(BBC Brasil) Um dos mais importantes juristas do país, o advogado e professor de
Direito da USP Miguel Reale Jr. exerceu influência num dos momentos mais
importantes da história recente do Brasil, ao ajudar a redigir a
petição de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em
1992.
Nesta terça-feira (26), ele volta aos holofotes como redator de outra
petição –a ser entregue ao procurador-geral da República, Rodrigo
Janot–, que acusa a presidente da República, Dilma Rousseff, de crimes
contra as finanças públicas e de falsidade ideológica.
Ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, Reale Jr.
acompanha a cúpula do PSDB há décadas e tem manifestado fortes críticas
ao governo, dizendo que Dilma deveria renunciar ao cargo, embora tenha
aconselhado os tucanos a não darem prosseguimento ao pedido de impeachment.
"Não foi um recuo. Foi uma questão de estratégia, de saber qual era o
melhor caminho neste instante. Muito pelo contrário, o processo criminal
é mais grave do que o impeachment", disse em entrevista à BBC Brasil.
A base da acusação são as "pedaladas fiscais". Em auditoria realizada
pelo Tribunal de Contas da União (TCU), apontou-se que, no ano passado, o
governo atrasou repasses para bancos públicos, como a Caixa Econômica
Federal e o Banco do Brasil para o pagamento de benefícios sociais como
Bolsa Escola e Bolsa Família.
Os bancos pagam em dia, e cobraram juros, o que configuraria empréstimo
de banco público ao Tesouro, prática proibida pela Lei de
Responsabilidade Fiscal.
Veja os principais trechos da entrevista:
BBC BRASIL- A pedido do PSDB, em seu parecer o senhor não identificou
subsídios jurídicos para um pedido de impeachment, mas, nesta
terça-feira, os partidos de oposição entram com pedido de ação penal por
crime comum, redigido pelo senhor, contra a presidente Dilma Rousseff.
Caberá ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, arquivar ou
enviar o pedido ao STF. Como se deu essa guinada de estratégia?
Miguel Reale Jr. - Diante da complexidade e a chance de
arquivamento de um pedido de impeachment, nos atentamos para a
possibilidade da ação por crime comum, presente no Código Penal. Por
isso todos os partidos de oposição estão entrando nesta terça-feira com
um pedido para apuração da responsabilidade da presidente da República
por crime comum, que não tem o obstáculo de só poder ter ocorrido no
mandato atual da presidente. Estamos falando das "pedaladas fiscais"
como base da acusação nesta petição.
A população talvez não se dê conta da importância desses fatos, mas as
"pedaladas" impactaram as finanças públicas e é o controle das finanças
públicas que impede a inflação e a estagnação econômica. E houve a mais
absoluta irresponsabilidade, porque ao não ter dinheiro para cumprir com
seus compromissos mais importantes, como Bolsa Família, Seguro
Desemprego e Minha Casa, Minha Vida, o governo se valeu de empréstimos
que contraiu com as entidades financeiras que o próprio governo dirige, o
que já é crime por si só, pois a lei proíbe isso.
Tudo isso prejudicou as contas públicas, e foi maquiado, caracterizando
também um crime de falsidade ideológica ao deixar-se registrar esses
empréstimos como despesas, criando assim um superavit primário. Foi um
superavit fictício.
Isso permitiu dizer, na campanha eleitoral do PT, que tudo corria bem, e
que o país seria alvo de investimentos e de crescimento do PIB, sem
inflação. E o que aconteceu foi exatamente o contrário. A petição se
baseia no artigo 359, de crimes contra as finanças públicas, e no artigo
299, de falsidade ideológica, ambos do Código Penal. A população tem
que se conscientizar de que essas "pedaladas fiscais" não são um mero
problema contábil, e sim um problema muito próximo.
Entre os movimentos sociais pró-impeachment há críticas ao PSDB, por
ter "voltado atrás" ao decidir entrar com uma ação penal comum, e não um
pedido de afastamento da presidente. Como o senhor se posiciona? E por
quê o pedido de ação penal é apresentado ao procurador-geral da
República?
