Estudo
mostra os benefícios socioeconômicos e ambientais do planejamento
integrado da paisagem que concilia produção agrícola, conservação e
restauração; além de reverter a degradação, processo aumenta a
resiliência climática, assegura a presença de polinizadores –
incrementando a produtividade agrícola nacional em até 90% –, e ainda
fornece produtos madeireiros, frutos e bioativos florestais que
diversificam o mercado e geram renda aos proprietários rurais
A Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos
(BPBES) e o Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS) lançam
hoje o sumário para tomadores de decisão do relatório temático
“Restauração de Paisagens e Ecossistemas”. Elaborado por 45
pesquisadores de 25 instituições, o estudo reúne o conhecimento
científico sobre iniciativas, práticas e políticas públicas que visam o
uso mais sustentável do solo no Brasil, contribuindo diretamente para a
mitigação das mudanças climáticas e o alcance de metas globais. O
objetivo é informar governantes, empresários e demais gestores e
lideranças, das esferas pública e privada, sobre o melhor caminho a ser
seguido.
Diante da crescente alteração de ambientes naturais por atividades
humanas, a restauração de paisagens e ecossistemas tem se tornado
prioritária em âmbito internacional. Tanto é que a Organização das
Nações Unidas (ONU) declarou o período entre 2021 e 2030 como a Década
sobre Restauração de Ecossistemas. E, em meio a uma conjuntura crítica
para a agenda ambiental brasileira, o documento da BPBES e do IIS
apresenta dados e propostas para demonstrar o benefício mútuo entre
produção agrícola, conservação e restauração. O estudo está sendo
lançado em um momento oportuno: duas semanas após o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, ter
divulgado um relatório especial que aborda as relações entre o uso da
terra e as mudanças do clima, alertando para a importância de se
combater o desmatamento, proteger os ecossistemas naturais e promover a
recuperação da vegetação nativa.
O Brasil perdeu 70 milhões de hectares de vegetação nativa nos
últimos 30 anos. Em sua maior parte, são terras abandonadas, mal
utilizadas, em processo de erosão e que pouco agregam ao país. “Essas
áreas não contribuem para a produção de alimentos, para qualquer outra
atividade econômica e nem para os serviços ecossistêmicos. Sua
restauração deveria ser uma prioridade nacional!”, pontua Bráulio Dias,
professor da UnB e ex-secretário executivo da Convenção sobre
Diversidade Biológica da ONU. O estudo observa que cada bioma e seu
respectivo nível de degradação requerem métodos específicos de
restauração ecológica para garantir melhor relação custo-eficiência, e
detalha as técnicas mais indicadas para cada área, incluindo a condução
da regeneração natural.
Sinergia e interdependência – Segundo o documento, a
restauração de paisagens e ecossistemas não compete com atividades
agrícolas; ao contrário, são ações sinérgicas. O coordenador do
relatório, Renato Crouzeilles, professor do Programa de Pós-Graduação em
Ecologia da UFRJ e do Centro de Ciências da Conservação e
Sustentabilidade do Rio na PUC-Rio e associado ao IIS, salienta que
ciência e política andam juntas e se beneficiam. “O planejamento
inteligente e o manejo integrado da paisagem levam a uma situação de
ganha-ganha, onde ganha o meio ambiente, ganha a produção agrícola e
ganha a sociedade”, explica.
Na mesma linha, Ricardo Rodrigues, professor da Esalq/USP, onde
coordena o Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal (Lerf), e
também um dos coordenadores do estudo, argumenta que agricultura e meio
ambiente não são concorrentes e, sim, interdependentes. Por isso, devem
ser abordados de forma conjunta, sob a ótica da ‘adequação ambiental e
agrícola de propriedades rurais’, conceito que pratica há mais de 20
anos no Lerf, obtendo como resultado benefícios ambientais e produtivos.
Para tanto, ele defende que o conhecimento científico precisa se
aproximar da sociedade e a sociedade deve se apropriar melhor desse
conhecimento. “Temos que quebrar essa barreira. Não podemos continuar
gerando conhecimento de qualidade para nós mesmos, discutindo entre
pares.
Acredito que esse estudo é um instrumento interessante para essa
aproximação”. Para Rodrigues, o diferencial da agricultura brasileira
deveria ser a tecnologia de ponta, a alta produtividade e o baixo
impacto ambiental, em um ambiente rico em biodiversidade e, portanto,
com sustentabilidade ambiental e socioeconômica.
