Publicado em julho 20, 2016 por
Redação
“Certo ar de falência, certa estrela
na testa, certa sorte bifronte, certos
objetos entesourados
no fundo de uma mala, certa mágoa
ambígua, o som de certos ambientes, a
impressão incerta de estar numa
travessia sem freios, a defesa
de certos itens na lembrança
caolha, certos
calafrios sem causa, o grau
de inocência e tristeza em certas horas
sombrias, a importância de certos
detalhes, a pergunta não-feita e sua certa
resposta incerta, o brilho
anterior a certos sinais dados
pela palavra espanto”
Leonardo Fróes
[
EcoDebate]
O sociólogo Ulrich Beck, no livro “Sociedade de Risco: rumo a uma outra
modernidade” (Editora 34, 2010) faz uma distinção entre a “modernidade
clássica” (ou primeira modernidade) e a modernidade tardia (ou segunda
modernidade). No primeiro caso, quando prevalecia a “sociedade
industrial” ou “sociedade de classes” a dinâmica econômica e demográfica
girava em torno da questão de como a riqueza socialmente produzida
poderia ser distribuída de forma socialmente desigual e ao mesmo tempo
“legítima”: “O pensamento e a ação das pessoas eram dominados pela
evidência da carência material, pela ‘ditadura da escassez’” (p. 24).
Mas na modernidade tardia surge um novo paradigma da sociedade de
risco. Assim como no século XIX a modernização dissolveu a esclerosada
sociedade agrária estamental e, ao depurá-la, extraiu a imagem
estrutural da sociedade industrial, hoje a modernização dissolve os
contornos da sociedade industrial e, na continuidade da modernidade,
surge uma outra configuração social.
Beck diz: “Enquanto na sociedade industrial, a ‘lógica’ da produção
de riquezas domina a ‘lógica’ da produção de riscos, na sociedade de
risco, essa relação se inverte”. Na reflexividade dos processos de
modernização, as forças produtivas perderam a inocência. O acúmulo de
poder do progresso tecnológico-econômico é cada vez mais ofuscado pela
produção de riscos” (p. 15). Entre os principais riscos da modernidade
radicalizada estão a degradação ambiental e o aquecimento global. Nesses
novos conflitos ecológicos, o que está em jogo são negatividades:
“perdas, devastação e ameaças”.
Faço a revisão acima, para refletir sobre a questão populacional no
quadro atual da modernidade tardia e da sociedade de risco. Em especial,
pretendo questionar a validade do bordão “O desenvolvimento é o melhor
contraceptivo” lançado na Conferência Mundial de População, ocorrida em
1974, na cidade de Bucareste. Como se sabe, este bordão foi lançado para
combater as visões neomalthusianas que defendiam uma aceleração da
transição da fecundidade no mundo e para marcar a defesa do
desenvolvimentismo como forma de solucionar os problemas da pobreza e do
engrandecimento das nações do “Terceiro Mundo”.
Os dois países mais populosos do mundo (China e Índia), com apoio do
demais países do movimento dos “não-alinhados” (inclusive Brasil)
colocaram o crescimento econômico como prioridade da agenda nacional e
internacional. O que a Conferência de População de Bucareste fez foi
reforçar a intenção de mimetizar o processo de desenvolvimento da
sociedade industrial do “Primeiro Mundo”, como se o modelo da primeira
modernidade fosse um evento positivo (a la Augusto Comte) que mereceria
ser globalizado, generalizado e absorvido por todos os países do
Planeta. O desenvolvimento é encarado como a utopia da grandeza
econômica, nacional, cultural, religiosa, militar, etc.
A ideologia desenvolvimentista no campo de população e da acumulação
de capital, em geral, ignora ou subestima os riscos ambientais globais e
minimiza os desafios do crescimento demoeconômico em nome da escalada
do progresso industrial e do avanço das forças produtivas capazes de
dominar e controlar a natureza.
Ou seja, a Conferência de Bucareste (e
de certa forma o ODM, do ano 2000 e o ODS, da agenda 2015-2030)
estabeleceu uma prioridade em relação à transição da economia agrária e
rural para a economia urbano-industrial em detrimento da transição
demográfica. Como disse o Papa Paulo VI, no espírito da encíclica
Humanae Vitae, com seus princípios natalistas e populacionistas:
“Precisamos aumentar o banquete e não diminuir os comensais”.
