O longo dia seguinte
A escassez de água em São Paulo é o rei nu das eleições de 2014. No momento em que a maior cidade do país se transforma num cenário de distopia, o processo eleitoral chegou ao fim sem nenhum debate sério sobre o meio ambiente e o modelo de desenvolvimento para o Brasil
Chegamos ao dia seguinte sem que o futuro tenha sido de fato
disputado. Se a eleição de 2014 foi a mais acirrada das últimas décadas,
não só pelos candidatos, mas pelos eleitores, terminou sem debate. Não
havia adversários nem nos estúdios de TV, onde os candidatos rolavam ora
na lama, ora na retórica mais medíocre, nem nas redes sociais, elas que
se tornaram as ruas realmente tomadas pela militância.
Havia apenas inimigos a serem destruídos. As fraturas do país dizem respeito bem menos à pequena diferença entre a vencedora e o derrotado – e bem mais a uma fissura entre o país que vivemos e o país inventado. Não como uma fabulação, que é a matéria de qualquer vida.
Não como uma utopia, que é onde se sonha chegar. Mas como um deslocamento perverso da realidade, uma cisão. Só essa desconexão pode explicar como a maior cidade do país transformava-se num cenário de distopia durante o primeiro e o segundo turnos eleitorais sem que em nenhum momento o meio ambiente e o modelo de desenvolvimento tenham entrado na pauta com a seriedade necessária.
Chegamos ao dia seguinte como parte dos moradores de São Paulo: olhando para o céu à espera de que uma chuva venha nos salvar. E é com essa verdade profunda que temos de lidar.
Se a eleição pareceu interminável, o dia seguinte poderá ser muito mais longo.
E seria, qualquer que fosse o vencedor. Com qualquer um deles, o que se disputou foi o poder, não um projeto de país. São Paulo talvez seja a expressão hiper-real desse momento, seja nossa escultura de Ron Mueck, o artista australiano que cria figuras humanas em dimensões superlativas.
É como se o futuro tivesse chegado antes na cidade expandida, mais próximo da sombria ficção científica de Philip K. Dick do que da megalópole de comercial de TV onde os novos modelos de carros deslizam céleres por ruas sem trânsito.
Nesse cenário, Geraldo Alckmin, o governador do partido que há 20 anos está no poder foi reeleito no primeiro turno.
Confrontados com a crise da água, Aécio Neves (PSDB) disse: “Vivemos a maior estiagem dos últimos 80 anos, e a meu ver o Estado fez algo absolutamente adequado, que foi propor bônus para aqueles que economizassem. Talvez o que tenha faltado foi uma parceria maior do governo federal”.
E Dilma Rousseff (PT) rebateu: “Eu disse a ele (Alckmin): governador, pela minha experiência, acho que o senhor deveria fazer obras emergenciais. Porque tudo indica que essa seca se prolongará, e vocês não têm capacidade de abastecimento suficiente”.
Pode existir exibição maior de mediocridade do que essas respostas dadas por aquela que queria continuar presidente e por aquele que desejava se tornar presidente? É de chorar sentado em um dos reservatórios do sistema Cantareira, mas a maioria dos eleitores não pareceu se importar.
Um sugere que basta chover ou dar bônus aos consumidores, a outra que obras emergenciais teriam solucionado todo o problema. Nenhum demonstrou nem capacidade nem vontade de fazer relações com o modelo de desenvolvimento, o esgotamento dos recursos, o desmatamento e o modo de vida.
Assim, enquanto São Paulo se transformava numa vitrine do cotidiano corroído pela degradação ambiental, o máximo de discussão que se conseguiu foi sobre de quem é a culpa.
Isso num momento global em que as mudanças climáticas e suas consequências são consideradas por alguns dos pensadores mais relevantes do planeta, em todas as áreas, o tema de maior importância desse período, talvez de toda história humana. A cisão com a realidade é total.
O monstro bafejava na sala, mas os presidenciáveis disputavam quem tinha dado o nó no rabo do gato.