Para que isso aconteça, na opinião de Crouzeilles é fundamental a
conscientização do governo sobre a sinergia entre meio ambiente e
agricultura, que pode levar à melhor qualidade ambiental, econômica e
social, vitais para o enfrentamento das mudanças climáticas.
“Restauração é a solução baseada na natureza com maior potencial de
mitigar os efeitos das mudanças climáticas, os quais, se não forem
combatidos agora e com intensidade, levarão à perda de produtividade
agrícola, à maior inequidade social e econômica e à destruição dos
recursos naturais”, avalia.
Bernardo Strassburg, professor da PUC-Rio, diretor executivo do IIS e
também coordenador do documento, ressalta ainda o enorme potencial da
restauração ecológica para contribuir para o atingimento de múltiplos
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, de forma custo-efetiva. “Além
dos Objetivos relacionados à conservação da biodiversidade e mitigação e
adaptação às mudanças climáticas, a restauração pode apoiar
significativamente os objetivos associados às seguranças alimentar,
hídrica e energética, à redução da pobreza, geração de empregos e
produção e consumo sustentáveis”.
De acordo com o relatório, a restauração de paisagens e ecossistemas
assegura a presença de polinizadores, que aumentam a produtividade das
culturas agrícolas brasileiras em até 90%. “Cerca de 40% das culturas
agrícolas do país têm redução de produção de 40-100% na ausência de
polinizadores e, em outros 45% das culturas, a diminuição está entre
1-40%”, diz o texto. Ainda segundo o estudo, se bem planejada e
implementada na paisagem, a restauração pode aumentar em mais de 200% a
conservação da biodiversidade.
Benefícios socioeconômicos – Além de reverter a
degradação ambiental, devolvendo a funcionalidade dos ecossistemas, a
recuperação da vegetação nativa também enseja oportunidades econômicas,
de inclusão e redução das desigualdades sociais. “Estima-se a criação de
200 empregos diretos (por meio de coleta de sementes, produção de
mudas, plantio e manutenção) a cada 1.000 hectares em restauração com
intervenção humana. Dependendo do balanço entre recuperação com alta
intervenção humana e condução da regeneração natural, projeta-se que
entre 112 e 191 mil empregos sejam gerados anualmente até 2030 para o
alcance da meta brasileira de recuperação de 12 milhões de hectares de
vegetação nativa”, detalha o documento.
O texto segue explicando que as áreas restauradas, além de fornecerem
polinizadores para as culturas agrícolas no seu entorno, ofertam ainda
produtos madeireiros, frutos e bioativos da vegetação nativa em
restauração, que diversificam os mercados locais e beneficiam toda a
sociedade, mas são especialmente importantes para geração de renda aos
proprietários rurais. “Se você restaura ecossistemas em áreas degradadas
que não dão retorno econômico algum, a oferta de alimento vai aumentar,
porque alimento não vem só da lavoura, vem também dos rios, por meio da
pesca, e da floresta, onde você pode colher um fruto ou uma raiz. Isso
vai melhorar a segurança alimentar”, assinala Bráulio Dias.
Engajamento e cidadania – Diversos
movimentos, que reúnem atores sociais envolvidos com iniciativas de
restauração, têm criado mecanismos de governança, comunicação e
articulação, sistemas de monitoramento e estratégias para influenciar
políticas públicas. Alguns dos principais exemplos no Brasil são o Pacto
pela Restauração da Mata Atlântica, a Aliança pela Restauração da
Amazônia e a Rede de Sementes do Xingu. Os autores ressaltam que esses
coletivos têm dado atenção especial também à questão da diversidade de
gênero e raça.
Na visão de Crouzeilles, sensibilização e engajamento são essenciais
para uma sociedade consciente, com ações em todas as esferas de
influência. “Para isso, governos, estados, pesquisadores, praticantes e
coletivos de restauração devem disseminar conhecimento baseado em
ciência para toda a sociedade, desde a população rural até a urbana.
Independentemente das políticas públicas ambientais exercidas pelo
governo, todos devem continuar fazendo a sua parte para que haja ganho
ambiental e socioeconômico no país”, completa.