Esta ação de crimes comuns tem na verdade o mesmo efeito do impeachment,
que é o afastamento da presidente de suas funções enquanto o processo é
julgado, caso seja aceito. A acusação será entregue nesta terça-feira
ao procurador, e ele tem a possibilidade de arquivá-la ou encaminhá-la
ao STF. Ao encaminhá-la ao STF, os ministros da Suprema Corte têm que
requerer autorização da Câmara para processar a presidente. Dada a
autorização por votação com dois terços dos parlamentares, a presidente
fica 180 dias afastada do cargo.
Então o efeito é o mesmo, e portanto estão enganados aqueles que dizem
que o PSDB voltou atrás. Nós fizemos aquilo que é o mais aconselhável
neste momento, até porque o impeachment não fica proibido de ser
interposto, mesmo porque novos fatos estão ocorrendo a todo instante,
com os novos desdobramentos dos depoimentos da Operação Lava Jato.
O senhor diria então que o PSDB não recuou após o parecer em que o
senhor desaconselhou o partido a entrar com pedido de impeachment?
Não. Não houve recuo. Foi uma questão de estratégia, de saber qual era o
melhor caminho neste instante. Não é um recuo. Muito pelo contrário, o
processo criminal é mais grave do que o impeachment. Mas como isso ficou
na cabeça das pessoas, vulgarizado, passou-se a achar que era uma coisa
muito simples. Não é bem assim. Para começo de conversa, para o
impeachment, é necessário ter-se o apoio de dois terços da Câmara e do
Senado.
E depois há muita diferença entre chegar ao Congresso um pedido de
impeachment de um partido, ou de um grupo de juristas, e chegar um
pedido do Supremo Tribunal Federal, movimentado pelo procurador-geral da
República. O presidente da Câmara pode arquivar esses pedidos
facilmente. Agora com um requerimento do Supremo, o peso é muito maior
para que ele coloque em votação. Ele pode rejeitar, mas não pode
arquivar. Um pedido do STF para que a presidente seja processada é algo
muito forte.
Quais devem ser as chances reais deste pedido de investigação da
presidente da República ser aceito e começar a tramitar em Brasília?
Veja bem, procurando ter um distanciamento do trabalho que eu mesmo
revisei, eu acho que a petição de representação por crime contra a
presidente está muito bem fundamentada. Não se trata de algo político.
Não é uma peça política. Trata-se de uma peça técnica, jurídica,
fundamentada em laudos e pareceres do Tribunal de Contas da União (TCU).
É uma petição muito consistente, e acho difícil que venha a ser
arquivada pelo procurador.
Caso seja processada, como a presidente se defende das acusações?
Neste caso a presidente apresenta sua defesa, com um advogado, perante a
Câmara dos Deputados, no sentido de evitar que a acusação seja
acolhida. Ela se apresenta e se defende no Congresso, mas quem julga a
ação é o STF. Havendo condenação, não é necessário impeachment, ela é
afastada do cargo de forma permanente tão logo seja proferido tal
veredicto pela Suprema Corte.
Na quarta-feira a marcha do Movimento Brasil Livre (MBL) chega à
Brasília, depois de caminhar por mais de um mês, desde São Paulo. O
grupo é pró-impeachment e diz querer influenciar o Congresso neste
sentido. Como o senhor avalia a atuação destes grupos que insistem no
afastamento da presidente?
O principal movimento social contra o governo, que é o Vem Pra Rua, se
descolou destes que estão andando e passou a apoiar o pedido de ação por
crimes comuns. Não adianta querer o impeachment, tem que avaliar. Falta
informação. Por que insistir num caminho mais difícil? Por que não
deixar o impeachment para um momento em que haja mais elementos? O
impeachment virou palavra da moda.
Eu acho que os movimentos de rua são importantes, mas também não são
donos da verdade. Até porque eles têm várias reivindicações diferentes.
Eu creio que o mais sereno, e que aliás reúne o maior número de pessoas,
é o Vem Pra Rua. Eles entendem que o impeachment deve ser pedido, mas
num momento mais apropriado.