Mesmo Marina Silva muito pouco tocou nesses temas ao disputar o primeiro turno, desassemelhando-se a si mesma. Ela, de quem se esperava que fizesse a diferença fazendo diferente, preferiu falar sobre a autonomia do Banco Central.
No máximo escaparam, ela e todos, pela bandeira fácil do “desenvolvimento sustentável”, como se algum candidato fosse dizer que não quer desenvolvimento sustentável e como se este fosse um conceito já dado.
Mas tocar nos temas cruciais do presente e do futuro, disputar a escolha do modelo de desenvolvimento em pontos concretos, com a seriedade que o momento histórico exige, não. O meio ambiente ficou fora da pauta dos presidenciáveis por escolha de conveniência, já que esse é o debate difícil, ao implicar mudanças no modo de vida dos eleitores, mas também porque a população têm escasso ou nenhum interesse no tema, apesar de a degradação ambiental roer o cotidiano.
Essa é a fratura da negação.
A escassez de água na maior cidade brasileira é o rei nu destas eleições de 2014. E é por isso que vale a pena revisitar a reeleição de Geraldo Alckmin (PSDB).
A seca acentua a nuvem de poluição que envolve a capital, o nariz sangra, a tosse se instala, o recorde de calor fora de época esgarça os nervos dentro de carros e ônibus que se movem lentamente num gigantesco labirinto de concreto.
A crise tem produzido cenas como a de caminhões-pipa com escolta policial, prontos para dominar a população desesperada de um interior pintado como bucólico. A polícia que massacrou os manifestantes, agora se prepara para reprimir os sem-água.
A imagem dos reservatórios remete ao repertório de geografias historicamente calcinadas. A vida torna-se pior, bem pior. E torna-se bem pior em ritmo acelerado.
Era de se esperar que a experiência cotidiana concreta tivesse um impacto nas urnas. Mas, neste cenário, o governador reelegeu-se ainda no primeiro turno, repetindo: “Não vai faltar água”. E a água já faltava.
Se as pessoas votam de forma pragmática, votam pelo retorno imediato, votam naquele que acreditam que vai melhorar a vida delas, por que a crise da água teve pouco ou nenhum impacto na eleição?
Seria porque a educação, a saúde, a segurança estiveram excelentes nesses 20 anos de governo do PSDB em São Paulo, o que compensaria a escassez de água? Não é o que a realidade mostra.
A crise da água tampouco atingiu o desempenho de Aécio Neves, que no segundo turno conquistou 64% dos votos válidos no estado de São Paulo. Que cisão, então, ocorreu nesse momento? E o que ela diz? Ou como a escassez de água não colou na eleição, ou de que forma se colou?
Não tenho respostas, só hipóteses. Uma hipótese possível seria a mesma pela qual a candidatura de Marina Silva erodiu. Marina cometeu vários erros nessa campanha, alguns deles primários. Mas há um deles, que para muitos soa como erro, mas que não me parece que seja.
Seu discurso era menos afirmativo do que os eleitores estão acostumados. Ela propunha a construção de soluções, mais do que propostas acabadas (ainda que tenha sido a única entre os três candidatos com chances no primeiro turno a apresentar um programa de governo). Propunha escuta.
Seu discurso foi classificado como “difuso” e “vago”. Às vezes, ser difuso e ser vago são as únicas verdades possíveis em determinado momento histórico, como mostraram as manifestações de junho de 2013.
Mas logo essas características, também nela decodificadas como defeitos, foram transformadas em “fraqueza”. E, na sequência, em identidade.
Assim, a mulher que nasceu num seringal do Acre, trabalhou desde criança em condições brutais, passou fome, alfabetizou-se aos 16 anos, foi empregada doméstica, sobreviveu a três hepatites, cinco malárias e uma leishmaniose, além de sofrer contaminação por mercúrio, e ainda assim tornou-se professora com pós-graduação, senadora, ministra, uma das maiores lideranças ambientais do planeta e por fim uma candidata à presidência com chances de vencer, foi considerada “fraca”. Mais uma fratura entre imagem e realidade.
