Fogo no Pantanal mato-grossense começou em fazendas de pecuaristas que fornecem para gigantes do agronegócio
Queimadas iniciadas em cinco propriedades do MT respondem pela destruição de área equivalente à cidade do Rio de Janeiro. Duas dessas fazendas são de pecuaristas que vendem gado para empresas da família Maggi (Amaggi e Bom Futuro), fornecedoras de gigantes como JBS, Marfrig e Minerva.
Parte do fogo que devasta o Pantanal mato-grossense teve origem em
fazendas de pecuaristas que vendem gado para o grupo Amaggi, do
ex-ministro e ex-senador Blairo Maggi, e para o grupo Bom Futuro, de
Eraí Maggi, considerado o maior produtor de soja do mundo. Esses dois
grupos empresariais, por sua vez, são fornecedores das gigantes
multinacionais JBS, Marfrig e Minerva.
O levantamento da Repórter Brasil se baseou em estudo
da ONG Instituto Centro de Vida, que identificou que as queimadas no
Mato Grosso começaram em cinco propriedades, a partir da análise cruzada
dos focos de calor do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais),
imagens dos satélites Sentinel-2 e Planet e mapeamento das áreas
atingidas por incêndios da NASA. O estudo do ICV analisou os focos de
incêndio no Mato Grosso entre 1º de julho e 17 de agosto, mas ressalta
que a primeira queimada na região começou em 11 de julho. Com base na
geolocalização dessas fazendas, a Repórter Brasil usou
dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e da Secretaria de Estado da
Fazenda para identificar os proprietários, bem como documentos para
averiguar os compradores de dois desses fazendeiros.
O fogo que teve início nessas cinco propriedades rurais voltadas para pecuária, todas localizadas em Poconé (100 km da capital Cuiabá), foi responsável por destruir 116.783 hectares, área equivalente à cidade do Rio de Janeiro. Esse volume de destruição correspondeu a 36% da área total atingida por incêndios no Pantanal mato-grossense no período analisado (entre julho e a primeira metade de agosto).
O incêndio que atinge o Pantanal é alvo de investigação da Polícia
Federal, que apura a responsabilidade de fazendas na área rural de
Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Já o estudo do ICV se concentrou no Mato
Grosso, no entorno da cidade de Poconé.
Entre essas cinco propriedades rurais mato-grossenses, está a fazenda
Comitiva, de Raimundo Cardoso Costa, onde o fogo começou em 20 de julho
e foram registrados pelo menos 171 focos de incêndio. A área total
destruída pelo fogo iniciado nesta fazenda foi de 25.188 hectares.
De acordo com dados da Secretaria de Estado de Fazenda do Mato
Grosso, Raimundo Cardoso Costa é proprietário de outra fazenda, vizinha à
Comitiva, chamada Recanto das Onças. A Repórter Brasil
identificou que a fazenda Recanto das Onças comercializou gado com o
grupo Bom Futuro, mais conhecido pela produção de soja, mas que tem um
rebanho de 130 mil cabeças de gado nelore. O grupo Bom Futuro está entre
os fornecedores de gado dos maiores frigoríficos do Brasil: JBS,
Marfrig e Minerva, conforme atestam documentos a que a reportagem teve
acesso.
Outra fazenda localizada em Poconé e que está entre as cinco analisadas pela Repórter Brasil
é a Espírito Santo, de José Sebastião Gomes da Silva, onde o fogo
começou em 4 de agosto. Segundo o Inpe, foram pelo menos 73 focos de
incêndio que destruíram 14.292 hectares, segundo análise da NASA.
Gomes da Silva também é dono de outra fazenda, a Formosa. Essa
propriedade vende gado para a fazenda Rio Bonito, de Elza Junqueira de
Carvalho Dias, que, por sua vez, comercializa gado com a JBS e Marfrig. A
Fazenda Formosa também é fornecedora da Amaggi Pecuária. A empresa faz
parte do grupo Amaggi, da família do político Blairo Maggi, que tem 10
fazendas no Mato Grosso e atua em diversos setores além de soja e
pecuária, como energia e logística. A Amaggi Pecuária, por sua vez, está
entre as fornecedoras da JBS, Marfrig e Minerva.
Na semana passada (14), uma equipe da Polícia Federal de Corumbá, no
Mato Grosso do Sul, estado que também abriga o bioma Pantanal, realizou
buscas e apreensões em quatro fazendas, com a suspeita de que o fogo
teria sido provocado intencionalmente para a abertura de pastos. Os
policiais investigam se aconteceu com o Pantanal algo similar ao ‘Dia do
Fogo’, quando fazendeiros
e empresários de Novo Progresso, no Pará, organizaram queimadas na
Amazônia nos dias 10 e 11 de agosto do ano passado.
“Queremos descobrir quem foram os autores [das queimadas no Pantanal]”, disse, à Repórter Brasil
o delegado Daniel Rocha, em referência ao fato de que os incêndios que
destroem o bioma teriam sido provocados pela ação humana — e não por
conta do período seco. As propriedades investigadas pela Polícia Federal
na operação Matáá ficam próximas ao Parque Nacional do Pantanal, na
divisa dos dois estados, e, segundo o delegado, são grandes fazendas de
pecuaristas.
