Vegetação de Cerrado de 7 mil anos corre risco de extinção. Entrevista especial com Mauro Parolin
“O Paraná é o último estado (do sul do País) onde há ocorrência de
Cerrado no Brasil e na América do Sul, uma vez que nos demais estados ao
sul não existe mais essa vegetação”, adverte o geógrafo.
Os 102 quilômetros quadrados de vegetação de Cerrado registrados no
município de Campo Mourão, no Paraná, em 1940, já foram reduzidos a 13
mil metros quadrados e continuam sendo “paulatinamente reduzidos”, de
tal modo que hoje a região tem a “menor área de Cerrado preservada no
Brasil”, totalizando a extensão de uma quadra, e no município como um
todo existem apenas 32 espécies de barbatimão, uma planta usada para
fins medicinais, e 250 de butiá, diz Mauro Parolin à IHU On-Line.
Coordenador do Laboratório de Estudos Paleoambientais da Fecilcam –
Lepafe, da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão –
Fecilcam, o geógrafo desenvolve um estudo que demonstra a existência, no
passado, de uma grande extensão de Cerrado no Paraná. “O nosso último
estudo mostra que há pelo menos 7200 anos havia presença de pólen de
pequi [Caryocar Brasiliense, árvore símbolo do Cerrado] na região.
Como o
pequi é uma planta muito característica do Cerrado, podemos afirmar que
há mais de sete mil anos uma mancha de Cerrado já existia em Campo
Mourão e provavelmente ela era muito maior do que é agora, porque à
medida que o clima foi ficando mais úmido e quente, essa mancha foi
sendo reduzida e hoje essa vegetação de Cerrado já está num processo
sucessional de substituição pela floresta estacional”, informa na
entrevista a seguir, concedida por telefone.
Segundo ele, por conta do processo de urbanização e do desenvolvimento
da agricultura, as áreas de Cerrado foram diminuindo e gerando perda de
biodiversidade. “Quando se vende uma área agrícola – que é o que
aconteceu em Campo Mourão –, as melhores terras são utilizadas para
cultivo e, em contrapartida, as áreas destinadas à preservação são
aquelas que têm os piores solos e, portanto, as que têm a vegetação mais
pobre em termos de condição genética.
Ao se fazer essa opção,
restringe-se a capacidade de troca entre gerações de plantas com outras
plantas mais saudáveis e, portanto, a troca de sementes e a fecundação
ficam muito endogâmicas, ou seja, acontecem apenas dentro do mesmo grupo
familiar de cada espécie, e isso vai ocasionando a perda genética das
plantas e, consequentemente, a qualidade genética da floresta, o que por
sua vez vai levando as espécies à extinção”, explica.
Mauro Parolin é professor Associado do Departamento de Geografia da
Universidade Estadual do Paraná – Campus de Campo Mourão e do Programa
de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Maringá e
também coordena o Laboratório de Estudos Paleoambientais da Fecilcam e a
Estação Ecológica do Cerrado de Campo Mourão.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que o estudo que o senhor está realizando no Laboratório
de Estudos Paleoambientais da Fecilcam – Lepafe tem demonstrado sobre a
situação da vegetação de Cerrado no Paraná?
Mauro Parolin – O trabalho no Lepafe tem sido feito a partir de
sedimentos turfosos, ou seja, fizemos uma recuperação a partir de
sondagens geológicas e nessas sondagens retiramos tubos de
aproximadamente dois ou três metros de profundidade contendo material
turfoso e estudamos os conteúdos polínico e fitolítico desse material.
O
conteúdo polínico nos fornece um espectro da vegetação do passado e o
conteúdo fitolítico é a sílica da planta que acabou ficando preservada
nas turfeiras. Com a ajuda da datação do carbono-14 e a partir da
quantificação que fizemos desse conteúdo polínico e fitolítico,
conseguimos ter ideia de como estava a vegetação no passado. Nesse
sentido também usamos como parâmetro o carbono-13, que pode discriminar
dois tipos de plantas: as adaptadas a campos, que são as plantas de tipo
C4 e aquelas plantas que vivem em ambientes florestais, como as C3.