As afirmações peremptórias, com pontos de exclamação, assim como as certezas, são mercadorias valorizadas. Em geral ordinárias, mas valorizadas mesmo assim. Num momento em que a falta de controle parece se expressar em toda a sua assustadora grandiosidade, como na escassez de água em São Paulo, assim como na corrosão das condições de vida pela degradação ambiental, talvez as certezas, mesmo que falsas e irresponsáveis, tornem-se ainda mais valorizadas.
Talvez a virtude encontrada em Alckmin por parte dos eleitores seja a da negação da realidade: “Tudo sob controle. Não vai faltar água”.
Uma garantia expressada sem hesitação ou titubeio, em voz firme, quando a água se esvai das torneiras e a vida converte-se literalmente em cinza, uma garantia falsa, parece ainda soar como uma garantia. E logo é decodificada como força, como a expressão de alguém que sabe liderar e sabe o que fazer e, principalmente, nos libera de ter de fazer algo. Sua vantagem é manter viva a ilusão mais cara, a ilusão do controle.
Esta seria uma cisão para encobrir a fratura maior, a de que os responsáveis não têm responsabilidade. E a de que cada um, que também é responsável pela destruição ambiental, tampouco quer ser responsável, porque isso implicaria mudar de posição e alterar radicalmente seu modo de vida.
Ao esforço de mudar o modo de vida poucos aderem, porque dá trabalho e provoca perdas, exige mediação e concessão. Para muitos, já parece um sacrifício excessivo diminuir o tempo do banho, imagina alterar radicalmente o cotidiano. Assim, vale mais a pena escolher não a ficção, mas a mentira – e ficção e mentira jamais podem ser confundidas –, porque dessa maneira se torna possível manter o máximo de tempo possível uma rotina que não apenas é insustentável a longo prazo, como já não se sustenta agora. E também a fantasia sobre si mesmo como um bom cidadão.
Soa mais conveniente, portanto, acreditar nessa versão mágica, a de que não vai faltar água, quando já está faltando água, promovendo uma cisão com a realidade. De novo, portanto, é um voto pragmático, voltado ao bem-estar imediato de não ter de se mover.
De não precisar fazer nada ou muito pouco a respeito. Voltado a algo talvez mais caro do que água, a certeza de que há sempre uma saída que não exija comprometimento e mudança real. Uma saída em que apenas os outros façam o sacrifício, como sempre foi no caso do racionamento muito mais antigo e persistente na casa dos pobres.
No fim da semana passada, foi divulgada uma gravação em que Dilma Pena, a presidente da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), dizia numa reunião interna: “A Sabesp tem estado muito pouco na mídia, acho que é um erro. Nós tínhamos que estar mais na mídia, sabe, (...) nas rádios comunitárias, (...) todos falando, com um tema repetido, um monopólio: economia de água.
‘Cidadão, economize água’. Isso que tinha que estar reiteradamente na mídia, mas nós temos de seguir orientação, nós temos superiores, e a orientação não tem sido essa. Mas é um erro”. O diretor metropolitano da Sabesp, Paulo Massato, fez o seguinte comentário na mesma reunião: “Se repetir o que aconteceu esse ano, do final de 2013, de outubro pra cá, se voltar a repetir em 2014, confesso que eu não sei o que fazer.
Essa é uma agonia, uma preocupação. Alguém brincou aqui, mas é uma brincadeira séria. Vamos dar férias para oito milhões e oitocentos mil habitantes e falar: ‘saiam de São Paulo’. Porque aqui não tem água, não vai ter água pra banho, pra limpeza da casa, quem puder compra garrafa, água mineral. Quem não puder, vai tomar banho na casa da mãe lá em Santos, lá em Ubatuba, Águas de São Pedro, sei lá, aqui não vai ter”.
