Agrotóxicos e Saúde
PL do Veneno e o fim do sistema de regulação tríplice. Entrevista especial com Aline do Monte Gurgel
IHU
Apesar de o
Ministério da Saúde registrar anualmente entre
12 e 14 mil intoxicações por agrotóxicos, e a notificação de casos de intoxicação exógena ser obrigatória no país, “há um grande
sub-registro de casos”, informa a pesquisadora da Fiocruz
Aline do Monte Gurgel à
IHU On-Line. Segundo ela, “estimativas apontam que, para cada caso notificado, 50 outros deixam de ser informados nos
sistemas de informação em saúde.
Praticamente todos os casos notificados são de intoxicações agudas,
porque é mais fácil estabelecer uma relação causal nessas situações,
onde os sinais de intoxicação surgem pouco tempo depois da exposição. Os
casos crônicos, onde os
sinais de intoxicação demoram
mais tempo para aparecer, dificilmente são diagnosticados e notificados,
dificultando precisar o número de ocorrências no país”.
De acordo com
Aline, não existe “
exposição segura aos agrotóxicos”,
porque “o perigo é uma das características intrínsecas” ao produto. A
noção de “uso seguro” dessas substâncias, alerta, “é um conceito
disseminado majoritariamente pelo agronegócio, que precisa vender a
ideia de que as pessoas podem se expor aos agrotóxicos sem que haja
intoxicação”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a pesquisadora também
comenta o PL do Veneno. Se a medida for aprovada, afirma, ela irá impor
uma série de retrocessos, entre eles, o desmonte do sistema de regulação
tríplice e vigente no país, que consiste em liberar os agrotóxicos para
comercialização somente depois da análise dos
Ministérios da Saúde,
da Agricultura e do Meio Ambiente, deixando a avaliação a critério do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa.
“Acontece que os órgãos de Saúde e do Meio Ambiente realizam suas
avaliações de toxicidade com base em critérios técnicos que são
observados por especialistas da área, buscando zelar pela defesa da
saúde e proteção da vida. Como o
Mapa não possui competência técnica para realizar tais análises, o processo de
avaliação dos agrotóxicos pode
se tornar um mero procedimento burocrático realizado sem o rigor
técnico e científico necessários, uma vez que ele não possui expertise
para realizar tais análises. Essa concentração de poderes no Mapa deixa
esse Ministério ainda mais vulnerável aos interesses do mercado”,
adverte.
Aline do Monte Gurgel é graduada em Biomedicina pela Universidade
Federal de Pernambuco – Ufpe e mestra e doutora em Saúde Pública pelo
Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é
pesquisadora na área de Saúde Pública na Fiocruz.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Segundo dados do Ministério da Saúde, são
registradas anualmente entre 12 e 14 mil intoxicações por agrotóxicos no
país a cada ano. Esse dado é uma surpresa ou não, tendo em vista o uso
de agrotóxicos no país?
Aline do Monte Gurgel – Embora a notificação dos
casos de intoxicação exógena, como os decorrentes da exposição aos
agrotóxicos, seja obrigatória no Brasil, temos observado que há um
grande
sub-registro de casos. Estimativas apontam que,
para cada caso notificado, 50 outros deixam de ser informados nos
sistemas de informação em saúde. Praticamente todos os casos notificados
são de intoxicações agudas, porque é mais fácil estabelecer uma relação
causal nessas situações, onde os sinais de intoxicação surgem pouco
tempo depois da exposição. Os casos crônicos, onde os sinais de
intoxicação demoram mais tempo para aparecer, dificilmente são
diagnosticados e notificados, dificultando precisar o número de
ocorrências no país.
Mesmo diante do sub-registro, o número de casos notificados é
bastante expressivo e ajuda a entender a dimensão do problema
representado pelas
intoxicações decorrentes do
uso de agrotóxicos no Brasil, que tem grandes impactos para a saúde, o ambiente e a sociedade.
IHU On-Line – Quais são as complicações ou problemas de saúde gerados por conta das intoxicações por agrotóxicos?
Aline do Monte Gurgel – A
exposição aos agrotóxicos está
associada ao surgimento de diversos problemas para a saúde, desde casos
de intoxicação aguda, cujos sinais mais brandos de intoxicação podem
incluir náuseas, vômitos e dores de cabeça, a doenças graves como
o câncer e Parkinson, além de danos potencialmente irreversíveis e
fatais, como mutações genéticas, casos de malformação do feto ainda na
barriga da mãe e abortos.
IHU On-Line – É possível estimar quais são as principais causas dessas intoxicações e qual é o perfil dos intoxicados?
