19/01/2017
Por Mario Osava, da IPS –
Sento Sé, Brasil, 19/1/2017 – “Hoje temos internet, televisão. Antes
não tínhamos eletricidade, mas era melhor”, afirmou Lourival de Barros,
um desterrado das centrais hidrelétricas que se multiplicaram pela
geografia do Brasil, principalmente a partir dos anos 1970. Ele foi
expulso de sua casa em Sento Sé no final de 1976. A cidade, de
aproximadamente sete mil habitantes, ficou submersa pela represa de
Sobradinho, pouco mais de um ano depois.
Um
barco sendo reparado nas margem da represa de Sobradinho, com baixo
nível de água devido aos cinco anos da seca que atormenta o interior
semiárido do Nordeste brasileiro. Pode-se ver arbustos submersos pelas
águas represadas do rio São Francisco desde a década de 1970. Foto:
Mario Osava/IPS
Outras três cidades, Casa Nova, Pilão Arcado e Remanso, também
desapareceram sob as águas, junto com dezenas de povoados ribeirinhos,
no norte do Estado da Bahia. No total foram deslocadas 72 mil pessoas,
segundo organizações sociais, ou 59.265, de acordo com a empresa
responsável pelo projeto, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco
(Chesf).
O sacrifício se fez em nome das necessidades energéticas do país e do
desenvolvimento de uma região “irrelevante”, parada no analfabetismo e
com uma economia “de subsistência”, com gente “primitiva” em isolamento,
que teme a mudança, segundo afirmavam os governantes da época, em plena
ditadura militar (1964-1985).
Para reassentar a população de Sento Sé, foi construída uma nova
cidade com o mesmo nome, melhores moradias, incluindo banheiros internos
e serviços como eletricidade e esgoto público, mas “perdemos muito
mais”, contou Barros, pescador de 70 anos, aposentado como trabalhador
rural, com oito filhos, nove netos e três bisnetos. “Tínhamos muito
pescado no rio. Na represa, inicialmente se podia pescar cem quilos por
dia, mas os peixes diminuíram nos últimos 10 a 15 anos, e agora é
difícil conseguir dez quilos, o que só dá para alimentar a família”,
acrescentou à IPS.
“Éramos dois mil pescadores e todos viviam da pesca. Hoje, se há 50
que conseguem isso, é muito”, embora no sindicato estejam inscritos
quase nove mil, muitos para receber o seguro do período de proibição de
pesca para proteger a reprodução dos peixes, afirmou Barros,
acrescentando que “precisam disso”.
O pescador lamenta que os peixes próprios da área tenham desaparecido
e se tenha introduzido no lago artificial outras espécies amazônicas,
inclusive o tucunaré (
Cichla ocellaris), que come os
demais. Barros também se queixa de que sua família dispunha de cinco
terrenos para plantar e ele mesmo tinha uma moenda para fazer farinha de
mandioca, pelos quais não receberam nenhuma indenização. “Perdemos
tudo”, enfatizou.
O
pescador e agricultor aposentado Lourival de Barros, em sua casa na
cidade de Sento Sé, que recebeu como compensação pela perda de sua boa
casa e outros bens na antiga cidade, submersa pela represa de
Sobradinho, há quatro décadas, que tem sepultada sob águas uma saudosa
forma de vida. Foto: Mario Osava/IPS
Até agora, não foram compensados muitos bens e propriedades inundados, afirmou Adzamara Amaral, autora do livro-reportagem
Memórias de Uma Cidade Submersa,
elaborado em 2012 como trabalho final de seu curso de jornalismo na
Universidade do Estado da Bahia. Sua própria família ainda reclama na
justiça indenização por 15 mil hectares registrados como propriedade de
seu avô, uma herança familiar de três séculos, com três casas e áreas de
pomar.
A nova cidade construída para acolher os deslocados foi privada da
alma fluvial, como ocorreu com outras cidades “reconstruídas”. Além dos
peixes, perdeu-se a agricultura típica do lamaçal, que aproveitava as
terras ribeirinhas alargadas na época de estiagem e fertilizadas pelos
sedimentos trazidos pelo rio nas cheias. Ali se plantava muito milho e
feijão entre abril e outubro. Por isso, o rio São Francisco é chamado de
“Nilo brasileiro”, explicou Amaral.
Com a represa, a água avançou para áreas rochosas ou da Caatinga
(bioma exclusivo do Nordeste brasileiro), e o ciclo de baixas e cheias
do rio foi alterado, extinguindo a agricultura típica do período
decrescente das águas. O traslado para a nova Sento Sé, com população
atual de 41 mil pessoas, acentuou o isolamento de sua população, porque,
entre outras razões, duplicou a distância em relação a Juazeiro,
município de 220 mil habitantes que é o polo econômico e educativo do
norte baiano.
