Estudo pode revolucionar uso de etanol em carros
elétricos
A demanda pelo biocombustível pode ganhar uma nova dimensão,
além de facilitar o abastecimento de veículos elétricos em qualquer posto
brasileiro
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06 de março de 2021 às 13h05
Por Agência Fapesp
A ciência pode estar perto de viabilizar carros elétricos
sem tanque de hidrogênio, que dispensam recarga em tomadas e que podem ser
abastecidos em qualquer posto do Brasil. O estudo conduzido pelo Centro de Inovação em Novas Energias (Cine) e
publicado no International Journal of Hydrogen Energy se
propõe a melhorar a estabilidade de células de combustível a etanol.
O Brasil é o maior produtor mundial de etanol de
cana-de-açúcar e o segundo maior quando consideradas outras matérias-primas. O
biocombustível renovável vem sendo vendido em todos os postos do país. Mas,
agora, além de encher os tanques dos carros que têm motor de combustão interna,
pode ser usado também para movimentar carros elétricos.
Isso porque o etanol pode ser usado para gerar hidrogênio e,
a partir dele, produzir eletricidade. O processo, neutro em emissões de
carbono, é integralmente realizado em um único dispositivo: uma célula a
combustível de óxido sólido (SOFC, na sigla em inglês), assim chamada porque
seu eletrólito é composto por um material sólido, geralmente um óxido.
No carro elétrico a etanol, cujo primeiro protótipo foi
lançado pela Nissan em 2016, não há tanques de hidrogênio e as baterias
dispensam tomadas para recarregá-las. Em vez disso, há uma célula a combustível
a etanol.
Agora, uma pesquisa liderada por Fábio Fonseca, do Cine, deu
um passo importante no sentido de melhorar o desempenho dessas células a
combustível. “O trabalho aprofunda uma sequência de estudos em que tentamos
avançar o uso de etanol em células a combustível de óxidos sólidos”, diz
Fonseca, que é gerente do Centro de Células a Combustível e Hidrogênio do
Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen).
“O impacto que essa tecnologia pode ter no país é
gigantesco”, informa o pesquisador. “Podemos pensar em automóveis que dispensam
tanques complexos de hidrogênio e capazes de abastecer em qualquer posto, com
carregamento tão rápido quanto encher o tanque de etanol. Podemos ir além e
levar eletricidade a comunidades distantes do grid, bastando
abastecê-las com o etanol – um carregador denso de energia líquido, renovável e
disponível”, completa.
Desafios e possíveis soluções para o uso do etanol
As SOFCs estudadas por Fonseca e colaboradores são formadas
por camadas de materiais diferentes que cumprem funções complementares. Duas
camadas compõem o ânodo. Na catalisadora, o etanol é transformado em hidrogênio
e compostos baseados em carbono. Na eletroquímica, a energia química do
hidrogênio é convertida em energia elétrica por meio de reações redox.
O processo, contudo, ainda apresenta limitações,
principalmente, a formação de depósitos de carbono na célula a combustível, que
prejudicam o seu desempenho ao longo do tempo.
Pensando em resolver esse problema, o grupo desenvolveu
variantes do material que compõe a camada catalisadora do ânodo, normalmente
constituída por um compósito de níquel (Ni) e óxido de cério (CeO2). Os
pesquisadores introduziram pequenas proporções de outros elementos (todos
metais não preciosos) no óxido de cério e avaliaram o desempenho de cada nova
variante como catalisadora da conversão do etanol na SOFC.
“Estudamos sistematicamente o uso de elementos dopantes
visando melhorar o desempenho e minimizar a dependência de metais preciosos na
conversão interna e direta de etanol em eletricidade”, conta Fonseca. “A ideia
final é ter estabilidade e evitar a degradação do dispositivo”, completa.
O estudo mostrou que o óxido de cério dopado com zircônio ou
nióbio evita os depósitos de carbono sem prejudicar a decomposição do etanol em
hidrogênio e mantendo estável o funcionamento da SOFC por, pelo menos, cem
horas. Em outras palavras, o material mostrou-se eficiente para transformar
etanol em hidrogênio sem gerar efeitos não desejados em células a combustível
de óxido sólido.
O que é o Cine?