Aline do Monte Gurgel – As
intoxicaçõesocorrem
porque as pessoas se expõem ao veneno, por diferentes vias e em
diferentes situações. Pode haver exposição dietética, que se dá pelo
consumo de alimentos contaminados com
resíduos de agrotóxicos, sejam eles
in natura (como frutas e verduras),
ultraprocessados (como massas e salgadinhos) ou de
origem animal(leite
e carne de animais que se expuseram previamente aos agrotóxicos). A
exposição também pode ser ambiental, quando a pessoa entra em contato
com solo ou água contaminados com resíduos de agrotóxicos, ou por meio
da exposição ocupacional, que é quando o contato com o veneno se dá no
processo de trabalho, seja ele em uma fábrica que produz agrotóxicos ou
no campo, durante a aplicação dos venenos agrícolas, por exemplo.
É importante frisar que a exposição não acontece por um comportamento
inadequado da população ou por meio de “atos inseguros” dos
trabalhadores que manuseiam agrotóxicos; a
toxicidade é uma característica dos
agrotóxicos, como o próprio nome diz, e, mesmo que sejam adotadas medidas para reduzir a exposição, o perigo não é eliminado.
É importante destacar que as intoxicações não se distribuem igualmente na população; se concentram nos
grupos populacionais mais vulnerabilizados, como trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas, bem como pessoas imunocomprometidas, como crianças e idosos.
IHU On-Line – Alguns pesquisadores debatem sobre o uso seguro
ou não desses produtos. Na sua avaliação, existe uso seguro de
agrotóxicos?
Aline do Monte Gurgel – O uso seguro de agrotóxicos é um conceito disseminado majoritariamente pelo
agronegócio,
que precisa vender a ideia de que as pessoas podem se expor aos
agrotóxicos sem que haja intoxicação. A verdade é que não existe
exposição segura aos agrotóxicos, uma vez que o perigo é uma
característica intrínseca aos
agrotóxicos, não sendo possível eliminá-lo. A adoção de medidas de proteção coletiva e o uso de
Equipamentos de Proteção Individual – EPI pelos
trabalhadores pode apenas reduzir o risco de exposição, mas nunca vai
alterar o potencial de uma substância de causar intoxicações. Ademais, é
preciso considerar que grande parte dos EPI foi concebida para proteger
contra agentes isolados, sendo incapazes de proteger contra a exposição
a misturas, onde muitas vezes agrotóxicos diferentes interagem entre
si, potencializando seus efeitos tóxicos, provocando os chamados efeitos
sinérgicos. Os
agrotóxicos também podem interagir com os EPI em escala molecular, levando à absorção das moléculas do produto e consequente
exposição humana.
Igualmente, existem muitas falhas de concepção e de projeto em relação aos
EPI. Por exemplo, muitos dos EPI atualmente comercializados para a proteção contra
agrotóxicos foram
adaptados da indústria sem revisão das especificações, isto é, foram
projetados para evitar a exposição a outros produtos químicos, e
simplesmente indicados posteriormente para a
indústria dos agrotóxicos,
sem que houvesse para isso qualquer adaptação que eventualmente se
fizesse necessária. Da mesma forma, muitos EPI não foram concebidos para
uso simultâneo, havendo casos onde as luvas não se integram com a
vedação das mangas das roupas. Tudo isso favorece a
exposição do trabalhador, representando um aumento no risco do desenvolvimento de diversos problemas de saúde.
É importante ressaltar que esses dados não se baseiam em uma opinião
ou ponto de vista. Todas essas informações podem ser evidenciadas em
estudos científicos realizados por pesquisadores no Brasil e em outros
países, reforçando a tese de que não é possível se expor aos
agrotóxicos de forma segura, mesmo que ele seja utilizado conforme prescrito.
IHU On-Line – Como tem se discutido a responsabilização por
essas intoxicações na área da saúde hoje? A responsabilidade é atribuída
ao agricultor que teve contato com o produto ou ao fabricante?
Aline do Monte Gurgel – Temos que ter cuidado para
não responsabilizar individualmente os trabalhadores pelos casos de
intoxicação. Temos no Brasil, especialmente após os anos de 1960-70, no
período pós-Revolução Verde, um modelo de produção que praticamente
impõe o uso de agrotóxicos para os produtores, pois a oferta de crédito
foi atrelada à compra de insumos químicos. Com isso o pequeno produtor
era praticamente obrigado a usar agrotóxicos em suas plantações, levando
à exposição e, consequentemente, ao crescimento dos casos de
intoxicação. Também sabemos que as condições de trabalho no campo são
muitas vezes precárias, favorecendo as exposições dos trabalhadores. Não
dá para culpar o pequeno produtor pelo seu adoecimento, ele é muito
mais uma vítima desse modelo de produção.
