O presente trabalho tem por objetivo discorrer acerca das
vaquejadas, “modalidade esportiva” praticada sobretudo no Nordeste
brasileiro, na qual dois vaqueiros a cavalo devem derrubar um boi,
dentro dos limites de uma demarcação a cal, puxando-o pelo rabo.
A polêmica é grande e as correntes de pensamento são conflitantes. O
costume tornou-se objeto amplo de discussão entre aqueles que exploram
esse tipo de empreendimento e as entidades protetoras dos animais.
Os defensores das vaquejadas alegam que ela é um elemento arraigado
em nossa cultura, amparada pelo disposto no art. 215, § 1º, da
Constituição Federal, que diz que “o Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional,
e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais” e que “o Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional”, além de servir de
atrativo para o incremento do turismo, movimentando a economia local,
com a geração de vários empregos sazonais.
Em sentido contrário, temos o art. 225, § 1º, VII, segundo o qual
incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma
da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.
Assim é que se faz necessário um estudo mais aprofundado do tema, a
fim de responder as seguintes indagações: a vaquejada é uma manifestação
das culturas populares, amparada pelo disposto no art. 215, § 1º, da
Constituição Federal? A vaquejada é uma prática que submete os animais à
crueldade, os expondo a maus-tratos, vedada pelo art. 225, § 1º, VII,
da Constituição Federal? A prática da vaquejada é ilegal e
inconstitucional?
Dessa forma, busca-se mostrar que as vaquejadas são práticas ilegais e
inconstitucionais, nas quais os animais são submetidos a abusos,
crueldade e maus-tratos, realizadas sob o falso véu de manifestações das
culturas populares, devendo ser coibidas com rigor pelo Poder Público e
pela coletividade, conforme o disposto no art. 225, § 1º, VII, da
Constituição Federal e demais leis ou atos legais de caráter ambiental.
VAQUEJADAS
Considerações gerais acerca das vaquejadas
A vaquejada é uma “modalidade esportiva” praticada sobretudo no
Nordeste brasileiro, na qual dois vaqueiros a cavalo devem derrubar um
boi, dentro dos limites de uma demarcação a cal, puxando-o pelo rabo.
Vence a dupla que obtiver maior número de pontos.
Originou-se da necessidade de reunir o gado que era criado solto na
mata na época dos coronéis. Conforme José Euzébio Fernandes Bezerra
(2007, on line):
“Na verdade, tudo começou aqui pelo Nordeste com o Ciclo dos Currais.
É onde entram as apartações. Os campos de criar não eram cercados. O
gado, criado em vastos campos abertos, distanciava-se em busca de
alimentação mais abundante nos fundos dos pastos.
Para juntar gado
disperso pelas serras, caatingas e tabuleiros, foi que surgiu a
apartação.
Escolhia-se antecipadamente uma determinada fazenda e, no dia marcado
para o início da apartação, numerosos fazendeiros e vaqueiros
devidamente encourados partiam para o campo, guiados pelo fazendeiro
anfitrião, divididos em grupos espalhados em todas as direções à procura
da gadaria.
O gado encontrado era cercado em uma malhada ou rodeador, lugar mais
ou menos aberto, comumente sombreado por algumas árvores, onde as reses
costumavam proteger-se do sol, e nesse caso o grupo de vaqueiros se
dividia. Habitualmente ficava um vaqueiro aboiador para dar o sinal do
local aos companheiros ausentes. Um certo número de vaqueiros ficava
dando o cerco, enquanto os outros continuavam a campear. Ao fim da
tarde, cada grupo encaminhava o gado através de um vaquejador, estrada
ou caminho aberto por onde conduzir o gado para os currais da fazenda.
