domingo, 17 de junho de 2018

O mito da área de proteção ambiental


Para especialistas, número de acres destinados às reservas não reflete numa maior proteção às espécies

Richard Conniff, The New York Times
16 Junho 2018 | 10h00

A história é amplamente celebrada como um dos poucos sucessos na campanha para proteger a vida selvagem que dizemos amar: desde o início dos anos 1990, os governos praticamente dobraram a extensão de terras em áreas de proteção ambiental, com quase 15% dos continentes e talvez 5% dos oceanos reservados agora para a vida silvestre. Entre 2004 e 2014, os países criaram impressionantes 43.000 novas áreas protegidas.
Esses números devem aumentar, conforme os 168 países signatários da Convenção pela Diversidade Biológica de 1993 trabalham para alcançar a meta de 17% da superfície terrestre e 10% de volume marinho protegidos em áreas desse tipo até 2020. E, nesse momento, metas ainda mais ambiciosas devem ser adotadas.

Reservas
Um estudo de 2014 revelou que as áreas protegidas excluem 85% das espécies ameaçadas em todo o mundo. Parque Nacional Glacier, em Montana. Foto: Lauren Grabelle para The New York Times
Parece bom, não? Infelizmente, há duas falácias nessa proposta. A primeira está na relativa simplicidade da criação de áreas protegidas, enquanto ninguém parece preocupado com o trabalho duro de realmente protegê-las. Aproximadamente um terço dos parques nacionais, reservas, refúgios e áreas do tipo está sujeita a uma pressão humana já intensa e cada vez maior, de acordo com estudo recente publicado na revista Science.
Não se trata apenas de casos de países pobres que não conseguem manter uma força de patrulha devidamente treinada e equipada, de acordo com o principal autor do estudo, James E.M. Watson, cientista da preservação da Universidade de Queensland. Ele aponta para o Parque Marinho da Ilha Barrow, na Austrália, que recebeu o mais elevado status de proteção de um país rico por abrigar espécies raras de mamíferos, répteis, pássaros e invertebrados, das quais muitas são únicas do local. Ainda assim, disse Watson, em 2003, o governo permitiu a construção e a expansão de um vasto complexo energético no local, abastecido por mais de 450 poços de petróleo e gás natural - o equivalente australiano à perfuração em busca de petróleo no Refúgio Nacional de Vida Selvagem do Ártico. “Outros países observam o que está ocorrendo na Austrália e nos Estados Unidos e perguntam, ‘Por que devemos nos importar?’”, disse ele.
Watson disse que os governos que se gabam de suas áreas protegidas sem de fato protegê-las estão “vendendo um mito". Até os locais designados como Patrimônio Mundial Natural pela Unesco (em tese os maiores tesouros naturais do planeta) são geralmente locais domesticados como fazendas, e não terrenos de natureza intocada, destaca ele. Quando a Tanzânia quis cavar uma mina de urânio da Reserva de Caça Selous, que já abrigou uma grande população de elefantes, a Unesco aprovou o projeto de 350 quilômetros quadrados, e prontamente colocou o Selous na sua lista de patrimônios mundiais ameaçados.
Há tantas áreas protegidas sendo exploradas que há até uma sigla em inglês para se referir a essa categoria: Paddd, que significa redução, contenção e desproteção de áreas protegidas, e uma página na internet para acompanhar as más notícias.
O segundo problema com as áreas protegidas é o resultado de um ponto fraco da consciência humana: os políticos, como o restante de nós, adoram metas numéricas como as propostas na Convenção pela Biodiversidade. Essas metas parecem simples, objetivas e baratas de medir. Mas o resultado perverso está no fato de os governos ignorarem a diretriz da convenção que pede a proteção de áreas “de relativa importância para a biodiversidade”,concentrando-se em vez disso quase exclusivamente no tamanho das áreas, de acordo com estudo recente publicado na Nature Ecology and Evolution.
A estratégia é designar áreas protegidas em regiões remotas onde o custo e a inconveniência para os humanos sejam mínimos. A Austrália, por exemplo, criou áreas protegidas principalmente na sua vasta região central, em vez de áreas costeiras onde a proteção se estenderia a um maior número de espécies ameaçadas, incomodando também um maior número de pessoas. Da mesma maneira, em março, o Brasil criou novas áreas de proteção marinhas do tamanho de França e Grã-Bretanha juntos, mas deixou de fora áreas próximas da costa onde a diversidade de espécies ameaçadas diretamente pela atividade humana é maior.
Ao escrever a respeito do Projeto Half-Earth, proposta dos preservacionistas para manter metade do planeta “tão selvagem e protegida da intervenção e atividade humanas quanto possível", E.O. Wilson alertou que tomar decisões a respeito de quais hábitats proteger sem um conhecimento mais completo das espécies da Terra “pode levar a erros irreversíveis". Mas os autores do estudo publicado na Nature Ecology and Evolution foram mais diretos: fingir que o número de acres protegidos se reflete numa maior proteção às espécies é como administrar o atendimento de saúde humano com base no número de leitos hospitalares, “sem levar em consideração a presença de funcionários treinados em medicina". 
Pesquisadores que analisaram as áreas habitadas por mais de 4.000 espécies ameaçadas em todo o mundo para um estudo de 2014 descobriram que as áreas protegidas deixam de fora 85% delas. Mesmo se todos os 168 signatários da convenção alcançarem suas metas de áreas protegidas para 2020, o foco nas áreas significa que eles manterão sem proteção 84% das espécies ameaçadas, diz Oscar Venter, cientista e preservacionista da Universidade do Norte da Colúmbia Britânica e principal autor do estudo. Não surpreende que espécies e subespécies continuam a se extinguir - o rinoceronte-negro-ocidental em 2011, o leopardo-nebuloso de Formosa em 2013, o roedor melomys de Bramble Cay em 2016 - enquanto celebramos nossas histórias de sucesso.
“Se quisermos levar a sério a história natural, e todas as coisas das quais dependem nossas comunidade e nossas economias nas áreas naturais", disse Venter, “temos que começar a criar parques nos lugares certos". Para isso teremos que deixar de lado nossos lucros e nossa preciosa conveniência, e talvez pareça um exagero imaginar nossa espécie, tão autoindulgente, agindo de maneira responsável diante dessa realidade. Mas a alternativa é passar nossas vidas num mundo cada vez mais desprovido de vida selvagem.
Richard Conniff é o autor de “House of Lost Worlds: Dinosaurs, Dynasties and the Story of Life on Earth” [A casa dos mundos perdidos: dinossauros, dinastias e a história da vida na Terra]