O ano de 2015 começou sem água e terminou em lama. Não a lama nossa de
cada verão, vinda dos deslizamentos e enchentes, mas lama tóxica,
misturada a rejeitos de mineiração.
Em fevereiro,
enquanto os estados mais ricos do país contavam milímetro a milímetro o
volume de seus reservatórios de água, o Informe ENSP entrevistou o
pesquisador do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia
Humana, Marcelo Firpo, para uma reportagem sobre custos da poluição.
“Qual o preço de um rio?”, perguntou Marcelo, na ocasião. Naquele
momento, a pergunta parecia flutuar entre a literalidade e a hipérbole,
conferindo dramaticidade ao conteúdo da conversa com o pesquisador. Nove
meses depois, ela ganhou concretude, nome, sobrenome e endereço: quanto
nos custará o assassinato do Rio Doce?
A Fiocruz, esta semana, divulgou uma moção em que se solidariza com
os moradores das áreas atingidas pelo rompimento da barragem de rejeitos
da Samarco, que deixou, até o momento, mais de uma dezena de mortos e
outra dezena de desaparecidos, devastou comunidades, matou toneladas de
peixes e chegou ao mar do Espírito Santo. A Associação Brasileira de
Saúde Coletiva, Abrasco, também divulgou nota em que convoca as
organizações da sociedade civil a unirem esforços para buscar saídas
para o desastre, que é ao mesmo tempo causa e sintoma de um conjunto
complexo de relações sociais e políticas. A equipe do Informe ENSP
voltou a ouvir Marcelo Firpo. Atualmente, na coordenação do grupo de
trabalho, saúde e ambiente da Abrasco, o pesquisador, mais uma vez,
ressaltou a importância de se rever o modelo econômico vigente que, para
ele, está prenhe de tragédias como a que acabamos de assistir.
Informe ENSP: Professor, qual a sua avaliação desse acidente em Mariana?
Marcelo
Firpo: Este acidente é considerado um dos piores, talvez o pior com
impactos socioambientais, no mundo, envolvendo uma barragem de rejeitos
de mineração. É um acidente de muitos mortos, desaparecidos e as
consequências ainda serão sentidas por décadas. É claro que há toda uma
preocupação quanto ao papel do setor saúde em acompanhar e contribuir
pra entender e minimizar os impactos desse desastre na saúde da
população, mas existe uma discussão de fundo, que a mim me interessa,
que busca compreender esse acidente como uma tragédia anunciada. Marx,
no 18 Brumário de Luís Bonaparte, diz que a história se repete, primeiro
como tragédia e depois como farsa. Esse acidente é também uma farsa, no
sentido de que existe um conjunto de processos sociais, institucionais,
políticos e econômicos por trás da megamineiração, atividade que
transformou o Brasil no segundo maior exportador mundial e a Vale na
maior empresa mundial de exploração de minério de ferro. Entre 2003 e
2013, houve um aumento de mais de cinco vezes da demanda mundial por
minério de ferro, puxada pela China e outros emergentes. Há um mercado
violento de commodities, pesadíssimo, e o Brasil possui, em operação ou
construção, cinco das dez maiores minas do mundo, quatro delas
localizadas em Minas Gerais. São megaminas com construção de barragens
de rejeitos, que são extremamente problemáticas.
Informe ENSP: O que são exatamente essas barragens?
Marcelo Firpo: No processo de produção de minério de ferro, vão
sendo retiradas camadas superficiais, até que se atinja a jazida,
quando se começa a trabalhar propriamente com o minério. Passa-se por
diversas etapas de produção até que esse minério seja transformado na
pelota, naquilo que vai ser exportado ou entrar nas siderúrgicas e
metalúrgicas. Todo resto produzido nesse processo vira uma lama
gigantesca que é armazenada ao ar livre nos vales ao redor dos morros.
Informe ENSP: Mas se é uma tragédia anunciada, uma situação de risco
clara, o que leva o Brasil a investir nesse modelo de exploração de
minérios?
Marcelo Firpo: Existem dois modelos de gestão ambiental em
sociedades de mercado. No primeiro, que normalmente ocorre em países em
que a vida e o meio ambiente são mais valorizados, se tem uma série de
compromissos, desde o processo de licenciamento e proposição dos
empreendimentos até a proibição ou o acordo para que a empresa siga
adiante. São exigidas tecnologias e processos de fiscalização e
monitoramento com um patamar extremamente elevado de segurança e
proteção ambiental. Só que isso envolve muitos custos. Primeiramente,
por parte do estado, que precisa ter recursos econômicos, tecnológicos e
humanos para cumprir seu dever constitucional de proteger as pessoas,
os trabalhadores, a saúde e o meio ambiente. Em segundo lugar, pelas
próprias empresas, que devem internalizar esses gastos. E tudo tem que
ser negociado com a sociedade. Se existe uma comunidade tradicional no
local em que se dará o empreendimento, ela participará das negociações.
