Por Silvio Marchini
- domingo, 24 julho 2016 22:49
Foto: Wikipedia e Ivo Lima/Ministério do Esporte
Faz um mês que Juma, a onça-pintada, foi morta a tiros por militares
após a cerimônia de passagem da tocha olímpica pela cidade de Manaus. O
episódio, que repercutiu na imprensa, nas redes sociais e nos círculos
profissionais relacionados aos direitos dos animais e à conservação da
vida silvestre, lembrou o caso do leão Cecil, abatido no Zimbábue em
julho de 2015.
Os dois casos têm elementos em comum. Juma e Cecil eram
ambos “celebridades” (pelo menos a ponto de merecerem apelidos, o que
fazia deles indivíduos diferenciados de seus pares, simples
onças-pintadas e leões anônimos), pertencentes a espécies carismáticas
de felinos, e cujas mortes causaram grande comoção popular.
As
semelhanças talvez terminem aqui. Pelo menos no que tange ao quanto os
profissionais de vida silvestre serão capazes de converter tal comoção
em apoio concreto à pesquisa e à conservação dessas espécies ameaçadas
(mais pragmaticamente, em captação de recursos financeiros), os casos
Cecil e Juma estão se mostrando tão diferentes e distantes quanto a
savana africana e floresta amazônica.
Justamente um mês depois da morte de Cecil, e um dia depois se
descobrir a identidade de seu algoz – um caçador de troféus americano –,
o apresentador Jimmy Kimmel (que seria um Danilo Gentili da televisão
americana, mas como nunca assisti a nenhum dos dois, o caro leitor pode
ficar à vontade para ignorar a comparação) tomou quatro minutos de seu
talk show
para expressar sua reação ao que chamou de “tragédia nojenta”.
Jimmy
disse esperar que algo bom pudesse resultar daquilo e exortou seus
expectadores a apoiar a Unidade de Pesquisa em Conservação da Vida
Silvestre da Universidade de Oxford, a WildCRU, que vinha monitorando
Cecil por meio de um colar de GPS desde 2009. O link para doações foi
então exibido na tela. Estava dado o pontapé para um fenômeno de mídia –
e de captação de recursos – que o Professor David Macdonald, diretor da
WildCRU, chamaria de “ponto de inflexão na história da conservação do
leão africano”.
O caso Cecil viralizou. Em uma hora, 4.4 milhões de internautas
tentaram acessar o website da WildCRU: o site travou! Por praticamente
uma semana o Professor Macdonald não fez outra coisa senão dar
entrevistas. Apareceu inclusive na televisão brasileira (nunca pensei
que veria o David – que, a propósito, foi meu orientador de doutorado –
falando no Fantástico!).
No dia seguinte ao apelo de Jimmy Kimmel, o
termo “Killing of Cecil the Lion” foi registrado na Wikipédia. Tal
página tem sido acessada quase mil vezes por dia nesses últimos três
meses.
Algumas celebridades, entre elas Ricky Martin, vieram a público
expressar indignação. Em setembro do ano passado, a Ty Warner anunciou o
lançamento da versão “Beanie Baby” de Cecil, com 100% do lucro das
vendas destinados à WildCRU: pouco tempo depois o Cecil “zoiúdo”
(somente os leitores que, com eu, têm menina em casa, vão conhecer a
coleção zoiúdos) podia ser encontrado nas gôndolas de lojas brasileiras,
debaixo de um cartaz que informava a causa nobre por trás da compra do
simpático bichinho de pelúcia.
Ainda na esteira da tanta repercussão,
várias companhias aéreas americanas anunciaram que não transportariam
mais troféus de caça ou partes de animais oriundos dos “Big Five”
africanos – elefante, rinoceronte, búfalo, leopardo e leão. Em novembro,
os Estados Unidos proibiram a importação de troféus de caça de países
que não comprovassem boas práticas de conservação e manejo da fauna. Em
janeiro de 2016, a lei “Leão Cecil” baniu a importação de troféus pelos
aeroportos de Nova York e Nova Jersey, nos Estados Unidos. Em abril, a
revista Time escolheu Cecil como o animal mais influente da história!
O resultado para a WildCRU foi generoso: 1.1 milhão de dólares
arrecadados, vindos de 10 mil novos doadores. Para se ter uma idéia do
que isso representa, o valor equivale a aproximadamente um quarto dos
quase 12.7 milhões de reais que o ICMBio estima que seriam necessários
para executar ao longo de dez anos seu Plano de Ação Nacional para a
Conservação da Onça-Pintada (infelizmente, claro, não dispomos desse
recurso para colocar o plano em prática).
A WildCRU está usando o
dinheiro para expandir suas atividades de pesquisa e conservação do leão
no Zimbábue e Botsuana e consolidar seu programa de bolsas de estudos
que visa trazer estudantes africanos para Oxford. Impressionados com
tanto sucesso, pesquisadores da WildCRU contrataram especialistas em
mídia para investigar o papel das redes sociais no envolvimento do
público no caso Cecil. O resultado do estudo foi publicado na revista
Animals no último mês de abril.
Até que ponto as lições que essa história nos ensina podem ser
aplicadas ao caso Juma e à pesquisa e conservação da onça-pintada no
Brasil? As diferenças entre Cecil e Juma devem ser consideradas. Cecil
era um leão, Juma uma onça-pintada. Leões são defensavelmente mais
populares nos Estados Unidos e Europa – regiões que concentram doadores
em potencial – do que onças.