O Cine é um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE)
constituído pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
e pela Shell na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de
São Paulo (USP) e Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares
Desmatamento põe municípios da Amazônia na liderança de emissão de gases de efeito estufa
Duda Menegassi quinta-feira, 4 março 2021 18:46
Em levantamento inédito realizado em nível municipal, o Observatório
do Clima produziu um mapa detalhado das emissões de gás carbônico dentro
do Brasil. O resultado da lista dos maiores emissores torna óbvio o
peso do desmatamento nessa equação. Sete dos dez municípios responsáveis
pelas maiores fatias de gases de efeito estufa estão localizados dentro
da Amazônia. A liderança é de São Félix de Xingu, no Pará, onde somente
a destruição da floresta respondeu por 25,44 milhões de toneladas
brutas de gás carbônico equivalente em 2018, cerca de 85% do total
emitido pelo município.
Juntos, os dez municípios que lideram o ranking das emissões
respondem por 172 milhões de toneladas brutas de gás carbônico
equivalente (CO2e).
Esse valor é maior do que a emissão de países inteiros, como o Peru ou a
Bélgica. Os dados são do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de
Efeito Estufa – o SEEG
– que gera estimativas anuais das emissões brasileiras desde 2012 e que
pela primeira vez foi realizado em nível municipal. Atualmente, o
Brasil é o 5º maior emissor de gases de efeito estufa do mundo.
Nas primeiras posições, aparecem três municípios amazônicos: São
Félix do Xingu, Altamira – ambos no Pará – e Porto Velho, em Rondônia.
Apenas no quarto lugar aparece São Paulo. As cidades de Pacajá (PA),
Colniza (MT), Lábrea (AM), Novo Repartimento (PA), Rio de Janeiro (RJ) e
Serra (ES), completam o ranking.
“Até hoje menos de 5% dos municípios brasileiros tinham algum
inventário de emissões de gases de efeito estufa. Agora todos terão os
dados para uma série de 20 anos e esperamos que isso sirva de estímulo
para promover o desenvolvimento local com redução das emissões e
enfrentamento das mudanças climáticas”, explica Tasso Azevedo,
coordenador-geral do SEEG. “Como os dados são disponibilizados de forma
aberta e gratuita, significam também uma enorme economia de recursos
públicos, que podem ser focados nas ações para reduzir emissões”,
completa.
Durante a apresentação do SEEG Municípios,
nesta quinta-feira (4), o secretário-executivo do Observatório do
Clima, Marcio Astrini, reforçou que a plataforma de dados é importante
para gerar engajamento, pois “qualquer solução de clima vai precisar do
engajamento local, dos municípios”. Astrini acrescentou ainda que “o
maior problema das emissões no Brasil estão ligados ao desmatamento,
essa deve ser a ação prioritária do governo”.
O SEEG calculou as emissões de gases de efeito estufa de todos os
5.570 municípios brasileiros, de 2000 a 2018, e detalha as fontes das
emissões por setor: energia, transporte, indústria, agropecuária,
tratamento de resíduos e mudanças de uso da terra e florestas.
No caso de São Félix do Xingu, a principal razão por trás da emissão
total de 29,7 milhões de toneladas brutas de CO2e em 2018 é o
desmatamento, que responde por 25,44 milhões de toneladas, seguida pela
agropecuária, com 4,22 milhões de toneladas de CO2e. O município
paraense possui o maior número de cabeças de gado do país e a digestão
do rebanho bovino é uma das principais responsáveis pela emissão de
gases de efeito estufa.
Em todo Brasil, o setor da agropecuária foi a maior fonte emissora de
gases de efeito estufa em mais da metade dos municípios (65,8%) em
2018.
A emissão per capita, ou seja, o total emitido dividido pelo número
de habitantes do município, também é gritante nos campeões de emissão
amazônicos. Em São Félix do Xingu, por exemplo, cada morador emite 225
toneladas de CO2e por ano, um número quase 22 vezes maior que a média
brasileira e 12 vezes maior que a emissão per capita dos Estados Unidos.
No caso de Colniza, no noroeste do Mato Grosso, sexto maior emissor
com 14,3 milhões de toneladas de CO2e e apenas 39.861 habitantes, o
município possui uma emissão per capita bruta de 358 toneladas, a maior
do Brasil.
