quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Pacote climático da COP24 dá vida ao Acordo de Paris

WRI Brasil

Pacote climático da COP24 dá vida ao Acordo de Paris


Depois de duas semanas de difíceis negociações climáticas em Katowice, Polônia, os países concordaram com as regras para dar vida ao Acordo de Paris. Mesmo que os países tenham deixado algumas lacunas notáveis e problemas não resolvidos, os pontos-chave do acordo na COP24 foram a comunicação regular, relatórios, revisão e acompanhamento dos progressos na redução de emissões, adaptação a impactos, aumento e alinhamento de investimentos e consideração de perdas e danos.


Os países também reafirmaram o cronograma acordado em Paris para apresentarem seus compromissos climáticos nacionais (conhecidos como Contribuições Nacionalmente Determinadas ou NDCs) até 2020. A Cúpula do Clima da ONU, em setembro deste ano, está se desenhando como um momento importante para os líderes mundiais se adiantarem e apresentarem planos ambiciosos para suas próximas NDCs.


As negociações em Katowice não endossaram totalmente as conclusões do relatório do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudança Climática (IPCC), que destacou a importância de manter a elevação da temperatura global dentro de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais para evitar os impactos mais severos das mudanças climáticas. O endosso foi bloqueado pelos Estados Unidos, Arábia Saudita, Rússia e Kuwait, todos grandes produtores de petróleo.


Embora o acordo em Katowice não tenha ido longe o suficiente ao ponto de pedir explicitamente aos países que apresentem mais ambição, necessidade alertada pelo ultimo relatório do IPCC, um grupo de países desenvolvidos e em desenvolvimento declarou sua intenção de fazê-lo. O próximo passo após a volta pra casa é uma ampla gama de países trabalharem no aumento da ambição e na intensificação dos esforços para alcançar um futuro sem carbono e resiliente ao clima enquanto aproveitam as tremendas oportunidades econômicas e de desenvolvimento que uma ação climática ousada pode oferecer.


Abaixo fazemos um mergulho mais profundo no pacote climático de Katowice anunciado na COP24, com detalhes para os progressos feitos no Livro de Regras de Paris, ambição climática e financiamento climático, bem como uma visão geral dos principais desenvolvimentos fora das negociações.


Livro de Regras de Paris: criando a base inicial

 

Uma das tarefas mais importantes para os países na COP24 foi chegar a um acordo sobre o Livro de Regras que descreve como devem planejar, implementar e analisar suas ações climáticas para cumprir as promessas do Acordo de Paris. Na verdade, a reunião de Katowice foi o prazo final para que os países concluíssem essa importante tarefa. As duas semanas da COP24 foram concluídas com horas extras no final de 15 de dezembro, após três anos de intensas negociações para cumprir essa meta. Embora não seja perfeito, o Livro de Regras oferece uma base importante para os países avançarem e operacionalizarem o Acordo de Paris.

Os países concordaram em fornecer mais detalhes quando submeterem novas NDCs, com critérios contábeis para avaliar o progresso e a realização das metas. As informações exigidas nas NDCs não são tão abrangentes quanto poderiam ser, e a orientação contábil não é detalhada o suficiente para impedir que alguns países inflassem alguns números.


No entanto, é uma melhoria importante em relação à situação atual, na qual muito pouca informação foi fornecida sobre as NDCs e, antes do Acordo de Paris, não havia diretrizes contábeis aplicáveis a todos os países. Os países também concordaram com o tipo de informação necessária para deixar mais claro os esforços de adaptação às mudanças climáticas, caso desejem incluí-los nas NDCs.


Os países intensificaram significativamente suas ações sob uma estrutura reforçada de transparência, concordando com orientações aprimoradas, mais detalhadas e, especificamente, com um conjunto comum de diretrizes para relatar e revisar o progresso a cada dois anos. Foi um avanço significativo para a transparência o acordo entre os países por orientações mais detalhadas para relatar e revisar o progresso a cada dois anos.


Atualmente, há requisitos diferentes para países desenvolvidos e em desenvolvimento. Todos os países concordaram em usar as mais recentes metodologias do IPCC para estimar as emissões de gases de efeito estufa. Os países em desenvolvimento com menos capacidade de coletar esses dados podem explicar suas limitações e desenvolver um plano de melhoria para superar suas lacunas e melhorar os dados nos relatórios subsequentes.


Pela primeira vez, os países poderão incluir em seu relatório de transparência não apenas o progresso feito para se adaptar às mudanças climáticas, mas também como eles lidaram com perdas e danos.


A prestação de contas no âmbito do Acordo de Paris também foi fortalecida por meio de um mecanismo para facilitar a implementação e promover o cumprimento. Se um país não tiver divulgado uma NDC ou um relatório nacional, o comitê de especialistas estabelecido sob esse mecanismo poderá ajudar o país. Além disso, esse comitê de especialistas pode identificar problemas sistêmicos enfrentados por um amplo conjunto de países.


As nações também chegaram a um acordo para fazer uma avaliação global a cada cinco anos, na qual será analisado o progresso coletivo em direção aos objetivos de longo prazo do Acordo de Paris de forma abrangente e participativa. A primeira será em 2023. Essa avaliação coletiva terá a participação de atores de fora dos governos, mas com menos acesso ao processo do que no Diálogo Talanoa de 2018.
<p>Peter Thomson, enviado especial da Secretaria-Geral da Organização das Nações Unidas para os Oceanos, com um cachecol que fala sobre o aumento da ambição até 2020 (foto: IISD)</p>Peter Thomson, enviado especial da Secretaria-Geral da Organização das Nações Unidas para os Oceanos, com um cachecol que fala sobre o aumento da ambição até 2020 (foto: IISD)

Nenhuma das regras mencionadas acima teria sido adotada sem que houvesse forte disposição para fornecer apoio, incluindo financiamento, transferência de tecnologia e capacitação. Além das decisões sobre finanças (descritas abaixo), vale também destacar a importância da capacitação para facilitar a preparação, comunicação, elaboração de relatórios e implementação da ação climática.



Outras medidas positivas foram a operacionalização da plataforma dos Povos Indígenas – a primeira do tipo em um ambiente multilateral – e o programa de trabalho sobre gênero.


Não houve acordo sobre o Artigo 6 do Acordo de Paris quanto ao uso de mercados de carbono em um contexto internacional, nem em ter datas comuns para entregar promessas das NDCs. No entanto, diante da possibilidade de brechas que permitiriam a dupla contagem, potencialmente minando a integridade do Acordo de Paris e sua ambição geral, era preferível adiar uma decisão sobre os mercados internacionais de carbono até o próximo ano.

Ambição: países sinalizam compromisso de revisar planos

 

Chegamos a Katowice com uma mensagem clara da ciência e altas expectativas dos cidadãos: os países devem aumentar seu nível de ambição agora para evitar os impactos mais catastróficos da mudança climática. Impulsionada pelos apelos por maior ambição do Fórum de Vulnerabilidade Climática, o Chamado de Talanoa à Ação das presidências da COP23 e COP24, a Coalizão de Alta Ambição (Stepping Up Climate Ambition) e vários anúncios de países (incluindo Costa Rica, Maldivas, Chile, Ucrânia, Vietnã, Noruega, Qatar, Líbano, Barbados), o texto final da decisão da COP24 reafirma o prazo de 2020 do Acordo de Paris para o envio de NDCs. No atual clima político, até esse foi um sinal importante.


O texto da decisão também diz que essas NDCs revisadas devem estar em sintonia com os insumos, produtos e resultados do Diálogo de Talanoa. O resultado da COP24 também foi uma provocação a todos os países para que desenvolvam e comuniquem estratégias de descarbonização de longo prazo e aos países desenvolvidos para que ampliem o apoio e ajudem com meios de implementação para permitir que todos cheguem a um nível de ambição maior.

Finanças: mais promessas, mas não o suficiente

 

A Alemanha e a Noruega anunciaram que dobrariam suas contribuições ao Fundo Verde para o Clima, enquanto o Fundo de Adaptação registrou promessas de US$ 128 milhões anuais. Após três anos de discussões, os negociadores concordaram que o Fundo de Adaptação serviria ao Acordo de Paris a partir de 1º de janeiro de 2019.

As regras para reportar o apoio dado no passado e comunicar o financiamento futuro foram melhoradas, com mais detalhes solicitados. No entanto, algumas disposições importantes permanecem opcionais e exigirão um exame contínuo para garantir que os países detalhem a parte financeira de maneira justa e robusta.