Gildalio
da Gama (esquerda), até dezembro secretário de Ambiente do município, e
o reparador de embarcações João Reis, em Sento Sé, cidade onde foram
assentados, quase sem compensação, os moradores da antiga cidade,
deslocados pela hidrelétrica de Sobradinho, no rio São Francisco, no
Nordeste do país. Foto: Mario Osava/IPS
Agora são 196 quilômetros, 50 deles por uma estrada de terra cheia de
buracos, o que dificulta o transporte. Por isso, a empresa Frutimag, de
agricultura irrigada, que empregava 1.800 trabalhadores, interrompeu
suas atividades em Sento Sé. O sacolejar dos caminhões estragava as
uvas, justificou a companhia. “Pavimentar a estrada é fundamental para o
desenvolvimento do município, bem como oferecer ensino técnico e cursos
universitários, o que evitaria o êxodo de jovens que vem reduzindo a
população local nos últimos anos”, pontuou Amaral.
A nova localização da cidade buscou mantê-la perto da margem do lago
mesmo durante as secas, segundo a explicação dada na ocasião. Mas muitos
acreditam que o então prefeito tomou essa decisão para que ficasse
perto de sua fazenda. Agora, a margem da represa de Sobradinho se
afastou cerca de 600 metros de Sento Sé, após cinco anos de seca na
bacia.
“Há lugares em que o refluxo chega a dez quilômetros, como Quixaba,
um povoado próximo”, disse João Reis, ex-metalúrgico de São Paulo de 65
anos, que trabalhou muito tempo na Chesf. Ele vive há 33 anos em Sento
Sé, terra de seus pais, e atualmente conserta embarcações no rio São
Francisco e diz que, com sua terra fértil e as jazidas de mármore e
pedras preciosas, o município tem “grande potencial para prosperar”.
Um
parque eólico ao lado de Sento Sé, onde há no total oito deles, devido
aos bons ventos das mesetas do entorno dessa cidade do Nordeste do
Brasil, que, paradoxalmente, foi deslocada, nos anos 1970, para a
construção em sua antiga localização da maior central hidrelétrica da
região. Foto: Mario Osava/IPS
Para superar o isolamento, seu colega Djalma Vitorino, especialista
em barcos, propõe implantar uma linha de balsas entre Sento Sé e
Remanso, outra cidade reassentada do lado oposto da represa. Cerca de 25
quilômetros, “ou hora e meia de navegação”, separam as duas cidades.
“Ali há um bom hospital para onde levar nossos doentes”, como
alternativa a Juazeiro, que exige mais de três horas de carro,
argumentou à IPS.
Construída entre 1973 e 1979, no meio do rio São Francisco, a
hidrelétrica de Sobradinho tem capacidade para gerar 1.050 megawatts,
graças à represa de 34 bilhões de metros cúbicos em uma área de 4.214
quilômetros quadrados, a maior em superfície e a terceira em volume de
água no Brasil.
Além da geração elétrica, acumular tanta água lhe agrega as funções
de regular o caudal, otimizando a operação de outras sete hidrelétricas
construídas rio abaixo, e abastecer a agricultura irrigada em seus
arredores. Seus impactos sociais se destacaram por inundar uma área
muito povoada na década de 1970, quando reinava a ditatura militar e a
legislação ambiental começava a se desenvolver. Além disso, os
movimentos sociais eram fracos ou estavam ausentes.
Para inundar tanta terra, Sobradinho exigiu a expropriação de 26 mil
propriedades. A Chesf pagou poucas indenizações e de valores muito
baixos, em boa parte porque os “ribeirinhos não tinham títulos de
propriedade ou ignoravam o valor de suas propriedades”, segundo Gildalio
da Gama, de 47 anos, que até dezembro foi secretário do Ambiente de
Sento Sé.
“Qualquer dinheiro era muito para os que sempre tiveram pouco”,
ressaltou Gama, agora professor primário em uma ilha onde vivem seus
pais, a 150 quilômetros da cidade. Seu avô não foi indenizado por suas
terras porque a Chesf não reconheceu a documentação apresentada,
acrescentou à IPS.
Novas hidrelétricas, como Itaparica, inaugurada em 1988 águas abaixo
do São Francisco, cumprem melhor as regras, também pela pressão de
ambientalistas e organizações sociais. Mas os deslocamentos forçados
continuam, gerando conflitos mais ruidosos do que no passado. As
mobilizações cresceram ainda mais contra as hidrelétricas amazônicas,
especialmente a de Belo Monte, gigantesca central com potência de 11.233
megawatts inaugurada em maio de 2016. Envolverde/IPS