Sinais sagrados
Na
cultura dos krenak, o rio Doce tinha vida própria.
Um dia antes da
chegada dos rejeitos de minério em Resplendor, os indígenas disseram ter
percebido sinais de que ele estava perto do fim.
"O rio já
sabia que ia ser morto. Quando a sujeira veio, ele foi subindo chorando,
fazendo barulho. E minha mãe chorando junto. Até hoje ela ainda não foi
ver o rio", descreve Tatiana, que é filha da cacica Laurita Maria Félix
Krenak, 80, a mais velha da tribo.
"Parece que os peixes
estavam até adivinhando que iam ser mortos. Meu marido foi pescar e em
15 minutos pegou muitas tilápias. Deu para a família toda comer e até
hoje eu tenho uma guardada no freezer, só de lembrança, porque agora não
tem mais como", conta Potiara, também filha de Laurita.
O rio
Doce é tema de antigas canções na língua krenak, que elogiam sua beleza e
a fartura de alimentos proporcionada por suas águas. "Agora não dá nem
mais vontade de cantar essas músicas. Para nós elas já morreram", diz
Tatiana.
Criados desde pequenos no leito do rio, os adultos da
aldeia lamentam que as próximas gerações provavelmente não terão a mesma
oportunidade. "Nossos filhos não vão aprender a nadar aqui como a gente
aprendeu", afirma Potiara.
Enquanto tentava trocar as caixas
d'água da casa da mãe, Mauro não conteve as lágrimas ao falar sobre a
transformação recente do rio. "É muito difícil olhar para ele desse
jeito. Nós perdemos nossa liberdade".
Com a chegada da onda de lama de rejeitos da mineradora Samarco ao município de Resplendor, em Minas Gerais,
na semana passada, as 126 famílias que vivem na aldeia, às margens do
manancial, testemunharam a "morte" de um elemento fundamental da cultura
das tribos.
"Muitos aí fora acham que o rio é só água e peixe,
mas para nós era a fonte de sobrevivência e uma questão de cultura.
Desde o início dos nossos antepassados, o rio Doce mantém nosso povo. É
questão de religião, é sagrado. Mas agora ele está morto."
O
desalento no relato do cacique Leomir Cecílio de Souza, 30, da tribo
atorã, permeia os depoimentos de todos os integrantes do povo indígena
ouvidos pela reportagem. "O rio era tudo para a gente. O que a Vale e a
Samarco fizeram destruiu o povo krenak", declara Potiara Félix, 32.
Como forma de protesto contra a poluição da bacia hidrográfica, causada
pelo rompimento de barragens em Mariana (MG), dezenas de indígenas da
aldeia bloquearam, na última sexta-feira (13), a Estrada de Ferro
Vitória a Minas, que escoa a produção da mineradora Vale, uma das
controladoras da Samarco.
"Antes do protesto, nós tentamos um
diálogo pacífico com os representantes da Vale, mas não fomos
correspondidos. A gente não tinha outra saída. Ninguém estava nos
ouvindo", conta Leomir. "Nós ficamos revoltados vendo o nosso rio
morrer. Por isso fomos à luta", diz Tatiana Krenak, 34, que levou o
filho de dois anos, Teuat, para a linha do trem.
Três dias
depois, em reunião com representantes da multinacional, a comunidade
indígena aceitou desbloquear a ferrovia. Segundo os krenak, a empresa
prometeu pagar nove salários mínimos (R$ 7.092) mensais a cada família
por um período prorrogável de pelo menos quatro meses, além de fornecer
água para consumo humano e animal, construir uma cerca ao longo da
margem do rio e 120 cisternas na área.
"Mas não tem dinheiro que
pague a riqueza que a gente tinha. O rio acabou e não vai mais voltar. É
triste demais. Tudo o que nós queríamos, a gente conseguia lá. Tiraram
essa alegria da gente", ressalta Mauro Krenak, 36, caçador e pescador da
tribo.
As atividades que sempre esteve acostumado a fazer agora
serão substituídas por idas a supermercados de Resplendor. "Não é a
mesma coisa", comenta. Irmã de Mauro, Tatiana reclama que os peixes
vendidos no comércio, pescados no mar, não têm o mesmo gosto dos animais
do rio Doce.