O nosso último estudo mostra que há pelo menos 7200 anos havia presença
de pólen de pequi [Caryocar Brasiliense, árvore símbolo do Cerrado] na
região. Como o pequi é uma planta muito característica do Cerrado,
podemos afirmar que há mais de sete mil anos uma mancha de Cerrado já
existia em Campo Mourão e provavelmente ela era muito maior do que é
agora, porque, à medida que o clima foi ficando mais úmido e quente,
essa mancha foi sendo reduzida e hoje essa vegetação de Cerrado já está
num processo sucessional de substituição pela floresta estacional.
IHU On-Line – Além do pequi, outras espécies foram identificadas?
Mauro Parolin – O nosso grande problema até então era de que os pólens
que estávamos recuperando são encontrados tanto no bioma Cerrado, quanto
no bioma da floresta estacional. Contudo, no final do ano passado,
encontramos o pólen do pequi e esse é o elemento marcador de que a
vegetação que existia em Campo Mourão era de Cerrado, apesar de que, nas
proximidades da área em que encontramos o pequi, não existe mais essa
espécie.
Por isso estamos estipulando que a área de Cerrado antes
deveria ser maior do que é hoje e a evidência que marca essa ocorrência é
justamente o pequi. Outras espécies que existem no Cerrado têm um pólen
muito redundante e por isso não temos condições de afirmar se elas são
ou não do Cerrado, mas o pequi é, com certeza, um marcador. O dado
isotópico também mostrou a predominância de plantas tipo C4 no Cerrado
há mais de 7200 anos, ou seja, C4 indica campo e com isso estamos
conseguindo dizer desde quando existe cerrado na região de Campo Mourão.
IHU On-Line – É possível chegar a conclusões de como essa vegetação de
cerrado foi mudando ao longo dos anos e sendo substituída pela floresta
estacional?
Mauro Parolin – Em Campo Mourão existe a menor área de Cerrado
preservada no Brasil, que é uma quadra, porque Campo Mourão foi
“erguida” em cima do Cerrado e todo o solo que dava sustentação à
vegetação do Cerrado foi modificado e transformado, de modo que ele foi
sendo suprimido.
A pesquisa mostra que essa sucessão de Cerrado para
floresta estacional está ocorrendo naturalmente.
No entanto, nos últimos
cem anos, esse processo foi acelerado pela entrada efetiva de vegetação
de floresta ombrófila mista e estacional, como, por exemplo, a entrada
de palmito em áreas em que não havia antes. Essa é a evidência de um
processo lento que demonstra que a vegetação do Cerrado está se
transformando em área de floresta estacional, mas esse processo foi
acelerado pelas correções de solo no entorno da área e também pelo
processo de urbanização na região.
Nas áreas do entorno, a 60, 70 quilômetros de Campo Mourão, já
verificamos que havia mistura de plantas, ou seja, a área não era
composta apenas de vegetação do Cerrado, mas também não era uma mata
fechada. Porém, as matas foram adensando nos últimos cinco mil anos,
enquanto a vegetação em Campo Mourão foi adensando mais lentamente.
Segundo pesquisas do cientista alemão Reinhard Maack [1892-1969], a
vegetação de Cerrado ocupava uma área de aproximadamente 102 quilômetros
quadrados em Campo Mourão na década de 1940 e agora essa vegetação está
restrita a uma área de 13 mil metros quadrados, ou seja, essa área está
sendo paulatinamente reduzida. Além desses 13 mil metros, estamos
tentando preservar mais 20 mil metros quadrados desde 2001, mas não
estamos conseguindo.
IHU On-Line – Que percentual de vegetação de Cerrado existia no estado do Paraná e que percentual existe hoje?
Mauro Parolin – O Cerrado no Paraná foi identificado em 1940 em algumas
regiões do estado, como Campo Mourão,Cianorte e Jaguariaíva. No entanto,
a única área em que se estimou qual seria o percentual de Cerrado foi
Campo Mourão, com esse valor de 102 quilômetros quadrados.