Mas em 1960, o mundo tinha uma população de 3 bilhões de habitantes.
Em 2016 já são 7,4 bilhões de habitantes. Um aumento de 4,4 bilhões em
apenas 56 anos. A projeção média para o final do século é de 11,2
bilhões de habitantes em 2100. Serão, portanto, acrescidos outros 4
bilhões. Se fosse na lógica da segurança da “modernidade sólida”
(expressão de Bauman) a questão central seria como produzir riquezas e
como repartir os seus frutos.
Mas na lógica da sociedade de riscos, este
crescimento populacional pode simplesmente estar colocando pessoas no
mundo para sofrer com as inseguranças da modernidade tardia e colocar
ainda mais estresse sobre o meio ambiente. Na primeira modernidade cada
indivíduo era uma fonte de capital humano e um potencial consumidor. Na
segunda modernidade, cada nova pessoa é fonte de risco para si e para o
planeta, pois os riscos são globalizados e não possuem fronteiras.
Como mostra Herman Daly (2014), a primeira modernidade avançou sobre
um mundo antropicamente vazio, em que a escala de produção de bens e
serviços era pequena, o elemento escasso ou fator limitante da produção
era o capital manufaturado, enquanto os recursos naturais e ambientais
(capital natural) eram abundantes. Havia milhões de rios e florestas e
nenhum assentamento humano próximo a eles; assim, o custo de
oportunidade do uso desses rios era praticamente zero e o conceito de
externalidade negativa tinha pouca importância.
Mas no mundo cheio – superpovoado, superconsumista e superexplorador
da natureza – em que o tamanho da economia passa a sufocar a capacidade
de sobrevivência do capital natural fica difícil gerar os serviços
ambientais necessários para o bem-estar humano. O custo de oportunidade
no uso dos recursos naturais é alto e o conceito de externalidade
negativa adquire importância elevada.
Não por acaso, neste mundo, os
novos projetos precisam demonstrar que geram muito mais benefícios que
custos. No mundo cheio há excesso, e não escassez, tanto de capital
manufaturado como de mão-de-obra. Nele, o fator limitante da produção
material passou a ser o capital natural, tanto no que se refere à
disponibilidade de recursos naturais e de serviços ambientais (sources)
como em capacidade de acúmulo e absorção de resíduos (sinks).
O panorama descrito acima mostra que as condições econômicas,
sociais, demográficas e ambientais do século XXI são muito diferentes
das condições existentes nos séculos anteriores. A humanidade já
provocou grandes danos nos ecossistemas do Planeta. Desmatou florestas
para explorar a agricultura e a pecuária; represou rios, drenou
pântanos, alterou a paisagem natural e está provocando a 6ª extinção em
massa de espécies.
Revolveu a terra para extrair minérios, foi buscar
petróleo no fundo do subsolo e emitiu gases de efeito estufa que alteram
a química da atmosfera, provocando o aquecimento global e a
acidificação dos solos e das águas. A degradação da biodiversidade e o
aquecimento global são os grandes riscos colocados à civilização e à
vida na Terra.
Desta forma, é preciso repensar o crescimento populacional na
sociedade de risco, de Ulrich Beck, e no mundo cheio, de Herman Daly.
Não faz mais sentido manter taxas positivas de crescimento demográfico,
quando as condições ambientais apresentam taxas negativas e o colapso
ambiental está desenhado no horizonte.
Ou seja, não dá para manter o
progresso humano às custas do regresso ambiental. Existe um sobrecarga
da Terra que nos alertam as metodologias da Pegada Ecológica e das
Fronteiras Planetárias, que mostram que a humanidade já ultrapassou os
limites da sustentabilidade da capacidade de carga Terra. Não dá para
continuar com o crescimento demoeconômico às custas do empobrecimento e
da degradação da biocapacidade do meio ambiente.
A questão demográfica deve ser estudada, atualmente, dentro deste
contexto da sociedade de risco e do mundo cheio, ou seja, numa situação
global de déficit ambiental. Nascem, nos dias atuais, 140 milhões de
bebês todos os anos no mundo. Se este número ficar estável e a esperança
de vida ao nascer alcançar 80 anos, então a população mundial chegaria a
11,2 bilhões de habitantes (140 milhões vezes 80), em 2100, e ficaria
estável em torno deste número se a natalidade e a esperança de vida
permanecessem nesses patamares durante as próximas décadas. Isto
significaria que a população mundial de 6 bilhões de habitantes, em
1999, teria um acréscimo de 5,2 bilhões de pessoas no século XXI.