O gado era tangido na base do traquejo, como era chamada a prática ou
jeito de conduzi-lo para os currais. Quando era encontrado um barbatão
da conta do vaqueiro da fazenda-sede, ou da conta de vaqueiro de outra
fazenda, era necessário pegá-lo de carreira. Barbatão era o touro ou
novilho que, por ter sido criado nos matos, se tornara bravio. Depois de
derrubado, o animal era peado e enchocalhado. Quando a rés não era
peada, era algemada com uma algema de madeira, pequena forquilha
colocada em uma de suas patas dianteiras para não deixa-la correr.
Se o vaqueiro que corria mais próximo do boi não conseguia pega-lo
pela bassoura, o mesmo que rabo ou cauda do animal, e derrubá-lo, os
companheiros lhe gritavam:
– Você botou o boi no mato!”
De início, a vaquejada marcava apenas o encerramento festivo de uma
etapa de trabalho – reunir o gado, marcar, castrar, tratar as feridas,
etc., trabalho essencial dos vaqueiros. Era a “Festa da apartação”, da
separação do gado. Feita a separação, acontecia a vaquejada. São provas
que mostram a habilidade dos peões e vaqueiros na lida com cavalos e
gado.
Por volta de 1940, os vaqueiros de várias partes do Nordeste começaram a tornar público suas habilidades na Corrida do Mourão.
Os coronéis e os senhores de engenho passaram a organizar torneios de
vaquejadas, onde os participantes eram os vaqueiros, e os patrões
faziam apostas entre si, mas ainda não existiam premiações para os
campeões. Os coronéis davam apenas um “agrado” para os vaqueiros que
venciam. A festa se tornou um bom passatempo para os patrões, suas
mulheres e seus filhos.
Com o passar do tempo, as vaquejadas foram se popularizando.
Tornaram-se competições, com calendário e regras bem definidas. Viraram
“indústrias” milionárias, que oferecem verdadeiras fortunas em prêmios.
Hoje, há dezenas de parques de vaquejada no Nordeste. Vaqueiros de
todas as partes se reúnem para as disputas, pela glória e pelos prêmios,
cada vez mais atrativos.
De acordo com Cláudia Magalhães (2007, on line):
“Embora não haja um estudo que contabilize os recursos envolvidos
durante a realização do esporte, a estimativa, segundo Egilson Teles,
apresentador do Programa Vaquejada, da TV Diário, é que cada evento
envolve somas que podem chegar a R$ 500 mil.
Em Santa Quitéria, por exemplo, conforme o vice-prefeito e
organizador da vaquejada do Município, Chagas Mesquita, a etapa
realizada no período de 24 a 26 último no Parque Arteiro Lobo de
Mesquita, envolveu cerca de R$ 250 mil em recursos. O evento reuniu
cerca de 500 vaqueiros divididos em 100 equipes do Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba e Rio de Janeiro, além de 350 bois e 300 cavalos. Em
premiação foram distribuídos R$ 22 mil para os 20 primeiros lugares e
mais uma moto Honda e R$ 3 mil para o grande vencedor do evento.”
As vaquejadas e a proteção das manifestações das culturas populares
Dispõe a Constituição Federal de 1988, em seu art. 215, § 1º, que “o
Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a
valorização e a difusão das manifestações culturais” e que “o Estado
protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional”.
Segundo Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2007, p. 238), “ao se tutelar
o meio ambiente cultural, o objeto imediato de proteção relacionado com
a qualidade de vida é o patrimônio cultural de um povo”.
De acordo com o Decreto-Lei nº. 25, de 30 de novembro de 1937, em seu
art. 1º, “constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o
conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação
seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis
da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico, bibliográfico ou artístico”.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, recepcionou o
Decreto-Lei nº. 25/37, e em seu art. 216 conceitua como patrimônio
cultural “os bens de natureza material ou imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de
criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
Desse modo, para que um bem seja visto como patrimônio cultural é
necessária a existência de nexo vinculante com a identidade, a ação e a
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Uma
vez reconhecido como patrimônio cultural, integra a categoria de bem
ambiental e, em decorrência disso, difuso (FIORILLO, 2007, p. 239).
