“Deus está nos detalhes”.
A frase é do arquiteto Ludwig Mies van der Rohe (1896-1969). Mas a nenhuma outra ciência ela se aplica melhor que à da construção de instituições, mesmo porque fora deles, nesse campo, está o diabo em pessoa.
Nada é melhor exemplo dessa verdade que o Brasil, este país em que o maior obstáculo para a implantação de uma democracia é o fato de que a esmagadora maioria do seu povo pensa que já vive numa quando, na verdade, o que existe por aqui, nesse departamento, não é mais que vagos ecos de um vocabulário.
Veja-se este exemplo.
Continua, pela imprensa afora, o chororô pelo último “drible” aplicado na Lei da Ficha Limpa, desta vez pelo arquiflagrado empalmador de pacotes de dinheiro vivo, José Roberto Arruda que, um dia depois de ser condenado pela segunda vez num caso de corrupção anunciou, sem ser barrado pela polícia, que manterá sua candidatura ao governo do Distrito Federal do qual já foi apeado uma vez por corrupção.
As leis de iniciativa popular, de que seria exemplo a que instituiu a obrigação de “ficha limpa” para candidatos a cargos majoritários, são parte do arsenal de armamentos de segunda geração adotados pelas democracias sem aspas para fechar as brechas deixadas pelo equipamento de primeira geração que quase puseram a perder a terceira tentativa da democracia de caminhar pela Terra, iniciada em 1776, depois dos malôgros das experiências grega, iniciada ha 2600 anos, e romana, encerrada quase mil anos depois.
Esse arsenal inclui as leis de iniciativa popular, os referendos e as ações de “recall”, todas elas armas para dar consequência concreta e inescapável ao preceito central das democracias segundo o qual o consentimento do povo é a única fonte de legitimação de toda lei, instituição ou ação política.
A ordem institucional brasileira onde tudo, quando muito, “parece”, mas nunca de fato “é”, e onde nem o equipamento básico de primeira geração como os preceitos da “igualdade perante a lei” e de “um voto por eleitor” jamais chegaram a ser implantados, adota parte desse vocabulário de segunda geração mas rigorosamente nada do que lhe dá sentido e consequência prática.
A lei de iniciativa popular nasce, como o nome diz, fora das casas legislativas e, nas democracias sem aspas, uma vez apresentada ao público, o que pode ser feito por todo e qualquer eleitor, e colhido o numero de assinaturas estipulado para essa etapa do processo, vai a debate público em campanha (contra e a favor) financiada pelo Estado.
Feito isto, vai a votação em um adendo à cédula da eleição majoritária mais próxima pedindo um “sim” ou um “não” de cada eleitor para, se aprovada, ser imposta ao Poder Legislativo que não terá a prerrogativa de alterá-la se o Poder Judiciário chancelar a sua constitucionalidade.
Uma regra elementar já que sendo o representado a fonte primária e exclusiva da legitimidade da lei, o representante não tem poder para se sobrepor à sua vontade expressa.
No Brasil dá-se o contrário. A lei chama-se “de iniciativa popular” mas a coleta do numero requerido de assinaturas fará, apenas, com que o Legislativo fique obrigado a apreciar uma lei semelhante (mas não necessariamente idêntica em seus propósitos e intenções originais) e levá-la a votação de seus deputados que poderão aprovar ou rejeitar essa “sugestão” de seus representados e, em caso de aprovação, regulamentá-la a seu bel prazer, inclusive até torcê-la para produzir o efeito contrário ao originalmente desejado pelo seu propositor.
Em caso de excessivo incômodo para assumir tanta violência, poderão os legisladores cercar a “lei de iniciativa popular” de outras que tornem impossível aplicá-la, como é o caso desta da Ficha Limpa.
No caso de Arruda a lei não pôde ser aplicada simplesmente porque seus advogados jogaram com os prazos que o Judiciário gostosamente concede para que tudo possa virar nada, ao gosto do juiz, daquilo que entra no seu rito de processamento.
Como a condenação de Arruda à inelegibilidade prescrita pela Lei da Ficha Limpa só foi “pronunciada” depois do registro de sua candidatura, embora tivesse começado a ser processada muito antes, ele está livre de incidir nela porque outra lei paralela assim determina que seja. Somada à elasticidade dos prazos, uma coisa elimina a outra, enquanto nossos códigos legislativos se vão tornando mais e mais obesos de leis e anti-leis.