Em 2001, um grupo de juristas de renome, como Dalmo Dallari, Fabio
Konder Comparato e Celso Antônio Bandeira de Melo, entrou com um pedido
de impeachment do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB),
pela suposta compra de votos de parlamentares para aprovação da emenda
da reeleição. Presidente da Câmara na época, o hoje senador Aécio Neves
(PSDB), arquivou o pedido. Como o senhor se posiciona? Se o pedido fosse
hoje, teria chances de ser aceito?
Eu sei que houve esse pedido, mas eu não tenho conhecimento sobre os
detalhes. Essa é a dificuldade de um pedido de impeachment. Por mais
ilustres que sejam os requerentes, há que se ter muitos elementos.
Mas o senhor considera acertada a decisão do então presidente da Câmara de arquivar o pedido?
Nunca se estabeleceu qualquer ligação do presidente com esses fatos. As
indicações são de que haveria governadores interessados nestes votos e
houve dois deputados que foram expulsos por conta deste caso.
Num artigo intitulado "Renúncia Já", publicado no jornal O Estado de
S. Paulo no dia 7 de março, o senhor defende, por uma série de
argumentos, que a presidente abandone o cargo. Embora em seu parecer não
tenha orientado o PSDB a protocolar um pedido de impeachment, no artigo
o senhor diz que "Dilma não tem condições éticas e políticas para
governar". Poderia explicar?
O impeachment é um processo político que tem uma série de dificuldades.
Ele passa primeiro pelo crivo do presidente da Câmara, que já arquivou
30 pedidos de impeachment somente neste ano. Ele pode arquivar, e há que
se perguntar se Eduardo Cunha teria interesse na saída de Dilma ou se
prefere manter a satisfação de mandar por trás. Entraríamos também na
discussão novamente se para o impeachment podem ser levados em conta
atos praticados no mandato anterior. O fato é que este governo está
extremamente desgastado e incapacitado.
O senhor foi um dos juristas que redigiu o pedido de impeachment do
ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Na sua opinião, há
semelhança entre a situação do país e os manifestantes da época com o
contexto atual?
Acho que a única semelhança entre os dois momentos é a situação
econômica bastante difícil para a população. Em 1992, a inflação
retornava e os gastos públicos estavam fora do controle, e isso se
repete agora em 2015.
A crise já deveria ter acontecido em 2014, mas houve todo um esforço de
maquiagem para que não ocorresse. No plano político, são panoramas
completamente diferentes e os fatos que foram objeto do processo de
impeachment de Collor eram diferentes. Collor era um franco-atirador,
não tinha partido político, não tinha uma história política.
Havia uma corrupção generalizada, mas o fato que recaía sobre o
presidente era muito pontual: os contratos firmados por PC Farias e o
esquema montado, o dinheiro depositado nas contas dos envolvidos, para,
dentre outras coisas, pagar as contas da Casa da Dinda.
O senhor vê semelhanças entre os caras pintadas, que foram às ruas em 1992, e os manifestantes pró-impeachment, de 2015?
Em 1992, havia um pedido de impeachment e uma oposição ao Collor, como
existe hoje uma oposição à Dilma e uma oposição ao PT. O próprio Lula
começa a sentir os efeitos de uma redução de popularidade significativa.
Mas há uma diferença primordial entre as duas épocas. Com o PT, o que
está havendo é um imenso esgotamento, mais prolongado. Faz dez anos que o
Roberto Jefferson denunciou o mensalão, e de lá para cá a política
virou caso de polícia. Virou discussão sobre algemas, pulseiras
eletrônicas, delação.
E ainda surgiu o petrolão, o que levou a um cansaço ainda maior da
população com a corrupção. Tudo isso é extremamente desgastante, e a
revolta afeta a todas as classes sociais. Não é apenas uma elite branca,
como se pretendeu dizer. O PT empreendeu uma ocupação do Estado.
As empresas públicas, a Petrobras, o número de empregos que foram
criados na petroleira para acomodar os apadrinhados. Isso se soma ao
processo de estagnação da economia, inflação e desânimo. É um quadro
socialmente muito negativo.