Conforme o antropólogo cultural Luigi Satriani (1986, p. 41), a
cultura é “o complexo dos modos de vida, dos usos dos costumes, das
estruturas e organizações familiares e sociais, das crenças do espírito,
dos conhecimentos e das concepções dos valores que se encontram em cada
agregado social: em palavras mais simples e mais breves, toda atividade
do homem entendido como ser dotado de razão”.
Cultura popular, como o próprio nome já diz, é a cultura do povo. É o
resultado de uma interação contínua entre as pessoas pertencentes a
determinadas regiões. Seu conteúdo é específico daquela localidade.
Nasceu da adaptação do homem ao ambiente onde vive e abrange inúmeras
áreas de conhecimento, aí incluídos suas crenças, artes, moral, leis,
linguagem, idéias, hábitos, tradições, usos e costumes, etc. Esses
conjuntos de práticas e tradições são expressados através de festas,
mitos, lendas, crendices, costumes, danças, superstições e outras tantas
formas de manifestações artísticas do povo desta região, como na
alimentação, na linguagem, na religiosidade e na vestimenta.
Assim, a cultura popular é a expressão mais legítima e espontânea de
um povo. Ao mesmo tempo em que carrega em si elementos fundadores de uma
cultura, resulta de um constante processo de transformação, assimilação
e mistura.
Os defensores das vaquejadas alegam que ela é um elemento arraigado em nossa cultura.
A festa da vaquejada era, segundo Câmara Cascudo (1976, p. 17), a
data festiva “mais tradicional do ciclo do gado nordestino, uma exibição
de força ágil, provocadora de aplausos e criadora de fama”.
De acordo com Eduardo Mota Gurgel (2007, on line), prefeito de Maranguape:
“[…] a vaquejada, que nasceu da cultura do pastoreio, mantém vivos a
tradição e o costume do povo nordestino, numa exaltação à figura do
vaqueiro. É hoje conhecida em todo o mundo, estimulando o incremento do
turismo na região. A Vaquejada do Itapebussú confraterniza, há 61 anos,
vaqueiros e o povo da região. Por seu porte e organização tem alcançado
uma dimensão nacional e internacional, movimentando – sobremaneira – a
economia local, com a geração de vários empregos sazonais.”
Para o professor Eriosvaldo Lima Barbosa (2007, on line):
“A vaquejada não só lembra um costume passado como celebra a própria
sociedade da qual é parte; fala dessa sociedade, de seus valores e de
seus códigos de sociabilidades; fala do homem que a pratica, como a
pratica e com que propósitos.
A nova vaquejada, praticada nos parques de vaquejada a partir desses
novos elementos, não significa a morte da tradição, como muitos podem
supor, mas a sua reinvenção, a sua recriação como é característico dos
processos culturais em todos os tempos.
Entendemos a vaquejada como uma teia tecida com elementos tanto do
passado como de elementos novos, exigidos pelas demandas do presente. Ou
seja, o popular da vaquejada não se encontra em suas antiguidades
vulgares, mas na engenhosidade de sua transformação e atualização.
A vaquejada, hoje, não é ‘sobra do passado’ (‘sobrevivência’) e nem
pode ser vista como uma ‘invenção’ atribuída com exclusividade ao
presente, pois como sabemos, dependendo de demandas específicas de cada
cultura e de cada época, determinadas práticas culturais podem
encontrar, no passado, a legitimidade de que precisam para redefinir
importantes práticas no presente, como é o caso da vaquejada. Por essa
razão, a vaquejada, como expressão cultural popular, não pode ser vista
como objeto de museu do folclore, presa aos fósseis do passado, mas como
manifestação cultural cujas camadas populares continuam usando matérias
e formas de expressão novas, submetendo a vaquejada a novos
condicionamentos sociais, econômicos e culturais.”
Assim, a vaquejada é uma manifestação cultural nordestina, uma peleja
entre o homem e o boi, que difunde a cultura da região. Dessa forma,
está amparada pelo disposto no art. 215, § 1º, da Constituição Federal.