O fogo é a forma mais barata de ampliar uma pastagem, conforme
explica o diretor-executivo da Amigos da Terra Amazônia Brasileira,
Mauro Armelin. Para o executivo, os frigoríficos deveriam analisar
também os seus fornecedores indiretos, como forma de coibir o
desmatamento e também as queimadas provocadas pela ação humana. “Se os
frigoríficos não fizeram a análise completa e monitorarem os
[fornecedores] indiretos, eles nunca poderão dizer que suas cadeias de
produção são livres de desmatamento”, explica.
Mais de uma centena de frigoríficos assinaram com o Ministério Público Federal (MPF) um acordo, que ficou conhecido como “TAC da Carne”, em 2009, para não comprar gado de áreas desmatadas ou autuadas por trabalho escravo na região amazônica. Mais de 10 anos depois, os frigoríficos conseguem driblar o acordo com uma série de artimanhas, muitas vezes envolvendo fornecedores indiretos com problemas socioambientais, como mostrou a Repórter Brasil em reportagem publicada em junho.
‘Fogo começou com explosão de automóvel’, diz pecuarista
Raimundo Cardoso Costa disse à Repórter Brasil que o
fogo em sua propriedade começou após a explosão de um veículo. “Os
bombeiros apagaram, mas o fogo ficou nas raízes das plantas e depois
espalhou”, diz. O fogo, segundo ele, destruiu 40% dos 15 mil hectares da
sua propriedade, além de ter se alastrado para outras fazendas.
O fazendeiro reclama da legislação ambiental e diz que o ideal seria liberar o fogo no período que não fosse seco. “Tem que deixar o pantaneiro limpar o que tem que limpar”, afirma. Raimundo diz também que jamais colocaria fogo na própria fazenda, pois sem a mata nativa, que funciona como uma cerca natural, ele teria de gastar R$ 10 mil para construir um quilômetro de cerca — sua fazenda, segundo ele, precisaria de 50 quilômetros.
Morador de São Paulo, ele tem fazendas no Pantanal há 10 anos e um
rebanho de 1,2 mil cabeças de nelore. É um típico fornecedor indireto,
pois vende gado, principalmente, para outros fazendeiros que engordam a
criação antes de comercializarem para o abate nos frigoríficos. Ele
afirma ter vendido a fazenda Recanto das Onças, apesar de seu nome ainda
constar como proprietário em documento da Secretaria de Estado da
Fazenda. O pecuarista, no entanto, confirmou que negociou, em diversas
ocasiões, com o grupo Bom Futuro (fornecedor de JBS, Marfrig e
Minerva).
Raimundo reclama da responsabilidade dos incêndios recair sobre os
fazendeiros. “Estão detonando a gente. O pantaneiro sempre foi o
cuidador do Pantanal”, afirma. Ele também é um defensor do presidente
Jair Bolsonaro. “Tudo que acontece no Brasil é culpa do Bolsonaro. A
mídia acha que quanto pior, melhor. Temos que ajudar o presidente a
melhorar o Brasil.”
A reportagem entrou em contato com a advogada do outro fazendeiro,
José Sebastião Gomes da Silva, mas não obteve resposta até o fechamento
deste texto.
A Amaggi, que compra gado de José Sebastião Gomes, informou à Repórter Brasil que
vai suspender as compras de gado com este fornecedor enquanto aguarda a
apuração sobre a responsabilidade da origem dos focos de incêndios em
outras propriedades de Gomes.
A Minerva Foods destacou que “os produtores agropecuários são também prejudicados por incêndios de grandes proporções, que podem atingir suas propriedades”. Disse que os fornecedores diretos dela (Amaggi e Bom Futuro) não apresentam irregularidades, mas não comentou sobre os fornecedores indiretos (Raimundo e José Sebastião).
Dona das marcas Montana e Bassi, a Marfrig afirmou que usa uma plataforma de monitoramento via satélite para monitorar os fornecedores com focos de incêndio e que há um alerta para que a compra de gado seja suspensa até que a situação seja esclarecida, mas que não há controle total sobre os fornecedores indiretos. A empresa reconhece a questão como “crítica” e lançou, em julho, um programa para tentar resolvê-la.
A JBS, proprietária das marcas Friboi, Seara, Swift e Doriana,
afirmou que só consegue monitorar os fornecedores que vendem diretamente
para o frigorífico, pois não tem acesso às Guias de Trânsito Animal
(GTAs) dos elos anteriores da cadeia. Sem a informação sobre as GTAs, a
empresa entende que seria “precipitada qualquer conclusão da JBS sobre a
origem do gado adquirido desses fornecedores” (Leia todos posicionamentos na íntegra).
O grupo Bom Futuro não retornou o pedido de posicionamento da Repórter Brasil.
Destruição avassaladora
As queimadas no Pantanal neste ano são as maiores desde que o INPE
começou a registar os números, em 1998. São quase 16 mil focos de
incêndio (até a última quarta-feira), 56% maior que 2005, o pior ano da
série histórica. O fogo destruiu 15% da região, com 2,3 milhões de
hectares da maior área úmida do mundo.
A fauna nativa do Pantanal é a que mais sofre. São 1,2 mil espécies
diferentes de animais, sendo que 36 são ameaçadas de extinção. Entre as
vítimas estão cobras, jacarés, macacos e onças. Os incêndios já
dizimaram um refúgio de araras azuis e avança sobre uma área de proteção
de onças-pintadas.