É gravíssimo que a presidente da Sabesp tenha sido impedida, por qualquer motivo e mais ainda por motivos eleitoreiros, de alertar a população sobre a enormidade do problema. É criminoso e deve haver apuração e responsabilização de todos os envolvidos.
Mas precisamos ter a honestidade de assumir que dificilmente, em 5 de outubro, data da votação do primeiro turno, algum cidadão pudesse alegar desconhecer a situação e a necessidade de economizar água durante a prolongada seca que enfrenta São Paulo.
Geraldo Alckmin deu a mentira que a população queria ouvir porque conhece bem seus eleitores. Parodiando o título do livro do escritor Ferrez, não há inocentes em São Paulo. A reeleição de Alckmin talvez seja um daqueles fenômenos sustentados pela expectativa de que, se mentirmos todos, talvez vire verdade. Em parte, o governador pode não ter vencido apesar da crise da água, mas também por causa dela.
A crise da água na maior cidade brasileira, em plena eleição, é fascinante pelo que diz daquilo que não é dito. Se é um fato que faltou planejamento ao governo estadual tucano, que aí está há 20 anos e agora por mais quatro, esta é só a ponta explícita, a mais fácil de enxergar (ainda que deliberadamente a maioria dos eleitores a tenha ignorado nas urnas).
Mas, ao colocar a parte no lugar do todo, revela-se essa crença arraigada, e por estes dias também desesperada, de acreditar que teria bastado algumas obras para escapar do que se tornou a vida cotidiana em São Paulo, na qual a água é apenas a ausência mais gritante. É o dogma, quase religioso, de que o homem pode controlar a catástrofe ambiental que provocou.
De novo, a ilusão do controle, mesmo quando a realidade aniquila os dias, mesmo quando no fundo cada um sabe que, fora e dentro, algo de fundamental da vida de cada um se esvai. Quanto mais se sente que o controle escapa, no miúdo e no macro do cotidiano, maior é a recusa em enxergar. O desastre já passou da porta de casa, mas ainda se crê que basta chover para tudo voltar a ser como antes, que já era ruim, mas menos.
Ou que se o não planejado for feito, ainda que tarde, o problema de São Paulo está resolvido. Cinde-se de novo – e talvez uma parte significativa da população sequer perceba que a escassez de água tem causas ambientais profundas. Como se as questões do meio ambiente, que aqui estão, estivessem lá, no mundo abstrato dos outros.
Dilma Rousseff foi reeleita. Sua política ambiental, se é que pode se chamar assim, foi um retrocesso. A visão sobre a Amazônia do governo se notabilizou pela semelhança com o projeto da ditadura militar para a região.
Em sua gestão, obras como a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, foram impostas aos povos da floresta sem consulta prévia, autoritarismo que levou o Brasil à Comissão Interamericana de Diretos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Seu próximo alvo é barrar o belo rio Tapajós, onde encontra a resistência dos Munduruku e de comunidades agroextrativistas, como a de Montanha e Mangabal.
Pressionado pelo processo eleitoral, o governo disse que, desta vez, cumprirá a lei e ouvirá os índios, mas não escutará os ribeirinhos.
A presidente também arrancou um naco do Parque Nacional da Amazônia para facilitar o caminho das hidrelétricas planejadas para o Tapajós. Mas só criou unidades de conservação na Amazônia a 12 dias do segundo turno, na tentativa de minimizar a repercussão de seu péssimo desempenho no setor.
O desmatamento na Amazônia voltou a crescer: 191% no bimestre de agosto e setembro deste ano, comparado à 2013. Segundo o Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia), porque o governo adiou a divulgação dos dados oficiais para depois das eleições. Dilma foi também a presidente que menos demarcou terras indígenas desde a redemocratização do país.
Pessoas respeitáveis defenderam nestas eleições que o susto de quase perder o poder fará Dilma Rousseff e o PT retomarem algumas lutas históricas, também no horizonte socioambiental. Veremos. Em seu discurso da vitória, neste domingo (26/10), Dilma falou em “diálogo”. E em “pontes”.