Em sentido contrário, o acórdão que trata da matéria referente à farra do boi:
“Garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais,
incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde
da observância da norma do art. 225, § 1º, inciso VII, da CF, que veda
prática que acabe por submeter os animais à crueldade.” (STF – Min.
Marco Aurélio – Recurso Extraordinário nº. 153.531-8/SC).
A esse respeito, o professor Judicael Sudário de Pinho, Juiz Federal do Trabalho no Estado do Ceará:
“O acórdão que trata da matéria referente à farra do boi, costume
típico do Estado de Santa Catarina, demonstra o completo desprezo do
critério formal pelo Supremo Tribunal Federal na sua atividade
interpretativa da Constituição. Numa ação civil pública, a nossa Corte
Suprema considerou que a prática da farra do boi é danosa ao meio
ambiente, especialmente porque se verificariam requintes de crueldade.
Sem qualquer discussão quanto ao mérito da questão, importa muito mais
examinar o voto vencido do Ministro Maurício Corrêa, que levanta uma
questão de forma, afirmando não ser possível, em sede de recurso
extraordinário, apreciar a questão, uma vez que não existe uma farra do
boi padrão, importando, pois, a questão em matéria de prova, cujo exame,
pela reapreciação, é inviável em sede de recurso extraordinário.
O
Supremo Tribunal Federal, desprezando esse aspecto formal da maior
significação na sua jurisprudência, julgou o conflito, optando pelo
direito de proteção ao meio ambiente em detrimento do direito à proteção
cultural. Não se trata aqui de ser a favor de uma ou de outra proteção,
mas apenas de analisar o critério utilizado pelo Supremo Tribunal
Federal de desprezar qualquer questão formal e proibir a farra do boi.
Ao
desconsiderar a tradição de seus julgados, o Supremo Tribunal Federal,
induvidosamente, avançou em matéria de interpretação ao fazer prevalecer
uma regra de direito ambiental sobre uma outra veiculadora de um
direito cultural.” (grifo nosso).
Paulo Affonso Lemes Machado (1998, p. 54), considerado autoridade
máxima em direito ambiental no Brasil, em comentário ao art. 32 da Lei
nº. 9.605/98, diz que:
“Atos praticados ainda que com caráter folclórico ou até histórico,
estão abrangidos pelo art. 32 da Lei nº. 9.605/98, e devem ser punidos
não só quem os pratica, mas também, em co-autoria, os que os incitam, de
qualquer forma.”
Diverso não é o entendimento dos Desembargadores Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas (2000, p. 93):
“Por vezes esse tipo penal adquire maior complexidade. É o caso da
chamada farra do boi, praticada em Santa Catarina pela população de
origem açoriana. Argumenta-se que se está aí a defender o meio ambiente
cultural. Sem razão, contudo, pois a cultura não pode ser exercida com o
sofrimento dos animais, no caso os bois. Os rodeios ou vaquejadas são
outro exemplo. Movimentam interesses econômicos de vulto, mas
freqüentemente são praticados com crueldade contra os animais. Tal
prática deve ser fiscalizada e reprimida, quando necessário.”
Por isso, Mario Freire Ribeiro Filho (2007, on line), superintendente da SEMACE, diz que:
“Apesar da vaquejada se apresentar como manifestação cultural
arraigada de elementos históricos e sociais, hoje não mais se verifica
como aceitável perante a ordem jurídica em virtude dos maus tratos
submetidos aos animais, constituindo em crime com base no art. 32 de Lei
Federal nº. 9.605/98. Contudo, em face da relevância sócio-cultural
dessa prática, devem-se buscar formas, inclusive já existentes, de
compatibilizá-la com a lei ambiental mediante a utilização de medidas
mitigadoras que garantam a integridade dos animais, devendo prevalecer
sempre o bom senso.”