IHU On-Line – Qual sua avaliação do PL do Veneno? Quais as
desvantagens ou vantagens dele em relação à legislação atual? O que deve
mudar na regulamentação de registro dos agrotóxicos em relação ao modo
como ela ocorre hoje?
Aline do Monte Gurgel – O PL 6.299 impõe uma série de retrocessos para a saúde e o ambiente. Sua aprovação vai permitir a
exposição humana a agrotóxicos que hoje têm seu registro proibido no
Brasil, a exemplo daqueles relacionados a danos graves como
câncer, malformação congênita,
mutações e
distúrbios no sistema hormonal, por exemplo. A atual legislação brasileira proíbe o registro de agrotóxicos que possam provocar esses efeitos, porém o
PL irá
permitir a liberação desse tipo de produto no mercado nacional sempre
que o risco para a população for considerado “aceitável”. Acontece que
para algumas substâncias que podem provocar câncer ou para aquelas que
provocam desregulação hormonal, por exemplo, não é possível estabelecer
doses de exposição consideradas seguras, pois há risco de dano para cada
dose diferente de zero. Não existe risco que possa ser considerado
“aceitável” nesses casos, e o PL negligencia isso.
Outro importante retrocesso relaciona-se ao desmonte do
sistema de regulação tríplice vigente no
Brasil, onde o
registro de um agrotóxico se dá somente após a análise de três ministérios:
Saúde,
Agricultura e
Meio Ambiente.
A nova proposta legislativa retira dos órgãos da Saúde e do Meio
Ambiente a competência de avaliar os impactos dos agrotóxicos em suas
respectivas áreas, que seriam agora feitas pelo
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa.
Acontece que os órgãos de Saúde e do Meio Ambiente realizam suas
avaliações de toxicidade com base em critérios técnicos que são
observados por especialistas da área, buscando zelar pela defesa da
saúde e proteção da vida. Como o Mapa não possui competência técnica
para realizar tais análises, o processo de avaliação dos agrotóxicos
pode se tornar um mero procedimento burocrático realizado sem o rigor
técnico e científico necessários, uma vez que ele não possui expertise
para realizar tais análises. Essa concentração de poderes no Mapa deixa
esse Ministério ainda mais vulnerável aos interesses do mercado.
Outro artigo potencialmente problemático do
PL diz respeito à
prescrição de receita agronômica antes
da ocorrência da praga, de forma preventiva. Esta medida, além de não
permitir adequar o uso de agrotóxicos ao problema fitossanitário, ao
nível de dano ou o estágio da cultura a ser tratada, favorece ainda mais
a
exposição dos trabalhadores aos agrotóxicos ao ampliar as possibilidades de exposição no campo.
IHU On-Line – Se o PL do Veneno for aprovado, a nova legislação poderá aumentar o número de intoxicações por agrotóxicos?
Aline do Monte Gurgel – A expectativa é acelerar os processos de registro de agrotóxicos, permitindo inclusive o
registro de agrotóxicos que
estejam relacionados ao surgimento de cânceres, malformação congênita,
danos ao sistema reprodutivo, mutações e distúrbios no sistema hormonal.
Também será possível produzir no
Brasilprodutos que
não tenham registro no país, prescrever o uso de venenos de forma
preventiva, antes da ocorrência da praga, bem como registrar agrotóxicos
sem que sejam feitos estudos toxicológicos no país. Somando todos esses
elementos, é de se esperar um aumento da exposição e, consequentemente,
do número de intoxicados.
Embora esse aumento seja esperado, pode ser que, em um primeiro
momento, ele não se traduza em dados observáveis nos sistemas de
informação em saúde, uma vez que muitos dos potenciais agravos esperados
surgem tardiamente, como é o caso dos cânceres, que podem surgir
décadas após uma exposição.
IHU On-Line – Como deveriam ser feitos os estudos toxicológicos no país?
Aline do Monte Gurgel – Existe um elemento central que precisa ser considerado em qualquer estudo de
exposição a agentes tóxicos: o princípio da precaução. O princípio da precaução é considerado o mecanismo mais importante para a
preservação da saúde e do ambiente ao prever que a simples presença de indícios de danos causados por um agente como
agrotóxicos já seria suficiente para justificar interromper a exposição das pessoas e dos ecossistemas. Assim, diante da possibilidade de
dano irreversível público ou ambiental e
na ausência de consenso científico irrefutável, a exposição deve ser
evitada até que aquele que pretende causar o dano — no caso as empresas
que detêm ou buscam o registro do agrotóxico — possam provar, sem sombra
de dúvidas, que a exposição àquele agente pode ser considerada segura.
Em síntese, a defesa da vida deve se sobrepor a qualquer interesse
econômico.
(
EcoDebate, 14/08/2018) publicado pela
IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado,
reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à
EcoDebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]