Num pronunciamento bem pensado, em que a presidente reeleita podia colar tudo, já que o cargo estava garantido por mais quatro anos, vale a pena prestar atenção nas ausências. Dilma Rousseff não mencionou nem “índios” – e nem “meio ambiente”.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
Leia mais artigos de Eliane Brum aqui.
Havia apenas inimigos a serem destruídos. As fraturas do país dizem respeito bem menos à pequena diferença entre a vencedora e o derrotado – e bem mais a uma fissura entre o país que vivemos e o país inventado. Não como uma fabulação, que é a matéria de qualquer vida.
Não como uma utopia, que é onde se sonha chegar. Mas como um deslocamento perverso da realidade, uma cisão. Só essa desconexão pode explicar como a maior cidade do país transformava-se num cenário de distopia durante o primeiro e o segundo turnos eleitorais sem que em nenhum momento o meio ambiente e o modelo de desenvolvimento tenham entrado na pauta com a seriedade necessária.
Chegamos ao dia seguinte como parte dos moradores de São Paulo: olhando para o céu à espera de que uma chuva venha nos salvar. E é com essa verdade profunda que temos de lidar.
Se a eleição pareceu interminável, o dia seguinte poderá ser muito mais longo.
E seria, qualquer que fosse o vencedor. Com qualquer um deles, o que se disputou foi o poder, não um projeto de país. São Paulo talvez seja a expressão hiper-real desse momento, seja nossa escultura de Ron Mueck, o artista australiano que cria figuras humanas em dimensões superlativas.
É como se o futuro tivesse chegado antes na cidade expandida, mais próximo da sombria ficção científica de Philip K. Dick do que da megalópole de comercial de TV onde os novos modelos de carros deslizam céleres por ruas sem trânsito.
Nesse cenário, Geraldo Alckmin, o governador do partido que há 20 anos está no poder foi reeleito no primeiro turno.
Confrontados com a crise da água, Aécio Neves (PSDB) disse: “Vivemos a maior estiagem dos últimos 80 anos, e a meu ver o Estado fez algo absolutamente adequado, que foi propor bônus para aqueles que economizassem. Talvez o que tenha faltado foi uma parceria maior do governo federal”.
E Dilma Rousseff (PT) rebateu: “Eu disse a ele (Alckmin): governador, pela minha experiência, acho que o senhor deveria fazer obras emergenciais. Porque tudo indica que essa seca se prolongará, e vocês não têm capacidade de abastecimento suficiente”.
Pode existir exibição maior de mediocridade do que essas respostas dadas por aquela que queria continuar presidente e por aquele que desejava se tornar presidente? É de chorar sentado em um dos reservatórios do sistema Cantareira, mas a maioria dos eleitores não pareceu se importar.
Um sugere que basta chover ou dar bônus aos consumidores, a outra que obras emergenciais teriam solucionado todo o problema. Nenhum demonstrou nem capacidade nem vontade de fazer relações com o modelo de desenvolvimento, o esgotamento dos recursos, o desmatamento e o modo de vida.
Assim, enquanto São Paulo se transformava numa vitrine do cotidiano corroído pela degradação ambiental, o máximo de discussão que se conseguiu foi sobre de quem é a culpa.
Isso num momento global em que as mudanças climáticas e suas consequências são consideradas por alguns dos pensadores mais relevantes do planeta, em todas as áreas, o tema de maior importância desse período, talvez de toda história humana. A cisão com a realidade é total.
O monstro bafejava na sala, mas os presidenciáveis disputavam quem tinha dado o nó no rabo do gato.
Mesmo Marina Silva muito pouco tocou nesses temas ao disputar o primeiro turno, desassemelhando-se a si mesma. Ela, de quem se esperava que fizesse a diferença fazendo diferente, preferiu falar sobre a autonomia do Banco Central.
No máximo escaparam, ela e todos, pela bandeira fácil do “desenvolvimento sustentável”, como se algum candidato fosse dizer que não quer desenvolvimento sustentável e como se este fosse um conceito já dado.