Remoções de gases
Do outro lado da moeda, os mesmos municípios amazônicos que lideram
as emissões, também são responsáveis pelas maiores remoções de gases de
efeito estufa da atmosfera, através das áreas de floresta que ainda
existem (parte delas asseguradas por áreas protegidas). É o caso de
Altamira, segundo maior emissor e o campeão das remoções, com 22
toneladas de CO2e removidos, e o próprio São Félix do Xingu, com
remoções de 10 milhões de toneladas. Em ambos os casos, o principal
responsável pela retirada dos gases da atmosfera são as áreas protegidas
– unidades de conservação e Terras Indígenas – que existem no
território municipal.
Weber, Fachin e Moraes votam pela inconstitucionalidade da redução do Conama no STF
Duda Menegassi segunda-feira, 8 março 2021 16:11
Na última sexta-feira (5), teve início o julgamento virtual no
Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o decreto presidencial que reduziu a
composição e alterou o funcionamento do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama), em maio de 2019. Relatora da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 623),
a ministra Rosa Weber emitiu voto favorável à anulação do decreto, em
que reconheceu a inconstitucionalidade da medida que diminuiu a
participação da sociedade civil em mais de dois terços no conselho. Os
ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes seguiram o voto de Weber.
A ação de inconstitucionalidade, protocolada em setembro de 2019 pela Procuradoria-Geral da República (PGR), aponta que o Decreto nº 9.806/2019,
ao alterar a composição e funcionamento do Conama, violou os preceitos
fundamentais da participação popular direta, da proibição do retrocesso
institucional e socioambiental, da igualdade política e da proteção
adequada e efetiva do meio ambiente.
O decreto publicado pelo presidente Jair Bolsonaro em maio de 2019
diminuiu as cadeiras de representantes de entidades ambientalistas no
Conselho de 11 para 4; reduziu o mandato das entidades de 2 anos para
apenas 1, sem possibilidade de recondução; substituiu o método de
escolha das entidades, antes selecionadas por eleição, para sorteio;
restringiu o acesso aos assentos às entidades ditas de âmbito nacional;
retirou os assentos do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), da Agência Nacional de Águas (ANA), do
Ministério da Saúde e de entidades ligadas à questão indígena; reduziu
os assentos para os estados, que antes tinham direito a um representante
próprio, para um assento por região geográfica (sendo 5 no total); e
reduziu de 8 para 2 as vagas por municípios, restrito às capitais; e
extinguiu os cargos de conselheiros sem direito a voto, que eram
ocupados por representantes do Ministério Público Federal e Estaduais, e
da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara
dos Deputados.
No total, o conselho foi reduzido de 93 para 23 assentos com direito a voto.
“É correto afirmar, como explicitado na premissa da democracia
constitucional participativa e paritária e dos direitos procedimentais
na governança ambiental (arts. 1º, parágrafo único, art. 5º, caput, art.
225, CRFB), que as regras implementadas pelo Decreto n. 9.806/2019
(art. 1º), ao alterarem o art. 5º, incisos III a X, do Decreto n.
99.274/1990, obstaculizam, quando não impedem, as reais oportunidades de
participação social na arena decisória ambiental, ocasionando um
déficit democrático, procedimental e qualitativo, irrecuperável”,
escreveu Rosa Weber em sua minuta de voto.
A ministra do Supremo destacou a relevância do papel do Conama na
elaboração das políticas ambientais, com cerca de 500 resoluções já
emitidas que atuam, em conjunto com a legislação primária, para
construir o “desenho normativo de proteção e regulação do meio
ambiente”. Weber defendeu ainda que “ao conferir à coletividade o
direito-dever de tutelar e preservar o meio ambiente ecologicamente
equilibrado, a Constituição exigiu a participação popular na
administração desse bem de uso comum e de interesse de toda a sociedade”
e que, portanto, o funcionamento do Conama deve observar o modelo
democrático constitucional.
Na justificativa, Weber chama atenção de que a reformulação do Conama
concentrou 43% dos assentos no setor do Executivo Federal e 29,6% entre
os entes federados (estados e municípios). No novo arranjo, coube à
sociedade civil apenas 25,9% dos assentos, sendo 17,3% para entidades
ambientalistas e 8,6% para empresariais.