As vaquejadas e a proteção da fauna
Em sentido amplo, entende-se por fauna o conjunto das espécies
animais que vivem em um espaço geográfico ou em um determinado habitat.
Conforme a lição de Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues (apud FIORILLO, 2007, p.121):
“Uma tarefa das mais complexas no âmbito do Direito Ambiental é o
estudo da fauna, pelo simples fato de que tais bens possuem uma atávica
concepção de natureza privatista, fortemente influenciada pela nossa
doutrina civilista do começo deste século, que os estudava
exclusivamente como algo que poderia ser objeto de propriedade, no exato
sentido que era vista como res nullius.”
O Código Civil de 1916 considerava a fauna res nullius ou res
derelicate, conforme o disposto nos arts. 592 à 602 (Da Aquisição e
Perda da Propriedade Móvel). Res nullius é a coisa sem dono, que não
pertence a ninguém. Resderelictae é a coisa abandonada, sem dono.
Com a crescente conscientização acerca da importância da fauna para o
equilíbrio ecológico, essa concepção foi modificada. O equilíbrio
ecológico é um requisito para a manutenção da qualidade e das
características essenciais do ecossistema ou de determinado meio. Não
deve ser entendido como situação estática, mas como estado dinâmico no
amplo contexto das relações entre os vários seres que compõem o meio. A
destruição do equilíbrio ecológico causa a extinção de espécies e coloca
em risco os processos ecológicos essenciais. Daí a sua importância.
A esse respeito, mais uma vez recorremos à Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2007, p. 121):
“Buscando resguardar as espécies, porquanto a fauna, através da sua
função ecológica, possibilita a manutenção do equilíbrio dos
ecossistemas, é que se passou a considerá-la como um bem de uso comum do
povo, indispensável à sadia qualidade de vida. Com isso, abandonou-se
no seu tratamento jurídico o regime privado de propriedade,
verificando-se que a importância das suas funções reclamava uma tutela
jurídica adequada à sua natureza.
Dessa forma, em razão de suas características e funções, a fauna recebe a natureza jurídica de bem ambiental.” (grifo nosso).
A legislação distingue entre fauna silvestre brasileira, fauna
silvestre exótica e fauna doméstica. Conforme o disposto na Portaria nº.
29, de 24 de março de 1994, em seu art.
2º, considera-se Fauna
silvestre brasileira, todas as espécies que ocorram naturalmente no
território brasileiro, ou que utilizem naturalmente esse território em
alguma fase de seu ciclo biológico; Fauna silvestre exótica, todas as
espécies que não ocorram naturalmente no território brasileiro,
possuindo ou não populações livres na natureza; Fauna doméstica, todas
as espécies que através de processos tradicionais de manejo tornam-se
domésticas possuindo características biológicas e comportamentais em
estreita dependência do homem.
A Lei nº. 5.197 de 3 de janeiro de 1967 dispõe sobre a proteção à
fauna, e em seu art. 1º, caput, diz que “os animais de quaisquer
espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem
naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como
seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado,
sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou
apanha”.
Todavia, esse artigo tratou de restringir o conteúdo da fauna, resumindo o objeto de proteção da lei à fauna silvestre.
A Constituição Federal de 1988, no seu art. 225, § 1º, VII, ao aludir
à proteção da fauna, não delimitou o seu conceito. Segundo esse
dispositivo, incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora,
vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à
crueldade.
Dessa forma, a Constituição Federal de 1988, ao prescrever a
incumbência do Poder Público e da coletividade de proteger a fauna,
fê-lo de forma ampla, não restringindo a tutela à fauna silvestre
apenas. Pelo contrário, “previu e adotou, de forma expressa, clara e
inconfundível, a correta expressão ‘os animais’ ou seja, todos os
animais são constitucional e legalmente protegidos” (CUSTÓDIO, 1998, p.
60-92).