Mas tocar nos temas cruciais do presente e do futuro, disputar a escolha do modelo de desenvolvimento em pontos concretos, com a seriedade que o momento histórico exige, não. O meio ambiente ficou fora da pauta dos presidenciáveis por escolha de conveniência, já que esse é o debate difícil, ao implicar mudanças no modo de vida dos eleitores, mas também porque a população têm escasso ou nenhum interesse no tema, apesar de a degradação ambiental roer o cotidiano.
Essa é a fratura da negação.
A escassez de água na maior cidade brasileira é o rei nu destas eleições de 2014. E é por isso que vale a pena revisitar a reeleição de Geraldo Alckmin (PSDB).
A seca acentua a nuvem de poluição que envolve a capital, o nariz sangra, a tosse se instala, o recorde de calor fora de época esgarça os nervos dentro de carros e ônibus que se movem lentamente num gigantesco labirinto de concreto.
A crise tem produzido cenas como a de caminhões-pipa com escolta policial, prontos para dominar a população desesperada de um interior pintado como bucólico. A polícia que massacrou os manifestantes, agora se prepara para reprimir os sem-água.
A imagem dos reservatórios remete ao repertório de geografias historicamente calcinadas. A vida torna-se pior, bem pior. E torna-se bem pior em ritmo acelerado.
Era de se esperar que a experiência cotidiana concreta tivesse um impacto nas urnas. Mas, neste cenário, o governador reelegeu-se ainda no primeiro turno, repetindo: “Não vai faltar água”. E a água já faltava.
Se as pessoas votam de forma pragmática, votam pelo retorno imediato, votam naquele que acreditam que vai melhorar a vida delas, por que a crise da água teve pouco ou nenhum impacto na eleição?
Seria porque a educação, a saúde, a segurança estiveram excelentes nesses 20 anos de governo do PSDB em São Paulo, o que compensaria a escassez de água? Não é o que a realidade mostra.
A crise da água tampouco atingiu o desempenho de Aécio Neves, que no segundo turno conquistou 64% dos votos válidos no estado de São Paulo. Que cisão, então, ocorreu nesse momento? E o que ela diz? Ou como a escassez de água não colou na eleição, ou de que forma se colou?
A polícia que massacrou os manifestantes de junho de 2013 agora se prepara para reprimir os sem-água de 2014
Não tenho respostas, só hipóteses. Uma hipótese possível seria a mesma pela qual a candidatura de Marina Silva erodiu. Marina cometeu vários erros nessa campanha, alguns deles primários. Mas há um deles, que para muitos soa como erro, mas que não me parece que seja.
Seu discurso era menos afirmativo do que os eleitores estão acostumados. Ela propunha a construção de soluções, mais do que propostas acabadas (ainda que tenha sido a única entre os três candidatos com chances no primeiro turno a apresentar um programa de governo). Propunha escuta.
Seu discurso foi classificado como “difuso” e “vago”. Às vezes, ser difuso e ser vago são as únicas verdades possíveis em determinado momento histórico, como mostraram as manifestações de junho de 2013.
Mas logo essas características, também nela decodificadas como defeitos, foram transformadas em “fraqueza”. E, na sequência, em identidade.
Assim, a mulher que nasceu num seringal do Acre, trabalhou desde criança em condições brutais, passou fome, alfabetizou-se aos 16 anos, foi empregada doméstica, sobreviveu a três hepatites, cinco malárias e uma leishmaniose, além de sofrer contaminação por mercúrio, e ainda assim tornou-se professora com pós-graduação, senadora, ministra, uma das maiores lideranças ambientais do planeta e por fim uma candidata à presidência com chances de vencer, foi considerada “fraca”. Mais uma fratura entre imagem e realidade.