É possível
que essa área fosse muito maior no passado, contudo não se tem o
registro de qual é o volume de Cerrado hoje no estado. Em Jaguariaíva
existe uma reserva muito grande de Cerrado, e nas regiões de Cianorte,
Sabáudia, Cruzeiro do Oeste, o Cerrado já não existe mais, porque as
áreas foram totalmente transformadas em campo ou foram engolidas pela
floresta estacional.
O Paraná é o último estado onde há ocorrência de Cerrado no Brasil e na
América do Sul, uma vez que nos demais estados ao sul não existe mais
essa vegetação. Campo Mourão está a 24 graus de latitude e Jaguariaíva
está a 24,5, e esse é o último ponto ao sul do país onde ocorre Cerrado.
Depois se tem apenas campo, como ocorre no Rio Grande do Sul, a exemplo
do Pampa gaúcho.
“Quando uma espécie dessas entra em extinção, dificilmente é possível recuperá-la”
IHU On-Line – Em termos de biodiversidade, é possível contabilizar o que já se perdeu?
Mauro Parolin – Há grande perda em termos de biodiversidade e o primeiro
problema ocorre quando se começa a diminuir as áreas de floresta
natural. Por exemplo, quando se vende uma área agrícola – que é o que
aconteceu em Campo Mourão –, as melhores terras são utilizadas para
cultivo e, em contrapartida, as áreas destinadas à preservação são
aquelas que têm os piores solos e, portanto, as que têm a vegetação mais
pobre em termos de condição genética.
Ao se fazer essa opção, restringe-se a capacidade de troca entre
gerações de plantas com outras plantas mais saudáveis e, portanto, a
troca de sementes e a fecundação ficam muito endogâmicas, ou seja,
acontecem apenas dentro do mesmo grupo familiar de cada espécie. Isso
vai ocasionando a perda genética das plantas e, consequentemente, a
qualidade genética da floresta, o que por sua vez vai levando as
espécies à extinção. E quando uma espécie dessas entra em extinção,
dificilmente é possível recuperá-la.
As pessoas costumam dizer que tem barbatimão em Goiás e em Campo Mourão,
mas não se sabe, por exemplo, que tipos de adaptações genotípicas de
DNA ocorreram no barbatimão de Campo Mourão para que ele conseguisse se
adaptar à condição fria da região, que é, provavelmente, muito diferente
daquela de Goiás.
Por exemplo, se o barbatimão ou o butiá do Cerrado
[Butia paraguayensis], que é o butiá que existe em Campo Mourão,
entrarem em extinção, não temos pesquisas feitas sobre as diferenças
genéticas entre eles e, por isso, não sabemos que tipo de condição e que
tipo de princípio de tratamento poderíamos usar nessas plantas para
que, de repente, pudessem ajudar no fabrico de algum medicamento.
É
nesse sentido que entra o contexto da preservação da biodiversidade.
Mas a perda de biodiversidade é ainda mais gritante em razão dos seus
impactos aos pássaros, pois o Cerrado tem uma fauna que necessita de
frutos que somente aquelas espécies que estão nesse bioma conseguem dar.
À medida que essas áreas vão sendo reduzidas, os pássaros vão perdendo
locais de alimentação e de nidificação.
Numa das quadras de vegetação do Cerrado que estão preservadas em Campo
Mourão, tem mais biodiversidade do que numa mesma área em uma floresta
ombrófila. Por exemplo, no Cerrado de Goiás só existem espécies do
Cerrado, mas no Cerrado do Paraná existem, além das espécies do Cerrado,
as espécies da floresta de araucária e da floresta estacional, todas
vivendo praticamente juntas. Em outra quadra preservada, a cerca de 400
metros de distância, há sete ou oito outras espécies, ou seja, em uma
distância de 400 metros, às vezes, já se tem uma biodiversidade muito
diferente.
IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades para preservar essa vegetação de Cerrado hoje?