Ainda nesse sentido, Jacqueline Morand-Deviller (apud PRADO, 2001, p. 69):
“A tutela dos animais domésticos e selvagens obedece a finalidades
diferentes. Trata-se de preservar os primeiros de atos de crueldade e do
abandono e de proteger os segundos de uma captura, destruição,
comercialização desenfreada e que os tornam particularmente
vulneráveis.”
Assim, em nível Constitucional, todos os animais foram igualmente
tutelados, independentemente da espécie a que pertençam ou do habitat em
que vivam. Noutro dizer, todos os espécimes integrantes da fauna
brasileira, “nativos ou não, independentemente de qualquer
classificação, espécie ou categoria, de sua ferocidade, nocividade ou
mansidão, constituem bens ambientais integrantes dos recursos ambientais
juridicamente protegidos” (CUSTÓDIO, 1998, p. 60-92).
Diante do exposto, fica evidente a importância da fauna para a
manutenção do equilíbrio ecológico, o que é imprescindível à
sobrevivência das espécies, inclusive do homem.
O Decreto Federal nº. 24.645/34, que ainda está em vigor, em seu art.
3º, I, diz que “consideram-se maus tratos praticar ato de abuso ou
crueldade em qualquer animal”.
O art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, dispõe que “todos tem
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserva-lo para as
presentes e futuras gerações”, e que “para assegurar a efetividade desse
direito, incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas,
na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº. 9.605/98), em seu art. 32,
considera crime contra a fauna “praticar ato de abuso, maus-tratos,
ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos
ou exóticos”, cuja pena é de “detenção, de três meses a um ano, e
multa”.
Assim, diversas disposições legais, previstas na Constituição Federal
e demais leis ou atos legais de caráter ambiental, têm por objetivo a
proteção da fauna.
Nas vaquejadas dois vaqueiros correm a galope, cercando um animal em
fuga, que tem sua cauda tracionada e torcida para que tombe ao chão.
Transcrevemos o que diz Policarpo Feitosa (apud BEZERRA, 2007, on line):
“Inclinados, quase deitados sobre o cavalo, cujo pescoço cingem com
um braço, a outra mão estirada para diante e para baixo, já meio fechada
como um gancho, buscam na corrida desenfreada o momento propício e
rapidíssimo em que, segura a extremidade da cauda enrolada na mão, a rês
esteja, entre um e outro contacto com a terra, de patas no ar.
Então,
firmando-se nos estribos, executam um movimento de tração, em que o
jeito e a presteza são mais valiosos que a força. Desviando
repentinamente da direção seguida e faltando-lhe o apoio do solo, o
animal “arrastado” faz meia volta e rola desamparado por terra,
descrevendo com as patas, se a derrubada a perfeita, um semicírculo no
ar.”
Conforme parecer técnico emitido em 25 de julho de 1999 pela Dra. Irvênia Luiza de Santis Prada (apud LEITÃO, 2002, p. 23):
“Ao perseguirem o bovino, os peões acabam por segurá-lo fortemente
pela cauda (rabo), fazendo com que ele estanque e seja contido. A cauda
dos animais é composta, em sua estrutura óssea, por uma seqüência de
vértebras, chamadas coccígeas ou caudais, que se articulam umas com as
outras. Nesse gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo
rabo, é muito provável que disto resulte luxação das vértebras, ou seja,
perda da condição anatômica de contato de uma com a outra. Com essa
ocorrência, existe a ruptura de ligamentos e de vasos sangüíneos,
portanto, estabelecendo-se lesões traumáticas.
Não deve ser rara a
desinserção (arrancamento) da cauda, de sua conexão com o tronco. Como a
porção caudal da coluna vertebral representa continuação dos outros
segmentos da coluna vertebral, particularmente na região sacral,
afecções que ocorrem primeiramente nas vértebras caudais podem
repercutir mais para frente, comprometendo inclusive a medula espinhal
que se acha contida dentro do canal vertebral.