As afirmações peremptórias, com pontos de exclamação, assim como as certezas, são mercadorias valorizadas. Em geral ordinárias, mas valorizadas mesmo assim. Num momento em que a falta de controle parece se expressar em toda a sua assustadora grandiosidade, como na escassez de água em São Paulo, assim como na corrosão das condições de vida pela degradação ambiental, talvez as certezas, mesmo que falsas e irresponsáveis, tornem-se ainda mais valorizadas.
Talvez a virtude encontrada em Alckmin por parte dos eleitores seja a da negação da realidade: “Tudo sob controle. Não vai faltar água”.
Uma garantia expressada sem hesitação ou titubeio, em voz firme, quando a água se esvai das torneiras e a vida converte-se literalmente em cinza, uma garantia falsa, parece ainda soar como uma garantia. E logo é decodificada como força, como a expressão de alguém que sabe liderar e sabe o que fazer e, principalmente, nos libera de ter de fazer algo. Sua vantagem é manter viva a ilusão mais cara, a ilusão do controle.
Esta seria uma cisão para encobrir a fratura maior, a de que os responsáveis não têm responsabilidade. E a de que cada um, que também é responsável pela destruição ambiental, tampouco quer ser responsável, porque isso implicaria mudar de posição e alterar radicalmente seu modo de vida.
Ao esforço de mudar o modo de vida poucos aderem, porque dá trabalho e provoca perdas, exige mediação e concessão. Para muitos, já parece um sacrifício excessivo diminuir o tempo do banho, imagina alterar radicalmente o cotidiano. Assim, vale mais a pena escolher não a ficção, mas a mentira – e ficção e mentira jamais podem ser confundidas –, porque dessa maneira se torna possível manter o máximo de tempo possível uma rotina que não apenas é insustentável a longo prazo, como já não se sustenta agora. E também a fantasia sobre si mesmo como um bom cidadão.
Soa mais conveniente, portanto, acreditar nessa versão mágica, a de que não vai faltar água, quando já está faltando água, promovendo uma cisão com a realidade. De novo, portanto, é um voto pragmático, voltado ao bem-estar imediato de não ter de se mover.
De não precisar fazer nada ou muito pouco a respeito. Voltado a algo talvez mais caro do que água, a certeza de que há sempre uma saída que não exija comprometimento e mudança real. Uma saída em que apenas os outros façam o sacrifício, como sempre foi no caso do racionamento muito mais antigo e persistente na casa dos pobres.
No fim da semana passada, foi divulgada uma gravação em que Dilma Pena, a presidente da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), dizia numa reunião interna: “A Sabesp tem estado muito pouco na mídia, acho que é um erro. Nós tínhamos que estar mais na mídia, sabe, (...) nas rádios comunitárias, (...) todos falando, com um tema repetido, um monopólio: economia de água.
‘Cidadão, economize água’. Isso que tinha que estar reiteradamente na mídia, mas nós temos de seguir orientação, nós temos superiores, e a orientação não tem sido essa. Mas é um erro”. O diretor metropolitano da Sabesp, Paulo Massato, fez o seguinte comentário na mesma reunião: “Se repetir o que aconteceu esse ano, do final de 2013, de outubro pra cá, se voltar a repetir em 2014, confesso que eu não sei o que fazer.
Essa é uma agonia, uma preocupação. Alguém brincou aqui, mas é uma brincadeira séria. Vamos dar férias para oito milhões e oitocentos mil habitantes e falar: ‘saiam de São Paulo’. Porque aqui não tem água, não vai ter água pra banho, pra limpeza da casa, quem puder compra garrafa, água mineral. Quem não puder, vai tomar banho na casa da mãe lá em Santos, lá em Ubatuba, Águas de São Pedro, sei lá, aqui não vai ter”.
É gravíssimo que a presidente da Sabesp tenha sido impedida, por qualquer motivo e mais ainda por motivos eleitoreiros, de alertar a população sobre a enormidade do problema. É criminoso e deve haver apuração e responsabilização de todos os envolvidos.