Os países também concordaram em considerar futuras comunicações de financiamento a cada dois anos por meio de workshops e diálogos ministeriais de alto nível. O balanço global inclui uma avaliação de como todos os fluxos financeiros estão sendo alinhados com um futuro de baixo carbono. Isso é importante porque para combater as mudanças climáticas será preciso não apenas ampliar o financiamento para soluções, mas retirar gradualmente os investimentos de atividades de alta emissão.


Os países comprometeram-se a iniciar um processo em 2020 para estabelecer uma nova meta de financiamento climático além da meta atual de US$ 100 bilhões por ano para o período após 2025.



Os negociadores também encomendaram uma avaliação das necessidades de financiamento climático dos países em desenvolvimento a cada quatro anos, o que poderia ajudar a informar a ambição do objetivo de 2025.


Será necessário maior financiamento para garantir que os países em desenvolvimento possam implantar soluções climáticas e se adaptar aos impactos cada vez mais extremos de um mundo em aquecimento. O próximo ano será um momento chave para os países ricos demonstrarem a solidariedade global necessária, apresentando promessas ambiciosas para a primeira reposição do Fundo Verde para o Clima. Mais detalhes estão disponíveis aqui.


Grandes anúncios fora das negociações

 

Fora das negociações formais, grandes anúncios ajudaram a pautar as discussões na COP24.
• O Banco Mundial prometeu um novo conjunto de metas de financiamento climático para 2021-2025, aumentando seus investimentos de cinco anos para ações climáticas significativas para cerca de US$ 200 bilhões. Junto a instituições parceiras, o banco também se comprometeu com uma estrutura para alinhar o restante de seus investimentos com as metas do Acordo de Paris.


• A Maersk, empresa de logística que controla 20% do mercado de transporte de contêineres, estabeleceu uma meta de zerar emissões até 2050 – sem o uso de compensações. A empresa não sabe exatamente como atingirá essa meta, mas colocou um desafio a seus fornecedores para fornecer as tecnologias necessárias e está liderando a tarefa de mudar a indústria para um futuro de zero carbono.


• Cerca de 400 investidores, representando US$ 32 trilhões, conclamaram os governos a eliminar o carvão, colocar um preço significativo no carbono e acabar com os subsídios aos combustíveis fósseis como parte da Agenda do Investidor.


• Dezenas de empresas líderes da indústria têxtil assinaram a Carta da Indústria da Moda para a Ação Climática, sob os auspícios da Mudança Climática da ONU.


• Mais membros se juntaram à Powering Past Coal Alliance, incluindo Israel, Escócia e Senegal, bem como as cidades australianas de Sydney e Melbourne.


• O Grupo IKEA comprometeu-se a reduzir as emissões de carbono dos processos de produção em 80% em termos absolutos até 2030, a partir dos níveis de 2016. O novo compromisso abrange as próprias fábricas da IKEA e centenas de fornecedores diretos.


Além disso, o número de empresas que se comprometeram ou já definiram metas de redução de emissões com base científica atingiu 500.


Para 2019: ambição, ambição, ambição

 

O próximo ano deve ser focado em “ambição, ambição, ambição”, de acordo com a Secretária Executiva da UNFCCC, Patricia Espinoza.

Apesar da adoção de bases sólidas para avançar na ação climática, detalhes e elementos adicionais provavelmente precisarão ser adotados nos próximos anos para aperfeiçoar o Livro de Regras de Paris.


Ainda será necessário adotar regras sobre o uso de mecanismos de mercado, sobre o alinhamento do período de implementação das NDCs e sobre como melhorar a tomada de decisão com base em dados e evidências. Isso precisa acontecer na COP25 em 2019. Entretanto, será fundamental buscar esforços para ampliar o financiamento através da reposição do Fundo Verde para o Clima.


Mas isso não será suficiente. O mundo não começou a reduzir agressivamente as emissões globais. A resposta global inadequada à crise climática foi mostrada de forma eloquente por Greta Thunberg, 15 anos de idade, que pediu aos delegados da COP24 que “apertem o botão de emergência” para combater essa crise existencial.


O Acordo de Paris é fundamentado em uma visão do mundo trabalhando em conjunto. Nos próximos dois anos, os chefes de estado precisam urgentemente agir com ousadia para reduzir as emissões, aumentar a resiliência e aproveitar os benefícios econômicos e sociais da ação climática que podem nos impulsionar para um futuro mais seguro e próspero.

IPCC 1,5 °C: Precisamos construir e viver de maneira diferente nas cidades


WRI Brasil

IPCC 1,5 °C: Precisamos construir e viver de maneira diferente nas cidades

Este post foi escrito por Aniruddha Dasgupta e publicado originalmente no WRI Insights.

Em meio a onda de notícias sobre desastres naturais relacionados ao clima e sobre conferências internacionais de mudanças climáticas, é importante reconhecer os verdadeiros pontos de virada - quando um acontecimento é realmente um caso de tomar nota. O relatório especial sobre aquecimento global de 1,5°C do IPCC, lançado no mês passado, é um desses casos.


Nós já estamos vivendo em um mundo que é 1°C mais quente do que as temperaturas pré-industriais. Limitar o aquecimento global a 1,5°C - sendo que cientistas esperam que um aquecimento além desse provoque dano significativamente maior aos ecossistemas globais - exige "transição rápida e de longo alcance" em sistemas de energia, uso da terra, indústria e infraestrutura urbana, conclui o relatório.


Em resumo, nós precisamos viver e construir de forma diferente.


Quem trabalha com foco nas cidades sabe que isso é verdadeiro. A trajetória das principais tendências em áreas urbanas precisa mudar significativamente para se atingir as metas adotadas pelos governos dos países do mundo no Acordo de Paris, nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e na Nova Agenda Urbana. Não estamos precisando de retoques e ajustes, mas de transformações em uma escala massiva, começando agora.

O relatório do IPCC, uma síntese das últimas pesquisas climáticas coletadas por 91 autores, reforça essa mensagem. Desde reduzir emissões até expandir oportunidades econômicas para todos, as cidades são a chave para um futuro sustentável.


Uma forma diferente de construir

 

 

Grandes mudanças no setor da construção são necessárias para limitar o aquecimento a 1,5°C. Nós precisamos construir de forma mais inteligente. As emissões de edifícios precisam cair em 80% a 90% até o meio do século, e toda nova construção precisa ser livre de combustíveis fósseis e com consumo quase zero de energia em apenas dois anos.

Essas mudanças precisam acontecer em todos os lugares. No mundo desenvolvido, nós precisamos ver a otimização e descarbonização dos serviços já existentes. Nos países em desenvolvimento, nós precisamos providenciar novos serviços - incluindo estradas, saneamento básico e eletricidade - para os que ainda não os têm, e as cidades precisam construir esses serviços de forma diferente do que era feito no passado.

Novas soluções precisam ser adotadas rapidamente já que a infraestrutura construída hoje vai durar décadas. É um desafio, mas também uma significante oportunidade de remodelar as cidades - cerca de 75% da infraestrutura que estará em funcionamento em 2050 ainda não começou a ser construída.

Atingir a meta de 1,5°C vai exigir 40% da redução do uso final de energia no setor dos transportes até o meio do século, diz o relatório do IPCC. Escolhas individuais podem ajudar, mas um melhor planejamento urbano pode ir além. Os autores notam que "um planejamento urbano efetivo pode reduzir emissões de gases de efeito estufa no setor de transportes entre 20% e 50%".


Cidades sitiadas

 

Com um aquecimento de 2°C até 2040, mais de 70% das áreas costeiras enfrentarão um aumento do nível do mar de 0,2 metros. Entre os locais que serão mais atingidos estão as áreas urbanas mais densas, incluindo pelo menos 136 "megacidades" (definidas por "cidades portuárias com uma população maior do que um milhão em 2005"). Essa definição não inclui as cidades que entrarão nessa categoria nas próximas décadas por conta do aumento populacional.

Ondas de calor já são uma das principais preocupações para muitas cidades, e o relatório aponta que o desafio será muito maior se nada for feito. "Com 1,5°C, duas vezes mais megacidades (Como Lagos, na Nigéria, e Xangai, na China) poderiam sofrer com ondas de calor, expondo mais de 350 milhões de pessoas a mais a ondas de calor mortais até 2050".

