recorde brasileiro, registrado em novembro de 2020 em Nova Maringá, no Mato Grosso.

Com o aumento projetado de 1,5ºC, haverá mais ondas de calor, estações quentes mais longas e estações frias mais curtas. A 2ºC, de acordo com o relatório, extremos de calor atingirão mais frequentemente limites críticos para agricultura e saúde, ciclones e tempestades tropicais devem se intensificar e eventos extremos simultâneos devem se tornar mais repetidos.

O nível médio global do mar em comparação com o período de 1995 a 2014 poderia aumentar de 0,28 a 0,55 metro no caso de emissões de GEE muito baixas, ou mesmo de 0,63 a 1,01 metro num cenário de emissões muito altas, resultando em inundações e erosão mais frequentes e severas em áreas costeiras. E a Amazônia, hoje fundamental para ações de mitigação climática, pode atingir o ponto de não retorno (o tipping point), perdendo suas características de floresta densa e sempre verde.

Número de alertas de desmatamento na Amazônia em 2021 é o segundo maior desde 2016 (Foto: Fotos Públicas)

Embora este relatório seja mais claro e contundente sobre as mudanças climáticas e suas consequências, os cientistas têm mais esperança de que, se as emissões globais forem reduzidas pela metade até 2030 e chegarem a zero líquido em meados do século, seremos capazes de parar, ou até mesmo reverter, o aumento das temperaturas.

O alcance de emissão zero líquida envolve a redução das emissões de GEE por meio de tecnologias limpas, redução do desmatamento e da degradação florestal, desenvolvimento de técnicas de captura e armazenamento de carbono em escala; e do sequestro de CO2 com o plantio de árvores e adoção de práticas de melhor manejo de solos. Nesse contexto, o Brasil, como detentor da maior área de floresta tropical do mundo e com milhões de hectares de áreas degradadas e abandonadas, sem nenhum retorno econômico ou social, tem uma contribuição protagonista a oferecer.

Mas, acima de tudo, a remoção de GEE da atmosfera requer vontade e coesão política em nível mundial. Mesmo que essa remoção ocorra de forma efetiva e rápida, a estabilização das temperaturas globais pode levar de 20 a 30 anos. Alguns dos impactos das mudanças climáticas até o momento, como perdas de geleiras e aumento do nível do mar, no entanto, já são “irreversíveis” ao longo de décadas, até milênios.

Por outro lado, o cenário pode ser ainda pior se os tomadores de decisão continuarem a ignorar as mudanças climáticas ou a adotar medidas limitadas de combate, priorizando unicamente a defesa de interesses econômicos a curto prazo.

Fonte: Galileu