A Vale foi procurada pelo
UOL para
se pronunciar sobre a negociação, mas não respondeu até o momento. A
Funai (Fundação Nacional do Índio) confirmou os termos do acordo.
Nesta quarta (18), a reportagem presenciou a chegada dos primeiros
galões e caixas d'água à área indígena, situada em local de difícil
acesso a 9 km da BR-259.
"Até agora a gente estava tendo que brigar com os animais para pegar água de dois córregos das redondezas", conta Mauro.
A Funai informou que o apoio emergencial da Vale "não exime a empresa
da responsabilização pelos danos ambientais e sociais causados, que
terão ainda sua extensão apurada".
"Parece que os peixes
estavam até adivinhando que iam ser mortos. Meu marido foi pescar e em
15 minutos pegou muitas tilápias. Deu para a família toda comer e até
hoje eu tenho uma guardada no freezer, só de lembrança, porque agora não
tem mais como", conta Potiara, também filha de Laurita.
O rio
Doce é tema de antigas canções na língua krenak, que elogiam sua beleza e
a fatura de alimentos proporcionada por suas águas. "Agora não dá nem
mais vontade de cantar essas músicas. Para nós elas já morreram", diz
Tatiana.
Criados desde pequenos no leito do rio, os adultos da
aldeia lamentam que as próximas gerações provavelmente não terão a mesma
oportunidade. "Nossos filhos não vão aprender a nadar aqui como a gente
aprendeu", afirma Potiara.
Enquanto tentava trocar as caixas
d'água da casa da mãe, Mauro não conteve as lágrimas ao falar sobre a
transformação recente do rio. "É muito difícil olhar para ele desse
jeito. Nós perdemos nossa liberdade".
Índios fecham ferrovia da Vale em MG em protesto contra 'morte de rio sagrado'
Com o corpo pintado para a guerra, tinta preta no rosto e olhos
vermelhos de noites mal dormidas, Geovani Krenak, líder da tribo
indígena Krenak, mira a imensidão de água turva e marrom.
"Com a
gente não tem isso de nós, o rio, as árvores, os bichos. Somos um só, a
gente e a natureza, um só", diz. Ele respira fundo, e continua: "Morre
rio, morremos todos".
Parte dos 800 km de extensão do rio Doce,
contaminado pela lama espessa que escoa há 10 dias de duas barragens de
rejeitos da mineradora Samarco, em MG, atravessa a reserva da tribo.
Tida como sagrada há gerações, toda a água utilizada por 350 índios para
consumo, banho e limpeza vinha dali. Não mais.
Sem água há mais
de uma semana, sujos e com sede, eles decidiram interromper em protesto
a Estrada de Ferro Vitória-Minas, por onde a Vale, controladora da
Samarco e da ferrovia, transporta seus minérios para exportação.
"Só saímos quando tiverem a dignidade de conversar com a gente.
Destruíram nossa vida,
arrasaram nossa cultura, e nos ignoram. Não
aceitamos", anuncia o índio Aiá Krenak à BBC Brasil.
Procurada, a
Vale informa que "continua, com apoio da Funai, as tentativas de
negociação com o Povo Indígena Krenak para liberação da ferrovia".
"Cabe ressaltar que a Vale, como acionista da Samarco juntamente com a
BHP Billiton, tem atuado ativamente nas ações para atendimento às
famílias afetadas pelo acidente do dia 5 de novembro e reitera seu
compromisso em se relacionar com o Povo Krenak de modo transparente e
participativo, mantendo uma relação construtiva, respeitando suas
características próprias e a legislação vigente", disse a empresa por
meio de nota.
A empresa afirma que a interdição está impedindo o
transporte de água para as comunidades da região do Rio Doce.
"Atualmente, cerca de 360 mil litros de água, sendo 60 mil litros de
água mineral e 300 mil litros de água potável, provenientes de Vitória
(ES), estão nos trens aguardando a liberação da ferrovia para
distribuição", diz a Vale no comunicado.
"A empresa repudia
quaisquer manifestações violentas que coloquem em risco seus empregados,
passageiros, suas operações e que firam o Estado Democrático de Direito
e ratifica que obstruir ferrovia é crime."