Com 2°C, sem mudanças na construção, como telhados que resfriam ou desenho urbano verdade, cidades como Karachi, no Paquistão, e Kolkata, na Índia, podem esperar novas ondas de calor como a que matou milhares de pessoas em 2015.
(Foto:Flickr/Nicolas Mirguet)

 

Vivendo de forma diferente

 

Não são apenas as mudanças físicas de um mundo aquecido que são alarmantes; são as implicações sociais e econômicas. As mudanças climáticas "multiplicam a pobreza de forma a tornar os pobres ainda mais pobres", diz o relatório.

"Não mitigar o aquecimento poderia remodelar a economia global em meados do século a reduzir a riqueza média e ampliar a desigualdade de renda", diz. "Os impactos mais severos são projetados para áreas urbanas e algumas regiões rurais na África Subsaariana e no sudeste da Ásia".

As cidades são especialmente vulneráveis a essas tendências em parte por que o número de pessoas vivendo em assentamentos informais - áreas que não recebem os serviços básicos de assistência municipal - deve triplicar para 3 bilhões até 2050. O risco para cidades que já estão enfrentando os efeitos da desigualdade é que atender essas populações vai ficar ainda mais difícil, não apenas colocando milhões em risco literal como também arrastando economias urbanas e nacionais.


Será preciso considerar uma ênfase ainda maior em governança, equidade e participação para reduzir os riscos urbanos. Mesmo esforços de adaptação bem intencionados podem sair pela culatra se eles marginalizarem cidadãos pobres.

O relatório "Towards a More Equal City," do WRI, sugere formas de construir cidades para todos mostrando os desafios de equidade setor a setor, assim como explorando abordagens práticas que já funcionam em cidades ao redor do mundo.

 

Cidades para todos

 

O relatório do IPCC é um chamado à transformação em escala massiva - não apenas em política energética ou climática, mas em como nós vivemos e construímos em geral. Apesar de ser fácil focar no potencial de custos de uma mudança como essa, os benefícios podem ser significativos também.


Os autores notam que estão surgindo "economias verdes" urbanas do setor informal, ajudando a atender a demanda por água limpa, por exemplo, e melhorando a reciclagem. E cidades na África e Ásia têm o potencial de dar um salto na forma tradicional de gerar eletricidade, trazendo energia limpa para mais cidadãos e melhorando a capacidade adaptativa ao mesmo tempo (aqui, o relatório cita o trabalho do WRI em gerar energia no Hemisfério Sul) .

Estimativas do valor líquido de investimentos de baixo carbono nas cidades chegam a US$ 16,6 trilhões até 2050, segundo a Coalition for Urban Transitions.

O ritmo furioso da urbanização nos traz a oportunidade de fazer rápidas mudanças. Uma janela para transformação está aberta, e depende de nós aproveitá-la. As cidades são nossa melhor chance de fazer dar certo.

Catlyne Haddaoui contribuiu com esse artigo.

7 temas de desenvolvimento sustentável para acompanhar em 2019

WRI Brasil

7 temas de desenvolvimento sustentável para acompanhar em 2019


Há 100 anos, 1919 foi um ano grandioso: os países assinaram o Tratado de Versalhes para encerrar a Primeira Guerra Mundial, Mahatma Gandhi começou uma resistência não violenta à dominação britânica e o Grand Canyon se tornou um parque nacional.

Um século depois, 2019 dá sinais de ser outro grande ano – e também um ano incerto, como explicou o presidente e CEO do WRI, Andrew Steer, no encontro anual que ocorre no escritório do WRI para apresentar o Stories to Watch.

A seguir, sete histórias para acompanhar neste ano quando se pensa no futuro do meio ambiente e do desenvolvimento internacional:


1) A geopolítica vai impedir a ação climática internacional?

 

 

Abalos políticos em vários países importantes tornam o futuro da ação climática internacional incerto. O Brasil deu uma guinada à direita com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, enquanto o México mudou-se para a esquerda com o novo presidente Andres Manuel López Obrador. Olhando para 2019, os eleitores da Índia e da Indonésia vão votar, enquanto a China enfrenta o desafio de uma desaceleração econômica.

Global emissions rose in 2017 and 2018, after a three-year plateau.

Dois momentos chave mostrarão como essas mudanças afetarão a ação climática internacional: na cúpula do clima da ONU, em setembro, os líderes nacionais indicarão que vão se comprometer com compromissos climáticos mais ambiciosos? Eles aumentarão, em outubro, o financiamento para o Fundo Verde para o Clima, que investe em desenvolvimento de baixo carbono e resiliência climática? E as empresas vão deixar os governos para trás com uma ação climática ousada?


2) A adaptação surgirá como uma grande agenda global?

 

 

Os impactos das mudanças climáticas nunca foram tão evidentes e ameaçadores. O número de desastres climáticos extremos, como secas e inundações, dobrou desde a década de 1990. Hoje, cerca de 150 milhões de pessoas a mais estão expostas a riscos de saúde relacionados ao calor do que no ano 2000.
<p>O número de desastres climáticos extremos, como secas e inundações, dobrou desde os anos 1990. (foto: NPS Climate Change/Flickr)</p>O número de desastres climáticos extremos, como secas e inundações, dobrou desde os anos 1990. (foto: NPS Climate Change/Flickr)
No entanto, há falta de liderança, métricas e financiamento para ajudar as pessoas a se adaptarem a um clima em transformação. "A adaptação tem sido a prima pobre da mitigação", disse Steer.
Isso pode mudar neste ano.

O Banco Mundial anunciou que metade de seus investimentos climáticos serão agora direcionados para a adaptação. Uma nova Comissão Global de Adaptação, liderada por Kristalina Georgieva, Ban Ki-moon e Bill Gates, foi lançada em outubro de 2018 e tem como objetivo valorizar a relevância da adaptação para acelerar ações em todo o mundo. A comissão, formada por 17 países, divulgará em setembro um relatório de pesquisa emblemático, que incluirá vários caminhos para desafios específicos da adaptação.


3) Será que o “fast fashion” vai baixar a velocidade?

 

 

Os consumidores estão comprando 60% mais roupas hoje do que em 2000, e um caminhão de lixo de roupas descartadas é queimado ou enviado para um aterro a cada segundo de cada dia. Os impactos sociais e ambientais do “fast fashion” são impossíveis de ignorar. Por exemplo: uma camiseta de algodão exige 2.700 litros de água para ser produzida, quantidade que forneceria água potável para uma pessoa beber por dois anos e meio.
Há sinais muito incipientes de que a indústria está começando a enfrentar esses desafios, como o considerável crescimento na reutilização de roupas e o surgimento de serviços de locação, como a Rent the Runway e a RealReal. Os fabricantes estão experimentando tecidos mais sustentáveis, como couro cultivado em laboratório e fibras à base de frutas. Esses novos modelos de negócio serão uma tendência duradoura ou uma moda passageira?

Ainda neste ano, a Sustainable Apparel Coalition lançará uma plataforma de relatórios na qual as empresas podem compartilhar informações sobre a sustentabilidade de suas operações. A coalizão tem como objetivo fornecer pontuações de desempenho para marcas, produtos e fábricas. Também neste ano, a iniciativa Science-Based Targets divulgará orientações para a sustentabilidade na produção de vestuário e calçados, que podem ajudar as empresas a definir metas de redução de emissões de acordo com a mais recente ciência climática.


4) As empresas de comodities seguirão seus compromissos de conter o desmatamento?

 

 

Apesar dos compromissos de quase 500 empresas multinacionais para reduzirem o desmatamento em suas cadeias de produção até 2020, 2017 teve a segunda maior perda de cobertura florestal desde 2001, depois de 2016 (os números de 2018 não estarão disponíveis até o final deste ano).

Commodities como soja, óleo de palma e carne bovina são grandes responsáveis por isso. "Estamos em uma situação de crise e esse também é um problema humanitário", disse Steer. “Mais de 200 defensores do meio ambiente perderam a vida no ano passado”.
As empresas que estabeleceram metas para 2020 vão manter o esforço? E será que mais governos se engajarão e apoiarão esses esforços?

Preste atenção em um roteiro anti-desmatamento da Comissão Europeia: se a Indonésia continuará a desacelerar seu desmatamento; e se o presidente Bolsonaro abrirá a Amazônia para a produção de commodities. Atente para a colaboração público-privada [AF1] na Assembleia da Aliança para Florestas Tropicais em maio e se a crescente atenção à biodiversidade gera alguma pressão.