Mauro Parolin – Na década de 1980, o poder público conseguiu preservar
um pouco dessa vegetação. Obviamente a área era enorme se comparada com
hoje, pois havia Cerrado em um bairro inteiro na década de 1970. Mas com
o processo de urbanização a vegetação foi diminuindo e em 1987 foi
feito o primeiro mapeamento de quais eram as áreas ainda livres de ação
antrópica, o qual detectou que ainda existiam algumas quadras de
vegetação.
Ainda na década de 1980 a universidade fez um projeto de preservação,
sensibilizou a comunidade, a prefeitura e com isso se conseguiu fazer
uma troca de terras, ou seja, pessoas que tinham lotes na área de
Cerrado trocaram suas terras por outros lotes que a prefeitura
disponibilizou em outras áreas na cidade. Com isso se conseguiu
preservar uma quadra de Cerrado.
No entanto, isso acabou gerando outro
problema: como esta quadra está preservada e virou uma estação
ecológica, não estamos conseguindo colocar fogo na região – é preciso
colocar fogo na área para fazer a germinação das sementes – e as
invasoras começaram a tomar conta da área justamente em razão da
ausência de fogo.
Desde 2001 estamos tentando implementar novamente esse sistema de troca
entre áreas com Cerrado e outras terras, mas não temos o mesmo empenho, a
mesma sensibilização por parte da comunidade e do poder público e a
transação dessa negociação tem sido pouco eficaz e pouco eficiente.
A falta de preservação também acontece, de certa forma, pelo próprio
desconhecimento da população, que olha a quantidade de quiçaça [mato
rasteiro e espinhento] existente na região e diz que “tem que colocar
tudo abaixo” mesmo. Mas as pessoas não entendem que, embora aquelas
espécies sejam muito parecidas com uma quiçaça que qualquer um vê, elas
são diferentes, têm características e princípios diferentes.
Em Campo Mourão, por exemplo, o pessoal vive raspando a casca de
barbatimão para fazer chá, porque ele é adstringente, como o próprio
nome da espécie diz, Stryphnodendron adstringens. As pessoas da região
usam essa planta para fazer chás, para fazer gargarejo para infecção e
dores de garanta, para uso tópico em feridas, mas essa mesma população,
quando olha aquela quiçaça, diz: “ah, mas isso é só uma quiçaça, não
precisa preservar”. Então, também tem esse problema de convencer a
própria população de que essa vegetação é importante.
“Se o município criasse uma política de considerar as espécies do
cerrado de Campo Mourão como Patrimônio Histórico e Cultural, seria
possível encontrar maneiras de mudar o atual cenário”
IHU On-Line – Quais seriam as políticas públicas adequadas para reverter o atual quadro de paisagem de Cerrado no Paraná?
Mauro Parolin – Uma ação que já foi feita no passado e que poderia ser
retomada é “atingir” o bolso de cada habitante. Por exemplo, aquele
morador que plantar espécies do Cerrado em sua casa poderia ter uma
redução no valor do IPTU. Se o município criasse uma política de
considerar as espécies do Cerrado de Campo Mourão como Patrimônio
Histórico e Cultural – e isso é possível, pois o próprio nome da cidade,
Campo Mourão, já vem dessa ideia de que aqui tinha um campo, logo, a
nossa vegetação é um patrimônio histórico -, seria possível encontrar
maneiras de mudar o atual cenário.
Além disso, a legislação poderia prever algumas espécies imunes a
cortes. Isso ajudaria a garantir a permanência delas. Só temos 32
espécies de Stryphnodendron adstringens em Campo Mourão e apenas 250
plantas de butiá; foi o que sobrou. Então, se fizermos uma política de
deixar essas plantas imunes a cortes, já ajudaria, mas não adianta
apenas ter a lei e não ter a fiscalização.
É nesse sentido que falo que
as políticas têm que ser voltadas para preservação do nosso Cerrado, ou
seja, é preciso criar formas e instrumentos em que a população se sinta
compensada pelo fato de estar preservando e, de outro lado, é necessário
ter uma fiscalização mais efetiva da preservação.
Fonte: EcoDebate