Acontece que a pegada ecológica já superava a biocapacidade da Terra
em 64% em 2012 (a humanidade está utilizando 1,64 planetas). No ritmo
das últimas décadas chegaríamos em 2100 consumindo mais de 5 planetas.
Seria uma coisa totalmente insustentável, o que poderia levar a
civilização e os ecossistemas ao colapso.
O déficit ambiental ocorre
devido ao aumento do consumo médio (pegada ecológica) dos habitantes do
globo e da diminuição da biocapacidade (devido ao aumento da população).
Evidentemente, são as parcelas mais ricas da população mundial que mais
contribuem para o aumento do consumo. Mas mesmo que houvesse uma
hipotética distribuição justa do consumo, assim mesmo o déficit
permaneceria elevado e os riscos teriam efeitos globais.
Portanto, é preciso diminuir o consumo e a população. Acontece que a
população vai continuar crescendo devido à inercia demográfica. Por
conta disto, há quem diga que só dá para mexer no consumo e não na
população. Mas essa visão é fruto de um equívoco. Realmente não dá para
diminuir o tamanho da população imediatamente, mas dá para reduzir desde
já o ritmo de crescimento e determinar, no presente, a queda futura do
decrescimento demográfico.
Portanto, mesmo não dando para diminuir a população imediatamente, dá
para reduzir o ritmo de crescimento. Basta reduzir a natalidade
mundial. Ao invés do nascimento de 140 milhões de bebês todos os anos,
poderia haver uma diminuição da natalidade para 130, 120, 110 ou 100
milhões de nascimentos. Por exemplo, se a natalidade mundial diminuir
para 100 milhões de bebês até 2030 (e ficar neste patamar) e a esperança
de vida subir para 80 anos, então teríamos uma população estável de 8
bilhões ao invés de 11,2 bilhões de habitantes no mundo.
O gráfico acima mostra que o número de nascimentos no mundo passou de
97 milhões de bebês, na média do quinquênio 1950-55, para 140 milhões
na média do quinquênio 2015-20. A projeção média da ONU indica que este
número de nascimentos deve se manter aproximadamente neste nível até o
final do século, gerando uma população de 11,2 bilhões em 2100.
Porém, na hipótese de uma queda mais rápida da natalidade, o número
de nascimentos poderia cair para 70 milhões de bebês até 2100. Se este
número ficar estável e a esperança de vida ficar em 80 anos, então a
população poderia se estabilizar em 5,6 bilhões ao invés dos 11,2
bilhões de habitantes. O número de pessoas sujeitas aos riscos
ecológicos se reduziria pela metade.
Além do mais, a queda da natalidade poderia gerar outros efeitos
benéficos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que existem mais
de 220 milhões de mulheres em período reprodutivo sem acesso aos métodos
de regulação da fecundidade. O número de gravidez indesejada é alto. A
meta # 5B dos ODMs dizia: “Alcançar, até 2015, o acesso universal à
saúde reprodutiva”.
Esta meta não foi alcançada. Agora, os Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS) também colocam como meta a
universalização dos serviços de saúde sexual e reprodutiva até 2030.
Evidentemente, esta procrastinação não é boa para a saúde das mulheres e
nem para os bebês que nascem de uma gravidez indesejada e vão correr
riscos cada vez maiores diante dos desafios econômicos, sociais e
ambientais. Por exemplo, o surto dos casos de microcefalia, diante da
epidemia de zika, poderia ser evitado se houvesse bons serviços de saúde
reprodutiva no país.
Segundo o International Food Policy Research Institute (IFPRI), o
Índice Global da Fome (IGF) apresenta as categorias alarmante e
extremamente alarmante, especialmente naqueles países onde existem altas
taxas de fecundidade. Também as taxas de mortalidade materna são mais
altas onde é menor o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos.