 

 

5) A iniciativa *Belt and Road* dará suporte ao desenvolvimento de baixo carbono?

 

 

A iniciativa Belt and Road, da China, é um importante empreendimento global de desenvolvimento, envolvendo a construção de estradas, portos e outras infraestruturas em mais de 100 países. No entanto, enquanto os líderes chineses defendem a “proteção do meio ambiente” em todos os aspectos do Belt and Road, pesquisas mostram que a maior parte dos investimentos em energia da iniciativa atualmente favorece os combustíveis fósseis em detrimento da energia renovável.
Este ano será fundamental para avaliar se a China está seriamente empenhada em tornar o gigantesco empreendimento ambientalmente mais sustentável. Um grande fórum a ser realizado em 2019 será um bom momento para elaborar diretrizes de sustentabilidade para os projetos da iniciativa. Outros sinais de progresso serão se a China aumentará os investimentos em energia renovável no exterior, como já fez internamente, e se os planos climáticos dos países começam a informar os investimentos do Belt and Road.


6) Micromobilidade: uma moda ou o futuro?

 

 

Bicicletas e scooters compartilhadas estão decolando em cidades ao redor do mundo. Um fato: a Bird, empresa de aluguel de scooters elétricas, é a startup que chegou mais rápido na história ao “status de unicórnio”, com uma avaliação de US$ 1 bilhão.
No entanto, essa revolução de micromobilidade compartilhada tem uma desvantagem: algumas bicicletas e scooters são de baixa qualidade, levando a avarias e desperdícios, enquanto outras se acumulam nas calçadas, retirando espaço dos pedestres. Existem também preocupações com a segurança.


Então, as scooters e as bicicletas compartilhadas serão uma moda passageira ou uma tendência que veio para ficar nas paisagens urbanas?

<p>Scooters compartilhadas em Moscou, Rússia (foto: MaxPixel)</p>Scooters compartilhadas em Moscou, Rússia (foto: MaxPixel)

As decisões tomadas este ano podem ajudar a garantir que seja algo consistente. Ford, Uber, Lyft e General Motors já estão entrando na onda da micromobilidade. Outras empresas entrarão? Fique atento a como as cidades vão regular bicicletas e scooters compartilhadas, incluindo assuntos como licenças, preços e segurança. A New Urban Mobility Alliance (NUMO), que será lançada em breve, pode ajudar a dar orientação. A grande questão é se os líderes urbanos e os planejadores colocarão o foco em projetar ruas para favorecer as pessoas e a micromobilidade em vez dos carros.


7) A ação climática nos EUA vive um ponto de virada?

 

 

O governo Trump tentou reverter mais de 70 salvaguardas ambientais. Mas a ação climática dos EUA não está morta. Na verdade, estados, cidades e empresas estão avançando, expandindo metas de energia renovável e a precificação de carbono.

As eleições de meio de mandato de 2018 deram início a um novo grupo de líderes climáticos, incluindo dez novos governadores com planos de energia limpa elaborados e mais membros do Congresso que apoiam a ação climática. O Green New Deal está injetando mais entusiasmo no debate sobre o clima do que nos últimos anos.

Preste atenção às novas iniciativas de precificação de carbono, aos estados que vão se juntar aos 29 que já possuem planos de energia limpa e às abordagens dos estados e empresas para combater as emissões do setor de transportes, o maior emissor do país. O Congresso apoiará a precificação de carbono, lançará um novo acordo de infraestrutura ou proporcionará mais financiamento para tecnologias limpas? E que postura os candidatos presidenciais de 2020 assumirão sobre o clima?

"Ao contrário da última eleição presidencial, quando a mudança climática basicamente não aparecia em lugar nenhum, será que veremos esse tema como algo central?", Steer provocou. "Desta vez, acreditamos que é muito provável”.

A relevância das cidades para as mudanças climáticas e a melhora da qualidade do ar

A relevância das cidades para as mudanças climáticas e a melhora da qualidade do ar

Desde a COP 21, em 2015 em Paris, os governos municipais têm assumido um papel de protagonismo no combate às mudanças climáticas. Nos Estados Unidos, após o país sair do Acordo de Paris, o movimento “We are still in” (em português, “Nós ainda estamos dentro”) é um exemplo. Isso acontece porque as cidades ocupam, de fato, uma posição crítica para que o combate às mudanças climáticas seja possível: são lar para a maior parte da população, responsáveis por 70% das emissões globais dos gases de efeito estufa e as mais vulneráveis aos efeitos das mudanças no clima. É nas áreas urbanas que a luta deve começar.

De acordo com o C40, 70% das cidades já estão sentindo os efeitos das mudanças climáticas. Cerca de 90% das áreas urbanas estão em regiões costeiras, o que coloca a maior parte delas em risco de inundações devido ao aumento do nível do mar e fortes tempestades. Os gestores locais podem e devem agir para proteger suas cidades de impactos ambientais e econômicos.

No Brasil, a primeira cidade a instituir uma lei municipal de mudanças climáticas foi São Paulo. Em 2009, depois de um ano e meio de discussões, a Política Municipal de Mudança do Clima de São Paulo foi aprovada através de um processo de articulação que envolveu as Secretarias do Verde e do Meio Ambiente junto a outros órgãos municipais, profissionais especializados, sociedade civil e institutos como ICLEI e Fundação Getúlio Vargas.

<p>São Paulo: primeira cidade brasileira a instituir uma política climática municipal (Foto: Diego Torres Silvestre/Flickr)</p>São Paulo: primeira cidade brasileira a instituir uma política climática municipal (Foto: Diego Torres Silvestre/Flickr)
O que fez de São Paulo pioneira entre as cidades brasileiras? Na visão de Rachel Biderman, diretora executiva do WRI Brasil, a resposta está no comprometimento político: “Muitos dos sucessos nesse sentido ocorrem devido à atuação de atores engajados, à presença de um agente político que sabe que a mudança é necessária. No caso de São Paulo, também soma-se o fato de que a lei foi muito bem-feita em termos técnicos, reunindo o melhor das pesquisas científicas e realizando um processo de benchmarking”.

Mudanças climáticas e qualidade do ar

Uma das principais metas estabelecidas pela política climática de São Paulo – reduzir as emissões – está diretamente associada a outro desafio que começa a assolar as cidades brasileiras: a qualidade do ar.

As emissões e a consequente má qualidade do ar afetam, de um lado, a saúde da população e, de outro, o clima como um todo. De acordo com um relatório publicado no último ano pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nove em cada dez pessoas respiram ar contaminado no mundo.

No Brasil, pelo menos 50 mil mortes por ano são atribuídas a complicações decorrentes da poluição atmosférica.

As mudanças climáticas e a qualidade do ar são desafios com muitos pontos de interseção e, conforme aponta Rachel, um dos entraves é que muitas vezes não são endereçados de forma conjunta: “Essas duas áreas estão diretamente relacionadas.

Devem coexistir e ser integradas. Não é possível e não se deve legislar sobre poluição do ar sem ter em vista a situação climática”.

Para isso, acredita a especialista, há um ponto de partida comum: os transportes e o consumo de combustíveis fósseis. “São muitos os fatores que devem ser considerados para o controle da poluição”, afirma Rachel. “As complicações para a saúde não são capazes de dissuadir as pessoas do uso do transporte individual, mas podem ajudar na conscientização do problema e, com isso, colocar a melhora da qualidade dos combustíveis como uma parte da solução. De todos os desafios, equilibrar o uso do veículo privado é o mais difícil. Por conta de toda a imagem criada em torno do carro, é uma luta contra o próprio inconsciente.”

Para começar a mudança: medir e mensurar

Em outubro de 2018, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) aprovou as resoluções 490 e 491, que versam, respectivamente, sobre o controle de emissões de gases poluentes e de ruídos para veículos automotores pesados novos e os padrões de qualidade do ar.
A resolução 490 regula a nova fase do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), que começará a ser aplicada em 2022 e limitará poluentes e ruídos dos novos veículos de uso rodoviário destinados ao transporte de passageiros (ônibus) e mercadorias (caminhões). A resolução 491 reduz sutilmente as concentrações de poluentes permitidas no ar (em relação aos valores anteriores), delimitando valores intermediários até atingir os recomendados pela OMS. Ambas podem ser lidas na íntegra aqui.