Mas precisamos ter a honestidade de assumir que dificilmente, em 5 de outubro, data da votação do primeiro turno, algum cidadão pudesse alegar desconhecer a situação e a necessidade de economizar água durante a prolongada seca que enfrenta São Paulo.
Geraldo Alckmin deu a mentira que a população queria ouvir porque conhece bem seus eleitores. Parodiando o título do livro do escritor Ferrez, não há inocentes em São Paulo. A reeleição de Alckmin talvez seja um daqueles fenômenos sustentados pela expectativa de que, se mentirmos todos, talvez vire verdade. Em parte, o governador pode não ter vencido apesar da crise da água, mas também por causa dela.
A crise da água na maior cidade brasileira, em plena eleição, é fascinante pelo que diz daquilo que não é dito. Se é um fato que faltou planejamento ao governo estadual tucano, que aí está há 20 anos e agora por mais quatro, esta é só a ponta explícita, a mais fácil de enxergar (ainda que deliberadamente a maioria dos eleitores a tenha ignorado nas urnas).
Mas, ao colocar a parte no lugar do todo, revela-se essa crença arraigada, e por estes dias também desesperada, de acreditar que teria bastado algumas obras para escapar do que se tornou a vida cotidiana em São Paulo, na qual a água é apenas a ausência mais gritante. É o dogma, quase religioso, de que o homem pode controlar a catástrofe ambiental que provocou.
De novo, a ilusão do controle, mesmo quando a realidade aniquila os dias, mesmo quando no fundo cada um sabe que, fora e dentro, algo de fundamental da vida de cada um se esvai. Quanto mais se sente que o controle escapa, no miúdo e no macro do cotidiano, maior é a recusa em enxergar. O desastre já passou da porta de casa, mas ainda se crê que basta chover para tudo voltar a ser como antes, que já era ruim, mas menos.
Ou que se o não planejado for feito, ainda que tarde, o problema de São Paulo está resolvido. Cinde-se de novo – e talvez uma parte significativa da população sequer perceba que a escassez de água tem causas ambientais profundas. Como se as questões do meio ambiente, que aqui estão, estivessem lá, no mundo abstrato dos outros.
Dilma Rousseff foi reeleita. Sua política ambiental, se é que pode se chamar assim, foi um retrocesso. A visão sobre a Amazônia do governo se notabilizou pela semelhança com o projeto da ditadura militar para a região.
Em sua gestão, obras como a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, foram impostas aos povos da floresta sem consulta prévia, autoritarismo que levou o Brasil à Comissão Interamericana de Diretos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Seu próximo alvo é barrar o belo rio Tapajós, onde encontra a resistência dos Munduruku e de comunidades agroextrativistas, como a de Montanha e Mangabal.
Pressionado pelo processo eleitoral, o governo disse que, desta vez, cumprirá a lei e ouvirá os índios, mas não escutará os ribeirinhos.
A presidente também arrancou um naco do Parque Nacional da Amazônia para facilitar o caminho das hidrelétricas planejadas para o Tapajós. Mas só criou unidades de conservação na Amazônia a 12 dias do segundo turno, na tentativa de minimizar a repercussão de seu péssimo desempenho no setor.
O desmatamento na Amazônia voltou a crescer: 191% no bimestre de agosto e setembro deste ano, comparado à 2013. Segundo o Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia), porque o governo adiou a divulgação dos dados oficiais para depois das eleições. Dilma foi também a presidente que menos demarcou terras indígenas desde a redemocratização do país.
Pessoas respeitáveis defenderam nestas eleições que o susto de quase perder o poder fará Dilma Rousseff e o PT retomarem algumas lutas históricas, também no horizonte socioambiental. Veremos. Em seu discurso da vitória, neste domingo (26/10), Dilma falou em “diálogo”. E em “pontes”.
Num pronunciamento bem pensado, em que a presidente reeleita podia colar tudo, já que o cargo estava garantido por mais quatro anos, vale a pena prestar atenção nas ausências. Dilma Rousseff não mencionou nem “índios” – e nem “meio ambiente”.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
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