Além
disto, muitas mulheres são vítimas de violência sexual e da segregação
de gênero, o que impede que elas tenham autonomia social e capacidade de
autodeterminação reprodutiva. Além disto, alta dependência demográfica
nas famílias aumenta a competição por alimento entre os filhos, o que
prejudica os mais fracos e necessitados. O fim da gravidez indesejada
ajudaria a reduzir a fome, reduziria os níveis de mortalidade materna e
fortaleceria o bônus demográfico feminino.
Para Beck, a natureza não pode mais ser concebida sem a sociedade e a
sociedade (e a população) não mais sem a natureza. A destruição da
natureza passa “a ser elemento constitutivo da dinâmica social,
econômica e política. O imprevisto efeito colateral da socialização da
natureza é a socialização das destruições e ameaças incidentes sobre a
natureza” (p. 98).
Ou seja, a humanidade já ultrapassou a capacidade de
carga e está explorando o meio ambiente a uma taxa mais alta do que a
capacidade de regeneração. O crescimento ficou deseconômico, como mostra
Herman Daly e o mundo caminha para uma estagnação secular, como mostra
Larry Summers. Neste quadro, seria irresponsabilidade as políticas
públicas continuar apoiando o crescimento demoeconômico.
O mundo precisa de decrescimento pois já ultrapassou a capacidade de
carga do Planeta. Mesmo, em uma situação hipotética em que houvesse uma
justa distribuição de renda no mundo, ainda assim nosso modelo de
produção e consumo seria insustentável. Portanto, não basta combater a
desigualdade é preciso decrescer o tamanho da economia e do impacto
humano sobre o Planeta, pois o problema não é simplesmente o consumo dos
ricos, mas sim o volume do consumo global (Alves, 29/08/2014; Mantilla,
07/07/2016).
Estas ideias não são novas e já foram antecipadas no livro “O
Declínio Próspero” de H. T. Odum, conforme pode ser consultado em Ortega
(2015). Diante da possibilidade do colapso das condições que sustentam a
Economia, a População e o Meio Ambiente em escala planetária, “o livro
coloca a possibilidade de um declínio com prosperidade apesar das
condições desfavoráveis existentes, e oferece ideias para promover a
sustentabilidade e, ao mesmo tempo, cuidar da mitigação das mudanças
climáticas e das mazelas sociais”.
Como escrevi em um outro artigo (Alves, 11/07/2016): “A natureza não
depende da sociedade, a sociedade depende da natureza. O lema do debate
sobre população e desenvolvimento no século XXI deveria ser: menos
gente, menos consumo, menor desigualdade social e maior qualidade de
vida humana e ambiental”. Os direitos humanos devem estar em sintonia
com os direitos ambientais e o bem-estar das espécies não humanas.
Portanto, pode-se considerar o debate entre população, economia e
ambiente com parâmetros diferentes daqueles estabelecidos na velha
dicotomia entre controlismo versus natalismo. Numa perspectiva que
integre os direitos humanos com os direitos ambientais, a queda da
natalidade pode ser vista como uma forma de evitar o aumento do
sofrimento humano na sociedade de risco e uma forma de reduzir a
degradação ambiental e a perda de biodiversidade.
Assim, avançar na implementação dos direitos sexuais e reprodutivos é
uma forma de melhorar a qualidade de vida do ser humano, especialmente
para as mulheres que mais sofrem com as relações patriarcais, diminuir
os riscos e a população em risco, e evitar uma catástrofe ecológica nos
tempos do acirramento das externalidades negativas do “mundo cheio” da
hipermodernidade.
Referências:
ALVES, JED.
Dia Mundial de População, #Colabora, RJ, 11/07/2016
ALVES, JED.
Uma distribuição justa da renda e do consumo resolveria a questão ambiental? RJ, Ecodebate, 29/08/2014
ALVES, JED.
Mundo cheio e decrescimento, RJ, Ecodebate, 03/06/2016
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. Rumo a uma Outra Modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
DALY, Herman.
Economics for a full world, 2014
Diego Mantilla.
Equality and Sustainability: can we have both? Resilience, 07/07/2016
Enrique Ortega.
“O Declínio Próspero: Princípios e Políticas” de Howard e Elisabeth Odum, Laboratório de Engenharia Ecológica da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, 2015
José Eustáquio Diniz Alves,
Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor
titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas
Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE;
Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail:
jed_alves@yahoo.com.br
in
EcoDebate, 20/07/2016
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