Para que todo esse intrincado caminho de rato para manter tudo como sempre foi? Para dificultar a discussão e ajudar a confundir as coisas num país cheio de analfabetos funcionais que ainda vive sob censura da imprensa nos períodos pre-eleitorais, que é quando esses temas tendem a vir à baila.
A figura do referendo, que não existe no Brasil, abre a outra via dessa mesma estrada nas democracias civilizadas dando aos eleitores a prerrogativa de, colhidas as devidas assinaturas, convocar um “sim” ou “não” para qualquer lei passada por seus representantes nos legislativos de que eles houverem por bem se livrar.
Ja o plebiscito, que também tem versão brasileira e tende a ser confundido com o referendo, tem em vista facilitar reformas mais amplas, para o bem ou para o mal, que obrigarão uma ou mais leis existentes a serem revogadas ou reformadas para se adequar a um novo preceito geral aprovado em plebiscito pelos eleitores.
Dona Dilma e o PT vivem à procura de um momento qualquer de comoção nacional para tentar rifar de vez o sistema republicano que têm jurado de morte por esse meio, a exemplo do que aconteceu na Venezuela.
Mas mesmo antes deles o uso desse instrumento tem sido desvirtuado entre nós. O caso mais recente e emblemático foi o do Estatuto do Desarmamento. Proposto por uma coalisão de ONGs e legisladores, foi liminar e esmagadoramente recusado pelos eleitores.
Mesmo assim, a posterior “regulamentação” das leis existentes e confirmadas nas urnas sobre o direito de posse e uso de armamentos por cidadãos legalmente qualificados para tanto foi tão radicalmente desvirtuada pelos perdedores do plebiscito que tornou impossível o exercício desse direito.
O impedimento ou “recall” de mandatos concedidos, igualmente, são, no Brasil, iniciativas exclusivas dos poderes Legislativo e Judiciário. Nas democracias avançadas são a mais fulminante arma da cidadania.
Nelas divide-se o eleitorado em distritos justamente para facilitar o processamento do “recall”, permitindo a cassação do representante de cada grupo de eleitores que não honrar o seu mandato a qualquer momento sem impor grandes mobilizações que atarpalhem o funcionamento do país e nem, muito menos, perguntar o que quer que seja aos poderes Legislativo e Judiciário.
Os representados podem cassar a qualquer momento os mandatos condicionalmente dados aos representantes apenas por não estarem satisfeitos com o seu desempenho, definição que fica a seu critério e não precisa ser explicada a ninguém.
A democracia, enfim é o regime que estabelece uma clara relação de hierarquia e subordinação do governante ao governado, e arma a mão deste para dar consequência a mais fulminante possível a esse preceito.
O Brasil adota parte do vocabulário das democracias mas nenhum dos seus instrumentos práticos, excluídas as eleições para cargos executivos onde cada eleitor ainda vale um voto. Do Legislativo em diante tudo, inclusive a regra de maioria, é falsificado.
Com o advento da Era PT, vamos indo daí para o sexo explícito sem maiores subterfúgios e em velocidade vertiginosa como mostra a sequência do Decreto 8.243 das vésperas da abertura da “Copa das Copas” que, a seguir vigendo como vai, acaba com a democracia representativa no Brasil e institui em seu lugar o Sistema Nacional de Participação Popular só dos escolhidos do partido, para o decreto que complementa o primeiro anunciado logo após o encerramento dela mediante o qual o governo, antes mesmo de fazê-lo aprovar no Congresso Nacional, cria o Fundo Financeiro de Participação Social com o qual quer nos obrigar a financiar a nossa própria exclusão do processo decisório nacional…
A nota positiva que se pode lembrar dentro desse quadro de desolação é que nos Estados Unidos, que começaram a instituir mecanismos de democracia direta com a participação de todos os eleitores (ao contrário dos do PT dos quais só participam quem ele escolhe) a partir do final do século 19 e início do século 20, a sequência foi, primeiro, ganhar a ferramenta das leis de iniciativa popular e, pelo uso dela, limpar a definição sobre quem manda em quem – representantes e representados – e redobrar a força e o alcance desse instrumento.
Foi usando as leis de inciativa popular que se conquistou o direito ao referendo das leis de inciativa parlamentar e ao “recall” a qualquer momento dos representantes indignos do seu mandato.
Essa, aliás, é a única maneira pacífica conhecida de se fazer tais reformas já que nem nos Estados Unidos nem em lugar nenhum elas foram feitas por iniciativa espontânea dos que se beneficiavam da situação anterior.
Nós ainda dispomos, portanto, da ferramenta necessária para começar a abrir a picada que pode nos tirar desta selva em que andamos perdidos.
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