O leão é considerado como uma espécie
ameaçada globalmente, enquanto a onça-pintada é tecnicamente “quase
ameaçada”. Cecil era um macho de vida livre e temia-se que sua morte
pudesse colocar em perigo as fêmeas e filhotes que viviam sob seu
domínio (o que mais tarde descobriu-se não ter acontecido: seus filhotes
estão passando muito bem, obrigado). Juma era uma fêmea de cativeiro e
sua morte não teve implicações diretas para a conservação das onças na
Amazônia. Mas sua morte expôs o problema do uso de onças como atração em
desfiles e outros eventos e os riscos que tal prática impõe à onça e às
pessoas envolvidas.
Cecil era bastante conhecido no Zimbábue antes
mesmo de sua morte e era objeto de pesquisa de uma das mais renomadas
universidades do mundo, a Universidade de Oxford, na Inglaterra. Juma
era mascote do Centro de Instrução de Guerra na Selva, o CIGS do
Exército Brasileiro, em Manaus. Cecil foi morto por um dentista
americano privilegiado. Juma foi morta por militares brasileiros. Por
outro lado, Juma está duplamente associada ao evento esportivo mais
popular do mundo: foi morta ao participar da cerimônia de passagem da
tocha olímpica, e a mascote da Olimpíada do Rio 2016 é a Ginga,
justamente uma onça-pintada.
Mesmo guardadas as proporções, as reações causadas pela morte de Juma
em amplos setores da sociedade, assim como no caso Cecil, foram
notáveis e têm o potencial de se reverterem em algum benefício.
O caso
Cecil mostra que comoção popular pode ser convertida em apoio concreto à
causa animal e conservacionista. Mas revela também que entre o
interesse na Juma expressado por milhares de pessoas e o impacto
positivo na qualidade de vida de animais em cativeiro, na conservação de
espécies e na relação entre pessoas e fauna silvestre, existe um
caminho longo e complexo, em que diferentes elementos – indivíduos,
redes sociais, imprensa – cumprem papéis vitais.
O momento mais
importante da história da conservação do leão africano não se deve a
nenhuma descoberta científica empolgante ou política pública inovadora,
mas às pessoas comuns e à internet! Foi por meio da imprensa e das redes
sociais que o fenômeno Cecil foi coletivamente construído. Portanto,
entender o comportamento das pessoas envolvidas deveria ser uma
prioridade em casos como o de Cecil e Juma.
Teorias e métodos das
ciências sociais, como os que visam entender, prever e mudar
comportamentos humanos a partir de fatores como sentimentos, motivações e
valores, devem contribuir na elaboração de estratégias efetivas de
envolvimento público e de “marketing social”: por exemplo, como
sensibilizar os centenas de milhares de visitantes que virão para a Rio
2016 e fazer com que doem para projetos de conservação da onça-pintada.
Se no passado a coleta dos dados sociais necessários nesse tipo de
empreitada dependia de entrevistas pessoais ou da boa vontade de
voluntários em preencher questionários, hoje os pesquisadores têm acesso
em tempo quase real a uma quantidade virtualmente infinita de
informação social útil no chamado big data.
Métodos como a mineração de
textos e mineração na web, análise de redes sociais, análises de
sentimento, aprendizagem de máquina e visualização de dados formam o
campo emergente e promissor das “ciências sociais computacionais”
(e-social sciences), ainda pouco explorado por profissionais da vida
silvestre.
Um exemplo de ferramenta gratuita e simples de análise de big
data é o Google Trends, que mostra a variação temporal e espacial do
interesse da sociedade em um tema específico, medido a partir do volume
de buscas (veja figura).
Volume
de busca segundo o Google Trends dos termos “Cecil” (linha azul) e
“Juma”
(linha vermelha) no mundo e no Brasil. Os picos estão
relacionados às mortes de
Cecil e Juma. Mapas mostram a variação nas
buscas de “Cecil” no mundo e de “Juma”
no Brasil: cores mais escuras
denotam maior volume de busca.
Cientes da típica efemeridade dos fenômenos da internet, os
pesquisadores da WildCRU estão buscando maneiras de sustentar por tanto
tempo quanto possível o interesse e o apoio do público, e transformar o
“Momento Cecil” em “Movimento Cecil”. O “Momento Juma” talvez ainda
esteja por vir, com a Rio 2016.
A onça-pintada é o animal mais conhecido
e carismático da fauna brasileira e símbolo das olimpíadas no Brasil.
Nunca na história das olimpíadas as pessoas estiveram tão conectadas.
Nunca a internet teve tanto poder. Diante desse cenário, a morte de Juma
criou a maior oportunidade de todos os tempos para o envolvimento
popular na pesquisa e conservação da onça-pintada e da fauna brasileira
em geral.
Até que a chama olímpica se apague ao final dos jogos,
saberemos um pouco mais sobre o destino de Juma; se morreu em vão e vai
ser esquecida, juntando-se ao seu companheiro de Caatinga, o tatu-bola
Fuleco, mascote da infame Copa do Mundo de 2014, ou se vai fazer
história ao lado do primo rico Cecil, ajudando a agregar ao legado das
olimpíadas um futuro em que nossa fauna silvestre recebe o respeito que
merece.