André França, engenheiro químico e diretor adjunto de Pós-Licença no Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro (Inea), acredita que o trabalho, agora, deve se encaminhar para outra direção – a devida implementação da política: “É preciso debater políticas públicas e prazos de implementação. Mas isso depende da realidade de cada local e, hoje, nenhum estado tem um inventário de emissões. É preciso ter os dados necessários para caracterizar a situação atual e definir uma meta desafiadora, mas que seja alcançável. Senão, como definir quando será possível atingir esse limite?”.

A definição dos padrões nacionais precisa ser acompanhada por um avanço significativo no monitoramento e na gestão. Medir e monitorar são dois dos desafios que se colocam no trabalho pela melhora da qualidade do ar nas cidades. E isso vale tanto para as emissões quanto para as políticas implementadas. Não é possível estabelecer uma meta de redução de emissões ou da concentração de poluentes atmosféricos sem conhecer o patamar atual.

Cidades podem ser protagonistas

Apesar do monitoramento ser uma função dos estados, as cidades têm jurisprudência sobre a criação e a alteração da política climática urbana. Isso faz dos municípios agentes ativos para melhorar a qualidade do ar e, dessa forma, contribuir também para o combate às mudanças climáticas, como afirmamos no início deste texto.

Ao manter o monitoramento das emissões e da poluição do ar, as cidades geram os dados necessários para garantir que as próprias estratégias de planejamento do município sejam traçadas visando a contribuir nesse sentido. Quando planejamento urbano considera, por exemplo, a manutenção de áreas de proteção ambiental e ações e projetos que contribuam para reduzir emissões, a cidade ajuda a proteger a diversidade biológica e as bacias de captação de água potável, a evitar o deslizamento de encostas em áreas de risco, a regular a temperatura e a umidade da cidade e a melhorar a qualidade do ar.

Belo Monte: o símbolo da relação inescrupulosa entre o governo federal e as empreiteiras



Belo Monte: o símbolo da relação inescrupulosa entre o governo federal e as empreiteiras


Belo Monte: o símbolo da relação inescrupulosa entre o governo federal e as empreiteiras. Entrevista especial com Felício Pontes Jr.

 

Por Patricia Facchin, IHU



O fenômeno da judicialização da política e da justiça, que tem recebido muitas críticas nos últimos anos, é “normal” e poderia ser evitado se não houvesse “vácuo na legislação”, diz o procurador da República Felício Pontes Jr. Segundo ele, “se houvesse uma atuação eficaz do Legislativo, diminuiria a judicialização dos conflitos. Se isso não acontece, o Judiciário é destino normal dessas demandas”. Na avaliação dele, as ações do Judiciário têm como objetivo “combater o maior de todos os males de nossa sociedade: a desigualdade”.


Felício Pontes Jr. é um dos procuradores que atuou junto ao Ministério Público do Pará, questionando o licenciamento ambiental e a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.


Nesta entrevista, concedida pessoalmente à IHU On-Line quando esteve na Unisinos participando da 3ª Semana de Estudos Amazônicos – Semea, ele comenta alguns dos processos envolvidos na obra mais polêmica do país, como a ação civil pública contra a União, a Eletrobras e três das maiores empreiteiras do país (Construtora Andrade Gutierrez S/AConstrutora Norberto Odebrecht S/A e Camargo Corrêa S/A). “Essa é uma ação muito emblemática (…) porque mostrava já desde aquele tempo uma relação inescrupulosa entre o governo federal e as empreiteiras.


Esse momento do licenciamento de Belo Monte está distante cerca de sete anos da Lava Jato”, relata.


O procurador diz ainda que, das ações em que atuou, “Belo Monte é paradigmática porque é a obra brasileira mais cara de todos os tempos; foram gastos 31 bilhões de reais nessa obra. Foi o maior volume de dinheiro público já emprestado para um único empreendimento pelo BNDES — cerca de 25 bilhões de reais.


E uma energia produzida que é ínfima se comparada ao custo da obra”. Além do custo estrondoso, pontua, “a violação dos direitos socioambientais é o que tem causado mais perplexidade a todos nós, porque vidas foram destruídas, comunidades inteiras foram desagregadas e se tirou o sustento dessas famílias”. Apesar de a hidrelétrica ter causado um etnocídio, adverte, o projeto em torno de Belo Monte continua. “É bom que se diga que Belo Monte ainda não acabou: agora está na fase do tal Hidrograma de Consenso, que levará ao fim a Volta Grande do Xingu”.


Felício Pontes Jr. é mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Atualmente é procurador da República da 1ª Região.
A entrevista foi publicada originalmente nas Notícias do Dia em 7-11-2018.



Confira a entrevista.



IHU On-Line – Nos últimos anos o sistema jurídico como um todo, mas em especial o Ministério Público, tem sido acusado de estar promovendo a judicialização da política. Entretanto, de outro lado, parece haver um consenso acerca do empenho do MP na tentativa de se fazer cumprir a legislação socioambiental e, sobretudo mais recentemente, ele tem desempenhado um papel fundamental para tentar garantir os direitos dos povos indígenas. Como o senhor, que integra o MP, avalia a atuação do Ministério no país e o fenômeno da judicialização?


Felício Pontes Jr – O que chamam de judicialização da justiça possui três pressupostos: vácuo na legislação, a desigualdade social e não cumprimento dos direitos humanos fundamentais de parcela da população.


No Brasil, temos esses três pressupostos e mais a missão do Ministério Público de defender a sociedade. Portanto, é normal que tenhamos essas ações judiciais que, na prática, objetivam combater o maior de todos os males de nossa sociedade: a desigualdade. E o Brasil é, apesar de alguns avanços, um dos países mais desiguais do mundo.



IHU On-Line – Como o senhor recebe a crítica feita por muitos especialistas do Direito de que o MP está legislando e de que essa não é a sua função, e sim uma função do Legislativo?



Felício Pontes Jr – Não há possibilidade de haver vácuo na legislação. E as constituições modernas atribuíram ao Judiciário a prerrogativa de zelar pelo respeito a todos os direitos, sejam de índole individual ou social.


Portanto, não se trata de legislar no vácuo, mas sim de fazer com que, num caso concreto, uma parcela da população não venha a ser prejudicada ou considerada cidadã de segunda classe por não possuir acesso a direitos fundamentais. Isto é proporcional: se houvesse uma atuação eficaz do Legislativo, diminuiria a judicialização dos conflitos. Se isso não acontece, o Judiciário é destino normal dessas demandas.


IHU On-Line – Por que essa acusação tem se intensificado nos últimos anos, se o Judiciário atua dessa forma há muitos anos?

Felício Pontes Jr – Sempre houve a atuação do MP desde a Constituição de 1988. Em alguns períodos de modo mais evidente e, em outros, nem tanto. Talvez a diferença agora seja a reação de uma parcela mais conservadora da sociedade brasileira, que sempre existiu, mas cujas ideias não tinham tanta repercussão, mas agora têm. O movimento que defende o Estado Liberal contra o Estado do Bem-Estar Social ficou mais evidente nos últimos anos e, portanto, a repercussão da crítica aumentou.



IHU On-Line – Esse movimento de crítica à judicialização pode estar vinculado à Operação Lava Jato também, ou não?



Felício Pontes Jr – Não tenho certeza. Acho ainda muito cedo para uma avaliação da Lava Jato, que continua em ação. Mas acho que pode estar vindo de várias frentes. O que é explícito é a existência de um movimento, que hoje está muito mais organizado, de reação às ações judiciais do Ministério Público que possuem como objetivo a garantia de direitos humanos fundamentais. Um exemplo disso foi a reforma na legislação trabalhista.



IHU On-Line – Juristas, procuradores e promotores têm se dividido nas avaliações que fazem sobre a Operação Lava Jato. Como o senhor está acompanhando a Operação?



Felício Pontes Jr – O Brasil está passando por um processo de mudança muito grande. A nossa democracia ainda é muito incipiente, acabou de nascer. A nossa Constituição tem somente 30 anos e, embora pareça bastante tempo em termos de anos, é muito pouco perto de países que têm uma estabilização política constitucional grande. Sobre a Lava Jato, repito, ainda é cedo para uma avaliação consistente, mesmo porque ela continua em ação.