Não se trata, simplesmente, de se chegar ao local, retirar os moradores e
indenizá-los por uma bagatela, como ocorre no Brasil. Esse padrão
elevado de licenciamento, se tivesse sido aplicado em nosso país,
impediria que as megaminas tivessem sido construídas da forma como
foram, nos últimos 15, 20 anos.
O segundo modelo é justamente o que temos, que é o modelo do
faroeste e da barbárie. A legislação é falha. Quando existe, não é
cumprida. Os órgãos licenciadores, de regulação e fiscalização, são
extremamente frágeis. Seus recursos humanos, técnicos e econômicos não
dão conta da tarefa de avaliar os processos de licenciamento, os
relatórios de impacto. Para piorar, não são órgãos independentes,
autônomos, porque sofrem pressão das empresas, gestores e políticos,
inclusive financiados em suas campanhas eleitorais diretamente pelas
empresas. A Vale é um dos maiores financiadores privados de campanhas
eleitorais do Brasil.
Informe ENSP: Muitas concessões são feitas com uma série de condicionantes. Eles não costumam ser cumpridos?
Marcelo Firpo: Nesse modelo da barbárie, do faroeste, os técnicos
de órgãos reguladores, em sua busca por fazer um trabalho digno, ainda
conseguem colocar os condicionantes, mas são uma espécie de confiança no
futuro, em que se crê que a empresa vá empreender ações que não
estavam, inicialmente, na sua proposta. Muitas vezes, os órgãos
ambientais não tem condições de fiscalizar o cumprimento desses
condicionantes ou de interromper o empreendimento depois de inciado.
Isso acaba reforçando um processo muito intenso de autoregulação. É
claro que as empresas não querem que acidentes ocorram, mas nesse modelo
da barbárie, quando acontecem tragédias ou impactos ambientais, sociais
e humanos, quem paga a conta é a sociedade. As empresas não assumem os
custos. É a previdência social, o setor saúde, ambiental, os
territórios, populações, economias, a agricultura, a pesca artesanal, o
turismo, que arcam com os ônus das tragédias.
No caso do setor de mineração, é importante também dizer que nos
últimos dois anos, mais ou menos, há uma crise de preços nesse mercado
volátil das commodities, que é uma fria. Quando há uma crise mundial,
todo mundo que produz determinado tipo de commoditie entra em crise
junto. O preço da tonelada do minério de ferro, que já passou de US$
150, atualmente está na ordem de US$ 50. As grandes empresas buscam
reduzir custos diante de situações de crise, então, temos que investigar
de que maneira Vale, BHP e Samarco vêm enfrentando essa crise a ponto
de continuar produzindo lucro, pois possivelmente estão debilitando
seus padrões de segurança.
Informe ENSP: A Folha de São Paulo acaba de noticiar que a Samarco
engavetou, em 2009, um plano de monitoramento e alerta das barragens,
por causa da crise financeira.
Marcelo Firpo: Sim. Se um plano desses não tivesse sido engavetado, uma quantidade enormes de mortes poderia ter sido evitada.
Informe ENSP: Existem exemplos de países ou locais que conseguiram
administrar de maneira responsável e sustentável a atividade de
mineração?
Marcelo Firpo: Sim. Isso ocorre em áreas mais inóspitas, como em
partes da Austrália, ou por meio de modelos custosos, mas democráticos
de negociações, como eu expliquei. As comunidades atingidas têm que ser
ouvidas para que se decida, de forma clara, quem assumirá os ônus e os
bônus desses processos. No Brasil, privatiza-se os lucros, nas mãos de
grupos particulares, e democratiza-se o ônus, pago pela parcela mais
vulnerável da população. Para mim, portanto, a única solução possível é
uma radicalização de democracia e de justiça ambiental. É preciso que os
movimentos por justiça ambiental, os movimentos sociais e as
organizações das populações atingidas tenham um papel de destaque no
enfrentamento dessa atual tragédia.
É fundamental, dentro do jogo
institucional, que os Ministérios Públicos e as Defensorias Públicas
tenham protagonismo, porque, nesse momento, várias instituições de
estado não tem a possibilidade e a legitimidade política e técnica,
isoladamente, para enfrentar a tragédia.
Para que as mudanças sejam
efetivas, elas têm que vir a reboque de um processo social e político
mais amplo, que essa tragédia vem mobilizando. Como disse
anteriormente, é um desastre anunciado, porque faz parte de um processo
que desde a década de 1980 e, principalmente, desde a virada do século,
vêm se acelerando, com acidentes, mortes, destruição, degradação
ambiental. Não há nada de novo. Dessa vez, entretanto, pela dimensão do
desastre, talvez se consiga uma mobilização maior e mudanças, por parte
da sociedade.
Fonte: EcoDebate