Rodrigues pontua que, na contramão da agenda política atual, a única
forma de contornar os retrocessos é exercendo o papel cidadão e cobrando
uma qualidade maior de nossos produtos agrícolas. Ele lembra que ainda
não temos instrumentos que informem o consumidor sobre a origem desses
produtos. “Não sabemos se ele respeita a legislação ambiental, se está
conforme os princípios de igualdade salarial entre homens e mulheres e
se combate o trabalho escravo, por exemplo. Se dermos preferência para
produtos com certificação ambiental e socioeconômica, mudaremos o
mercado à revelia do governo”, sugere.
Ganho de escala – Para Dias, um dos maiores desafios
que o Brasil tem pela frente é ganhar escala nos esforços de
restauração de ecossistemas. “O país tem capacidade técnica e acadêmica,
especialistas no tema, manuais e experiência sobre o que funciona e o
que não funciona. Nós temos agora que sair das iniciativas locais e
passar a recuperar em escala nacional. Isso requer políticas públicas e
de engajamento do setor privado e eu acredito que esse relatório é uma
grande contribuição para convencer os tomadores de decisão”, avalia.
Carlos Joly, coordenador da BPBES e professor da Unicamp, destaca que o
país tem a oportunidade de desenvolver um programa de recuperação da
vegetação nativa ímpar no mundo, com grande diversidade de espécies.
“Temos conhecimento suficiente para utilizar um alto número de espécies
nativas, principalmente na Mata Atlântica.
O estudo aponta que a
restauração pode ser feita nas áreas com a melhor relação de custo
versus diversidade de espécies e serviços ecossistêmicos. Além dos
serviços de proteção e estabilidade de solo, com a redução da erosão
superficial, e a proteção de recursos hídricos, graças à diminuição do
assoreamento”, afirma.
O texto apresenta os oito pilares necessários para viabilizar a
recuperação da vegetação nativa em larga escala e de forma custo-efetiva
no Brasil, identificados durante o processo de elaboração do Plano
Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa, instrumento básico da
Política Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa. E, por outro lado,
os autores destacam ao menos 10 ações prioritárias para contrapor as
lacunas que ainda dificultam um ganho de escala concreto em iniciativas
de restauração associadas a uma produção agrícola sustentável e com alta
produtividade, em abordagens de gestão integrada da paisagem.
“O Brasil e seus agricultores têm muito a ganhar sendo os
protagonistas de uma transição para um uso da terra mais sustentável,
com zero desmatamento ilegal, produção agrícola intensificada e
tecnificada sustentavelmente e, ao mesmo tempo, associada à recuperação
da vegetação nativa em larga escala”, diz o documento.
Protagonismo ambiental e contexto global
– No cenário internacional – em especial na União Europeia – é
crescente a demanda por importação de produtos agrícolas sustentáveis,
que não degradem o meio ambiente nem comprometam a qualidade de vida da
população
. “O Brasil também deve seguir esse caminho, senão há
uma grande chance de sofrer embargos internacionais de seus produtos
agrícolas. O mundo está junto pela Década da Restauração e, se
conseguirmos continuar com o protagonismo ambiental dos últimos anos, o
Brasil tem tudo para se consolidar como um líder ambiental e com voz
ativa ao longo dessa década. Isso trará ainda mais investimentos e
reconhecimento para o país”, analisa Crouzeilles.
Para que as oportunidades se tornem realidade, o relatório aponta que
o país não pode retroceder em suas políticas ambientais de redução do
desmatamento, conservação da biodiversidade e impulsionamento da
recuperação da vegetação nativa em larga escala. O fim da
obrigatoriedade da Reserva Legal, as reduções das alternativas de
conversão de multas e a extinção dos fóruns de colaboração e coordenação
entre atores governamentais e da sociedade seriam perdas irreparáveis
para uma política de adequação ambiental. “O Brasil tem assumido o papel
de líder em negociações ambientais internacionais e qualquer ruptura
desse caminho, além de afastar oportunidades, irá afugentar mercados
internacionais consumidores de produtos agrícolas. Isto porque, cada vez
mais, estes se pautam pela produção e pelo consumo sustentáveis,
incluindo políticas de não-consumo de produtos provenientes de áreas
desmatadas, como é o caso da moratória da soja na Amazônia”, alerta o
estudo.