IHU On-Line – Aproveitando que anteriormente o senhor mencionou os 30 anos da Constituição, antes do segundo turno das eleições presidenciais os candidatos à presidência da República fizeram correções ao que já tinham dito acerca da Constituição. Haddad, por exemplo, retirou do seu plano de governo a proposta de realizar uma Assembleia Constituinte caso fosse eleito e Bolsonaro desautorizou a declaração de seu vice, general Mourão, de que uma nova Constituinte deveria ser feita por eleitos. Há razões para se pautar a discussão acerca de uma nova Constituição no país?


Felício Pontes Jr – Acredito que não há essa necessidade. Não vejo nada na Constituição que nos mostre que ela precise de uma reforma tão grande a ponto de ter que se convocar uma Constituinte.


Os governos que têm passado pelo Brasil ao longo dos últimos anos têm feito emendas constitucionais sem que isso desvirtuasse o espírito da Constituição. Não consigo ver até agora nenhum ponto que possa fazer com que a Constituição seja um empecilho tão grande para qualquer governo.


IHU On-Line – Em abril deste ano, o Tribunal Regional Federal – TRF da 1ª Região decidiu manter válida a decisão de 2016 que anulou o acordo de cooperação técnica entre a Eletrobras e as empresas Andrade Gutierrez, Odebrecht e Camargo Corrêa para realização dos estudos de viabilidade das obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Em que consistiu esse acordo de cooperação entre a Eletrobras e essas empreiteiras no leilão de Belo Monte e como o senhor avalia a decisão do TRF1?

Felício Pontes Jr – No ano de 2007, o MPF propôs a ação civil pública contra a União, a Eletrobras e três das maiores empreiteiras do país (Construtora Andrade Gutierrez S/AConstrutora Norberto Odebrecht S/A e Camargo Corrêa S/A). O objetivo era declarar a nulidade do Acordo de Cooperação Técnica para elaborar o Estudo de Impacto Ambiental – EIARelatório de Impacto Ambiental – Rima da Usina Belo Monte.


O que nos chamou a atenção é que o Acordo possuía dispensa indevida de licitação e restringia a publicidade do que fosse encontrado no estudo. E não pode haver informação ambiental que seja sigilosa, tampouco essas empreiteiras possuem notório conhecimento para realizar EIA-Rima. Aquilo nos causou uma surpresa muito grande, porque essas empresas não faziam EIA-Rima, ao contrário, elas fazem construção civil, fazem grandes obras, hidrelétricas, mas foram contratadas para fazer o EIA-Rimasem licitação.



Esse “acordo”, que para nós era um “contrato” que envolvia mais de dez milhões de reais, não poderia ser celebrado porque, para que uma empresa possa ser contratada sem licitação, ela tem que dizer que possui um know-how que nenhuma outra empresa tem no Brasil. E aquelas empresas não tinham nenhum know-how em fazer estudo de impacto ambiental. Para resumir, o Tribunal Regional Federal de Brasília aceitou o nosso argumento e determinou a nulidade do contrato.



Essa é uma ação muito emblemática, embora não seja uma das principais ações de Belo Monte, como aquelas que dizem respeito à violação de direitos de povos tradicionais, mas é emblemática porque mostrava já desde aquele tempo uma relação inescrupulosa entre o governo federal e as empreiteiras. Esse momento do licenciamento de Belo Monte está distante cerca de sete anos
da Lava Jato.



IHU On-Line – Quais foram as consequências depois da decisão do TRF1?



Felício Pontes Jr – O Tribunal deu ganho de causa ao MP, dizendo que todo o dinheiro usado tem que ser devolvido. Nós ainda não sabemos qual foi o valor final, ou seja, quanto custou o estudo de impacto ambiental de Belo Monte, porque será descoberto no cumprimento da decisão. Isso tudo vai precisar ser contabilizado para que se possa repassar aos cofres públicos o dinheiro que foi utilizado de forma ilegal.



Satélite da NASA mostra o rio Xingu antes e depois da Usina de Belo Monte (Foto: Joshua Stevens | Observatório da NASA)Satélite da NASA mostra o rio Xingu antes e depois da Usina de Belo Monte (Foto: Joshua Stevens | Observatório da NASA)

 
IHU On-Line – Outras operações ilegais realizadas entre o Estado e grandes empreiteiras chegaram ao MP e agora se confirmam com a Lava Jato?

Felício Pontes Jr – Das ações em que atuei, Belo Monte é paradigmática porque é a obra brasileira mais cara de todos os tempos; foram gastos 31 bilhões de reais nessa obra. Foi o maior volume de dinheiro público já emprestado para um único empreendimento pelo BNDES — cerca de 25 bilhões de reais. E uma energia produzida que é ínfima se comparada ao custo da obra.



IHU On-Line – Essas operações ilegais e esse aporte de dinheiro foram planejados e deliberados para garantir a corrupção da máquina pública?



Felício Pontes Jr – Acho que sim, porque essa hidrelétrica foi objeto de estudo em muitos trabalhos em universidades brasileiras, sejam trabalhos de conclusão de curso, dissertações ou teses de doutorado. Dizem que entre 2010 e 2015 Belo Monte foi o tema mais estudado do país. Todos os documentos que buscávamos em universidades brasileiras e estrangeiras mostravam que a obra não tinha possibilidade de gerar a energia que estava sendo propagada. Nós mostramos isso para o governo por meio de mais de 20 ações que foram propagadas e tivemos conversas com o governo, mostrando que alguns daqueles passos que estavam sendo dados eram passos errados e justificamos o porquê.


IHU On-Line – E qual foi a resposta do governo federal?


Felício Pontes Jr – A resposta foi sempre que não, que o governo não acataria a nossa decisão e o nosso pensamento, que ele já tinha feito todos os cálculos e que Belo Monte daria certo. Hoje vemos que não deu. E é bom que se diga que Belo Monte ainda não acabou: agora está na fase do tal Hidrograma de Consenso, que levará ao fim a Volta Grande do Xingu. De consenso esse hidrograma não tem nada, porque foi imposto pelo governo federal ao Ibama.

Mapa ilustra a localização de Belo Monte (Fonte: Catraca Livre)Mapa ilustra a localização de Belo Monte (Fonte: Catraca Livre)
 
IHU On-Line – O Hidrograma de Consenso é um novo projeto ou uma continuação de Belo Monte?


Felício Pontes Jr – Desde o início do projeto de Belo Monte já existia a necessidade de se fazer esse hidrograma.


IHU On-Line – Hoje são feitas muitas críticas aos impactos socioambientais gerados em Altamira por conta da construção de Belo Monte. Quais são algumas das implicações jurídicas da construção dessa hidrelétrica?

Felício Pontes Jr – Existem 24 ações judiciais contra Belo Monte. Parte delas diz respeito à violação dos direitos indígenas e dos ribeirinhos, porque a sociedade local sofreu de forma muito forte os impactos socioambientais de Belo Monte, mas ninguém sofreu mais que a comunidade indígena e os ribeirinhos, principalmente a comunidade de pesquisadores. Ainda vai demorar algum tempo para que esses direitos sejam recuperados ou para que essas comunidades sejam indenizadas.


violação dos direitos socioambientais é o que tem causado mais perplexidade a todos nós, porque vidas foram destruídas, comunidades inteiras foram desagregadas e se tirou o sustento dessas famílias. Concordo com a procuradora da República em Altamira, Thaís Santi, em considerar que houve um etnocídio ali, porque foram destruídas culturas inteiras; Belo Monte fez isso.


IHU On-Line – Qual será a responsabilidade do Estado em relação à violação dos direitos das comunidades tradicionais?


Felício Pontes Jr – Estou curioso também para saber isso, para saber qual será o resultado depois de se considerar Belo Monte ilegal. Como o Judiciário fará a indenização e o ressarcimento dessas comunidades? Espero que não seja como aconteceu na Colômbia. A Colômbia viveu, em muitos aspectos, um processo muito parecido com o do Brasil.


Um deles é a construção de uma hidrelétrica chamada Urrá, no noroeste da Colômbia, que impactou uma etnia indígena que precisou sair de lá. Os indígenas, que eram donos da terra e empoderados de uma vida digna, foram morar nas periferias das cidades porque o território deles foi inundado.


Quando isso chegou na Corte Constitucional Colombiana, depois da construção da hidrelétrica, a Corte determinou que cada indígena teria que receber da hidrelétrica o equivalente a 30 dólares por mês. Então, transformaram os indígenas, senhores do seu território, em colombianos pobres que estão mendigando nas periferias das grandes cidades colombianas.