Esses processos
patológicos são muito dolorosos, dada a conexão da medula espinhal com
as raízes dos nervos espinhais, por onde trafegam inclusive os estímulos
nociceptivos (causadores de dor). Volto a repetir que além de dor
física, os animais submetidos a esses procedimentos vivenciam sofrimento
mental.
A estrutura dos eqüinos e bovinos é passível de lesões na ocorrência
de quaisquer procedimentos violentos, bruscos e/ou agressivos, em
coerência com a constituição de todos os corpos formados por matéria
viva. Por outro lado, sendo o “cérebro”, o órgão de expressão da mente, a
complexa configuração morfo-funcional que exibe em eqüinos e bovinos é
indicativa da capacidade psíquica desses animais, de aliviar e
interpretar as situações adversas a que são submetidos, disto resultando
sofrimento.”
Abusos também ocorrem antes de o animal ser solto na arena. Para que o
bovino, manso e vagaroso, adentre a arena em fuga, o animal é confinado
em um pequeno cercado, onde é atormentado, encurralado, espancado com
pedaços de madeira, e submetido a vigorosas e sucessivas trações de
cauda.
A natureza cruel das vaquejadas é atestada, ainda, pelas Regras das
vaquejadas (2007, on line), onde se lê que “numa pista de 160 metros de
comprimento com variações em sua largura, demarca-se uma faixa aonde os
bois deverão ser derrubados. Dentro deste limite será válido o ponto,
somente quando o boi, ao cair, não queimar a cal (material usado para
demarcar as faixas),
isso acontece quando o boi é puxado dentro
da faixa e mostra as quatro patas antes de levantar-se ainda dentro das
faixas de classificação. O boi que ficar de pé, em cima da faixa receberá nota zero de imediato” e que “o boi será julgado de pé.
Deitado, somente caso não tenha condições de levantar-se” (grifo nosso).
Caudas arrancadas são comuns em vaquejadas. Conforme disposto no
regulamento do “IV Potro do Futuro & IV Campeonato Nacional ABQM –
Vaquejada”, realizado na cidade de Campina Grande – PB (2007, on line):
“REGULAMENTO DO IV POTRO DO FUTURO ABQM DE VAQUEJADA
Disposições Gerais para o IV Potro do Futuro de Vaquejada
[…]
E – Caso o rabo ou a maçaroca do boi parta-se no momento da queda, e o
boi não cair, o mesmo será julgado de acordo com os critérios abaixo,
tanto na fase de classificação como na fase final:
– Primeira quebra: caso o boi não caia, a dupla competidora terá direito a um boi extra;
– Segunda quebra: o boi será julgado, caindo ou não; a dupla competidora não terá direito a boi extra;
– Terceira quebra: a dupla competidora terá nota zero, independente do julgamento do boi.”
De acordo com Geuza Leitão (2007, on line), presidente da UIPA –
União Internacional Protetora dos Animais, a vaquejada é crueldade
contra animais:
“É crime previsto no Art. 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei
9605/1998) e Art. 225, § 1º, VII da Constituição Federal. Estudos da
UIPA e pareceres de médicos veterinários dão conta da violência e dor
sofridos pelos animais numa vaquejada. Contudo, não são divulgados para o
publico os métodos cruéis utilizados para ocasionar a corrida dos bois,
mas sabe-se de seu confinamento prévio por longo período, a utilização
de açoites e ofendículos, a introdução de pimenta e mostarda via anal,
choques elétricos e outras práticas caracterizadoras de maus-tratos.”
Segundo a veterinária Gerlene Castelo Branco (2007, on line), presidente do Sindicato dos Médicos Veterinários do Ceará:
“De acordo com a Lei nº. 9.605, de 1998, artigo 32, considera-se
crime de crueldade, este tipo de tratamento dado aos animais em
vaquejada. Os animais, como os seres humanos, são dotados de emoções,
como amor, raiva, ansiedade, ciúmes, medo e principalmente a dor. Cadê a
superioridade dos seres humanos? Onde está o respeito ao próximo e aos
animais? Coloquem-se só por um minuto no lugar deles! Existem outras
formas de se divertir. Pois numa diversão todos deveriam sair ganhando!”