Espero que não seja essa a solução que venha a ser dada, mas confesso que qualquer solução que venha a ser dada não conseguirá devolver a dignidade das pessoas atingidas.



IHU On-Line – É possível estimar quando será concluído esse processo?


Felício Pontes Jr – Não, porque precisamos obter sentenças e acórdãos favoráveis para que se possa começar a execução provisória dessas decisões. Esse é um problema que não é só de Belo Monte, mas é um problema nacional da morosidade da Justiça.


IHU On-Line – Em uma entrevista que nos concedeu em 2012, o senhor comentou que muitos juízes determinaram a paralisação do licenciamento de Belo Monte por ilegalidades, mas todas as decisões foram suspensas pelo Tribunal Regional Federal de Brasília. Quais são os conflitos que existem no meio jurídico sobre esse tipo de decisão e por que os juízes interpretam essas ações de forma distinta?


Felício Pontes Jr – É porque partimos de dois pressupostos diferentes. Tivemos até a Constituição de 88 uma doutrina jurídica que dizia que os índios deveriam ser integrados à comunhão nacional. Isso queria dizer que a cultura indígena, a língua e a religião não valiam, e que teríamos que fazer com que os indígenas viessem para a cultura da sociedade hegemônica.


Isso foi mudado com a Constituição de 88, mas todos os livros que os operadores do Direito estudaram diziam que a comunidade indígena era inferior e que os indígenas deveriam ser incorporados à cultura hegemônica. Embora essa doutrina tenha sido quebrada há 30 anos, todos nós estudamos direito na doutrina anterior, que é a doutrina do integracionismo.



IHU On-Line – Essa é a doutrina que fundamenta o Estatuto do Índio?



Felício Pontes Jr – Exatamente. O Estatuto do Índio é de 1973. Nesse sentido, temos duas legislações nas quais a maioria dos dispositivos está em choque. O Estatuto do Índio é uma lei que espelha exatamente a doutrina do assimilacionismo ou integracionismo e a Constituição é uma lei que espelha a doutrina da autodeterminação dos povos indígenas ou doutrina pluralista.


Constituição diz o contrário do que diz o Estatuto do Índio, ou seja, defende que tem que se respeitar a cultura do índio porque o Brasil é um país pluriétnico. Embora exista uma mudança na legislação, não quer dizer que isso entre na cabeça de todo mundo do dia para a noite. Precisamos de tempo e estamos vivendo esse momento de transição, no qual a doutrina velha ainda não saiu e a doutrina nova ainda não se implantou de uma maneira total.


É por isso que há esse choque no Judiciário: o MP ganhou a grande maioria dos casos, e em todos esses casos o presidente do Tribunal suspendeu a decisão, não julgando o mérito, mas por causa de uma lei da ditadura chamada Lei da Suspensão de Segurança.


Essa lei diz que se uma decisão for contrária à economia e à ordem pública, ela pode ser sustada pelo presidente do Tribunal, sem precisar entrar no mérito, isto é, sem precisar saber se a decisão está certa ou errada. Ele susta porque a decisão vai causar prejuízo à nação. Isso foi utilizado pelo governo federal durante todos esses anos de Belo Monte e é por isso que a usina foi construída, porque, pelo mérito, Belo Monte não teria sido construída.


IHU On-Line – O que é preciso fazer para garantir os direitos dos indígenas, segundo a Constituição? Muitos antropólogos argumentam que é fundamental demarcar as terras, mas outros dizem que isso por si só não será suficiente. O que precisa ser feito?


Felício Pontes Jr – Primeiro temos que ver de quem estamos falando, porque cada etnia no Brasil é uma etnia própria, e a própria Constituição determina que se veja cada uma das etnias com os olhos específicos. Portanto, nem todas estão no mesmo grau. Existem etnias, por exemplo, que têm contato com a cultura hegemônica há 500 anos, enquanto outras têm contato há 10 ou 20 anos; isso faz uma diferença enorme na forma de lidar com elas.


Precisamos saber e conhecer primeiro quem são as pessoas a quem estamos nos dirigindo. No Sul, por exemplo, onde as comunidades já têm muito tempo de contato, a realidade dos indígenas não é a mesma que a dos indígenas do Pará ou do Amazonas; eles estão vivendo mundos completamente diferentes e a própria cultura deles é diferente.


Observamos conflitos no Rio Grande do Sul que não encontraremos no Amazonas e percebemos situações no Amazonas que não ocorrem no Rio Grande do Sul. Então, é preciso, primeiro, que se tire essa capa que foi dada por nós, pelos colonizadores, de que os índios são todos iguais, porque eles não são todos iguais.



IHU On-Line – Apesar do reconhecimento da diversidade étnica, o discurso acerca dos indígenas em geral é feito de forma genérica, referindo-se a todos do mesmo modo.



Felício Pontes Jr – Acredito que isso foi proposital, se não foi por desconhecimento. Foi imposto a nós que todos eles eram iguais para que se pudesse facilitar o modo de não conseguirmos compreendê-los ou de lidar com eles, mas eles são completamente diferentes e cada etnia merece ter um respeito próprio. Quando estamos lidando com uma etnia, procuro sempre o antropólogo que é o especialista naquela etnia, que tem estudado aquela etnia, para me assessorar.


Na volta do Rio Xingu, o rio que tem a maior diversidade social brasileira, existem muitas etnias: à margem esquerda do rio existe uma etnia do tronco Jê e à margem direita, uma etnia do tronco Tupi. Elas são completamente diferentes uma da outra, têm modos diferentes de ver a vida, suas cosmologias e religiões são diferentes, e vivem praticamente uma na frente da outra. Quando eu saía do território de uma delas e ia para o território da outra, era preciso mudar completamente o pensamento e ver que aquele era um outro mundo que não tinha nada a ver com o mundo que eu tinha acabado de visitar.


IHU On-Line – Depois de se retirar essa “capa preta”, o que precisa ser feito?

Felício Pontes Jr – Existem várias etapas. Depois da demarcação das terras, saúde e educação são as principais demandas. Também é preciso pensar a soberania alimentar, além de alguns projetos econômicos e de sustentabilidade. A questão da terra é básica, porque se não conseguirmos fazer com que os brancos respeitem os direitos territoriais indígenas, o resto todo não será respeitado. Por isso, chamo o direito à terra de “alicerce”, porque é ele que assegura todos os demais direitos.
Além da demarcação das terras, o MP é amplamente demandado pela questão da saúde, para que as comunidades tenham um atendimento diferenciado, que seja de acordo com a cultura local.


Em seguida, recebemos demanda por educação. O MP tem várias ações judiciais no Tribunal Regional Federal de Brasília, que é o Tribunal de Apelação da Amazônia, que dizem respeito à educação indígena, solicitando que seja respeitada pelo Estado uma educação diferenciada, bilíngue, e para que os professores sejam também indígenas.



IHU On-Line – A demanda é para que as aulas aconteçam nas aldeias?



Felício Pontes Jr – E na língua também. Eles querem professores que sejam conhecedores daquela língua, daquela etnia e daqueles costumes.


IHU On-Line – Como é possível tornar isso viável?


Felício Pontes Jr – Com os próprios professores. Temos conseguido a abertura de universidades para que os indígenas venham, através da cota, estudar. Muitos estudam pedagogia e quando voltam para as suas comunidades, já são conhecedores, se tornam professores não só do currículo dos brancos, mas também do currículo indígena que eles implantam naquela comunidade. O programa de cotas, principalmente de cotas indígenas na Amazônia, foi excelente para que isso pudesse acontecer.


IHU On-Line – Em relação à legislação indígena, alguma questão deveria ser atualizada na Constituição?


Felício Pontes Jr – Não. O que precisamos da Constituição é a sua implementação, é fazer com que ela saia do papel e hoje sei que isso não é fácil.


IHU On-Line – Uma das razões para a realização do Sínodo Pan-Amazônico é a constatação da Igreja de que a Amazônia é um território que está sendo disputado. Quais são os empreendimentos que estão sendo projetados ou estão em disputa na Amazônia e que questões jurídicas estão envolvidas nessas disputas?


Felício Pontes Jr – Eu atuo no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que é o Tribunal de Apelação da Amazônia, e todas as decisões que são tomadas na Amazônia, na esfera federal, são recorridas nesse tribunal. Ali existem 534 ações de recursos judiciais em tramitação que dizem respeito aos povos da floresta. Eles mostram que a Amazônia vive hoje o choque entre dois modelos diferentes de desenvolvimento. O primeiro pode ser chamado de desenvolvimento predatório. O segundo, de socioambiental.

O primeiro modelo foi sintetizado de forma bem didática na Encíclica Laudato Si’, do papa Francisco. No capítulo em que cita a Amazônia duas vezes, a Carta constata que “o cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho econômico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua preservação. 


Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício econômico que se possa obter”. A consequência disso está explicada no item seguinte da Carta, “deterioração da qualidade da vida humana e degradação social”, a qual, a seu turno, leva a uma “desigualdade planetária

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O modelo de desenvolvimento predatório se implantou na Amazônia em atividades básicas: madeira; pecuária extensiva, mineração, monocultura e energia. E criou consequências desastrosas. Fora o ciclo da borracha, durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil não havia realizado nenhum plano de desenvolvimento da Amazônia. Isso apenas se deu durante a ditadura militar.


Em termos simples, o plano era a exploração de madeira, em primeiro lugar. O que sobrasse da floresta seria derrubado para a plantação de capim (pecuária extensiva). Paralelamente a essas atividades, o plano era explorar todos os minerais possíveis para exportação. Os rios foram vistos apenas como fonte de energia elétrica, esquecendo-se de seu uso múltiplo. E mais recentemente, trocou-se a floresta mais biodiversa do Planeta pela monocultura de commodities.

Para financiar esse plano houve três grandes fontes públicas: Banco do BrasilBanco da Amazônia e Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – Sudam. Não faltou dinheiro. Porém o resultado não se coadunou com a Amazônia. A região tinha uma taxa de desmatamento de 0,5% na década de 1970. Essa taxa alcançou quase 20% na primeira década deste século. Ou seja, em cerca de 40 anos desmatou-se quase ¼ da Amazônia brasileira.


Essa parte desmatada concentra hoje 9 em cada 10 mortes de ativistas no campo no Brasil. E mais. Desde 1995, foram libertados cerca de 55 mil trabalhadores escravizados em todo o país. Metade estava na Amazônia.


Outra consequência da implantação desse modelo foi um forte êxodo rural. Em 1960, 35% da população da Amazônia era urbana. Hoje, após a massificação desses projetos, quase 80% dos amazônidas estão nas cidades.


Índice de Desenvolvimento Humano – IDH da região é inferior ao da média nacional — que já é vergonhoso. Portanto, a injeção de dinheiro público promoveu mais concentração de renda, desmatamento e violência. A conclusão é que esse plano, baseado em atividades predatórias, não obteve sucesso, sobretudo do ponto de vista socioambiental.


A Encíclica Laudato Si’ tem razão: “o ambiente humano e o ambiente natural se degradam juntos”.
Em oposição a esse modelo está o socioambiental. Ele parte de um princípio básico: articulação entre a biodiversidade e a sociodiversidade. Dito de outro modo, ele concilia desenvolvimento com preservação ambiental. É concebido e voltado para os povos da floresta que possuem centenas de anos em conhecimento na forma de lidar com os recursos florestais sem o impacto suicida.

Suas principais atividades podem ser sintetizadas no termo agroecologia. São produtos cada vez mais fortes no mercado, como açaí, castanha-do-pará, cacau, óleos de andiroba e copaíba… Isso sem falar no que ainda não foi estudado. O Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG estima que, de 10 espécies existentes no Planeta, uma esteja na Amazônia. O potencial farmacológico da flora amazônica só foi estudado em 5%. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpaestima que 788 espécies de sementes da região possuem interesse econômico, mas apenas metade delas foi estudada.


É um modelo redistribuidor de renda porque predomina a forma coletiva de uso da terra, como reservas extrativistas, terras indígenas, territórios quilombolas e projetos de desenvolvimento sustentável. Seu cultivo é realizado por indígenas, quilombolas, camponeses(as), agricultores(as) familiares e povos e comunidades tradicionais. Essa forma de agricultura é a responsável por cerca de 70% dos alimentos dos brasileiros.


Mesmo que se leve em conta apenas o aspecto econômico, o conjunto, por exemplo, de 17 tipos deatividades do ecossistema amazônico — do abastecimento de água e regulação climática ao fornecimento de alimentos, como peixes, frutas e castanhas — atinge 692 bilhões de dólares por ano.


desmatamento inviabiliza essas atividades. Os mais respeitados estudos sobre mudança climática informam que a Amazônia é decisiva para a fertilidade das terras do centro-oeste, sul e sudeste do Brasil, além do norte argentino. Tudo por causa da umidade transportada para essas regiões.

O professor Antônio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, apresentou um trabalho em que faz a revisão de mais de 200 estudos sobre o clima e a Amazônia. Denominado O Futuro Climático da Amazônia, o relatório é um alerta impressionante sobre as consequências da destruição de nossa maior floresta.


Um dos segredos revelados é que no Brasil, ao contrário de outros países, não existem desertos na faixa do Trópico de Capricórnio (centro-sul). O motivo para a manutenção de ciclos hidrológicos amigáveis nessa região é a Floresta Amazônica. Basta olhar para o lado, onde o poder regulatório da umidade amazônica não chega por causa da barreira natural dos Andes. Ali está o deserto do Atacama, no Chile. Na mesma faixa ficam as maiores cidades do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro.


No relatório, o ecossistema amazônico é definido como uma bomba biótica, impulsionando umidade pelo céu do país, e funcionando como o coração do ciclo hidrológico. São os chamados rios aéreos, que despejam mais água no centro-sul do Brasil do que o Rio Amazonas despeja no Atlântico. Para o cientista, é preciso um esforço urgente para reverter a destruição do ecossistema amazônico.


E mais. Empreendimentos em bionegócios na Amazônia já são responsáveis por pelo menos 1,2 mil produtos e serviços, em setores como os de alimentos, fármacos, essências, turismo e artesanato. Só o mercado mundial de fitoterápicos movimenta 50 bilhões de dólares anuais. No Brasil, esse mercado é recente. Movimenta 500 milhões de dólares/ano.


É também o modelo dos povos que consideram que desenvolvimento é possuir exatamente o que já possuem: água limpa e floresta protegida, como afirma o cacique-geral Munduruku, Arnaldo Kaba.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a proposta do Sínodo Pan-Amazônico e a atuação da Igreja Católica junto às comunidades tradicionais na região?

Felício Pontes Jr – A Igreja é fundamental na Amazônia. A Amazônia é uma área onde o poder público não tem uma presença efetiva na sua imensa maioria. Existem lugares onde as violações de direitos são muito fortes e esses conflitos não chegam até o poder público, porque não existe Ministério PúblicopolíciaIbamaIncra e os órgãos estaduais presentes de maneira forte na região.


Igreja tem um papel fundamental e, de um modo geral, não se esconde desse papel. Basta ver que padres e freiras são ameaçados de morte na Amazônia, exatamente porque eles não se escondem e não se furtam a fazer com que essas violações de direitos sejam reparadas. Além disso, eles não fazem justiça com as próprias mãos. Ao contrário, acionam o poder público para que ele possa estar presente nessas áreas.


Por conta disso, a Igreja tem um papel fundamental. Eu recebi, enquanto era procurador na Amazônia durante 18 anos, informações muito mais preciosas que vinham do Cimi ou da CPT ou de alguma paróquia do interior da Amazônia, mostrando onde estava a extração ilegal de madeira, um garimpo irregular ou a contaminação de um rio, do que aquelas que vinham da Polícia Federal ou do Ibama. Isso, para nós, é fundamental e faz com que ganhemos tempo, tenhamos informações qualificadas do local do conflito, podendo se fazer presente e evitar mortes.


IHU On-Line – As Organizações Não Governamentais – ONGs também contribuem com o MP?


Felício Pontes Jr – As ONGs também, mas nenhuma delas têm a capilaridade que a Igreja tem. Então, a Igreja tem um papel fundamental. Se não aconteceram hoje mais mortes de líderes indígenas, quilombolas, ribeirinhos e de populações tradicionais na Amazônia, foi por conta da atuação da Igreja. Se não existisse essa atuação da Igreja, nós iríamos saber do conflito depois que as pessoas estivessem mortas.


(EcoDebate, 24/01/2019) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

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