Afirma a Procuradora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio ao Meio Ambiente (Caomace), Sheila Pitombeira (2007, on line):
“Vaquejada, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, é o
ato de juntar o gado espalhado nos campos para a apartação de reses,
ferra, etc., e devolução aos donos. Ou, torneio onde os vaqueiros
demonstram suas habilidades na derrubada de novilhos. Melancolicamente, a
competição diverte exatamente na demonstração das habilidades do
vaqueiro (peão) em derrubar e arrastar o animal, exibindo-se ao público
como exímio dominador. Se essa conduta caracterizar prática de abuso
(excesso) e maus-tratos (castigos imoderados), talvez seja melhor não
mais consultar os dicionários.”
Assim, a ocorrência de crueldade contra os animais é indissociável da prática. Porém, medidas estão sendo tomadas.
A 18ª Vaquejada de Serra do Ramalho (BA) foi cancelada por
determinação da Justiça. O juiz Roberto Wolf determinou o impedimento da
vaquejada por causa dos maus-tratos que os animais sofrem neste tipo de
competição. Ele aceitou o pedido do promotor Beneval Mutim em uma ação
cautelar. O promotor alegou que os animais são constantemente vítimas de
maus-tratos, sofrem luxações, hemorragias internas e se apavoram com os
vaqueiros.
A Promotoria de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios (MPDFT) firmou Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC) com o empresário José Raul Alkmin Leão, proprietário do
Parque do Grupo Leão Vaquejada. Acordo foi motivado por representação
feita pela Associação Protetora dos Animais do Distrito Federal,
ProAnima, entregue ao MPDFT ano passado, e foi estabelecido
especificamente para a festa “O Maior São João de Brasília”, realizada
na cidade satélite Recanto das Emas. De acordo com o documento, para
cada infração cometida, será devida multa de R$ 20 mil.
Pelo acordo firmado, o empresário comprometeu-se a adotar todas as
medidas necessárias para evitar maus-tratos e atos considerados cruéis
aos animais expostos em rodeios, vaquejadas e eventos semelhantes na
área conhecida como Parque de Vaquejada do Grupo Leão.
Os argumentos feitos pela ProAnima na representação são de que
qualquer vaquejada implica, necessariamente, em maus-tratos. Para Simone
de Lima (2007, on line), consultora da ProAnima, “a regra da vaquejada é
lançar um animal em movimento desesperado e laçá-lo ou puxá-lo pelo
rabo. No momento do lançamento ele recebe um solavanco e cai para trás”.
Segundo ela, não existe possibilidade do animal não se ferir neste
processo. “É uma questão de física dos corpos, antes de ser uma questão
de fisiologia. Não se estanca um corpo em movimento, em alta velocidade,
sem lhe provocar lesões”, explica.
“Assim, se é dever do Poder Público a preservação/proteção da fauna,
não pode este tolerar (omissão) e, muito menos “autorizar” (ação), ainda
que por lei, atividade atentatória à fauna”, conforme muito bem
ressaltado pelos Promotores de Justiça Marcos Tadeu Rioli e Fausto
Luciano Panicacci, em agravo de instrumento interposto em face de
decisão que reconsiderou e revogou liminar anteriormente concedida nos
autos do processo nº. 561/05, da 2ª Vara da Comarca de Mococa.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, verifica-se nas vaquejadas um completo
desrespeito pelos animais, o que afronta o disposto no art. 225, § 1º,
VII, da Constituição Federal e demais leis ou atos legais de caráter
ambiental. Dessa forma, são práticas ilegais e inconstitucionais,
realizadas sob o falso véu de manifestações das culturas populares,
devendo ser coibidas com rigor pelo Poder Público e pela coletividade.
Por Thomas de Carvalho Silva