“Esse quadro demonstra que os representantes da sociedade civil não
têm efetiva capacidade de influência na tomada de decisão, ficando
circunscritos à posição isolada de minoria quanto à veiculação de seus
interesses na composição da vontade coletiva . Igual posição foi
destinada aos entes subnacionais e às entidades empresariais. Dito de
outro modo, o Executivo Federal, ao deter 43% do poder de voto no
colegiado, em contraponto aos 30% do modelo anterior, assume uma posição
de hegemonia e controle no processo decisório, eliminando o caráter
competitivo e responsivo do Conama”, explica a ministra do Supremo.
O Sertão da Trijunção e a ideia de um Brasil que valoriza a biodiversidade
Bruno Moraes terça-feira, 9 março 2021 12:35
“Agora funcionou!”
As palavras saíram dos alto-falantes do celular, bem quando eu
começava a considerar a remarcação da entrevista para uma data com menos
imprevistos. Era uma sexta-feira à noite de calor em fevereiro, e, após
três desastres consecutivos, dois computadores reiniciados e a
frustração que acompanha esse tipo de insucesso, o quarto serviço de
videoconferência finalmente permitiu que os dois lados se ouvissem.
Mesmo antes de anoitecer, a vida do meu entrevistado, o professor da
Universidade de Brasília Dr. Reuber de Albuquerque Brandão, já tinha
começado a lhe pregar peças mais cedo naquele mesmo dia, com imprevistos
que mudaram toda a sua agenda, incluindo o horário da nossa conversa.
Eu aciono o gravador de voz do computador, para que o microfone pouco confiável do notebook
capte o melhor que consegue os sons da conversa feita através do
celular. Torço para que o resultado disso seja algo possível de se
transcrever.
A conversa que se segue – felizmente gravada com bastante sucesso – é
uma das melhores de minha curta carreira de comunicador de ciência. O
suficiente para me lembrar do porquê ter escolhido a profissão: contar,
com base em dados do passado, histórias sobre futuros possíveis nos
quais se possa acreditar.
Os dados que embasam esta história vêm de vinte anos de pesquisa na
Região da Trijunção, no encontro entre o sudoeste da Bahia, o noroeste
de Minas Gerais e o nordeste de Goiás, onde um grupo de proprietários de
terra, cientistas e gestores tentaram implementar uma visão de uso da
terra que aliasse a produção agrícola, a conservação da natureza e o
desenvolvimento local.
De um caiaque para o sertão
“A Trijunção virou um local de encontro,” afirma Brandão. “Além da
junção geográfica, ela também acabou por juntar pessoas muito
diferentes, com histórias muito diferentes. E, ao final de muitos anos
de trabalho, esse livro é a culminação de vários anos de pesquisa, nos
quais a gente finalmente conseguiu juntar uma galera grande, um grupo
bem diversos de conhecimentos, habilidades e interesses.”, completa ele.
O livro em questão, “História Natural do Sertão da Trijunção do Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil”,
lançado em 2020, é o motivo de nossa conversa. A publicação conta com
trinta e um autores de seus onze capítulos, totalizando 261 páginas
recheadas de texto, fotografias e reproduções de obras de arte
inspiradas pelo Sertão da Trijunção, região de 880 mil hectares de
Cerrado com elementos de Caatinga. Brandão foi um dos editores, além de
coordenador geral da obra, que compila uma série de capítulos sobre a
pesquisa biológica e hidrológica na região, misturados com relatos sobre
a história do local e de sua relação com a conservação da natureza
aliada ao uso da terra.
Reuber, que se descobriu zoólogo ainda criança – ao aprender que a
profissão de veterinário olhava para um ângulo muito diferente da vida
animal do que o enfoque que ele buscava – é um ótimo candidato para
compilar tanto ciência quanto impressões subjetivas sobre a Trijunção.
Isto porque ele esteve lá desde o princípio da implementação de um novo
projeto regional, por parte de proprietários de terra e empreendimentos
que se estabeleceram por ali com a intenção de criar reservas em suas
propriedades e promover uma agricultura que respeitasse o Cerrado.
“Eu participava de grupos de ambientalistas em Brasília desde muito
novo, eu acompanhava o pessoal em ações que iam de limpar cachoeiras até
tocar violão no meio do mato à noite”, conta o pesquisador, à época um
estudante de graduação em Biologia da UnB. Em meio a um desses
encontros, Reuber conheceu um funcionário do IBAMA que o convidou a
secretariar um projeto no Amazonas.
“Era na época da Eco 92, e acabou virando uma das propagandas da
então Secretaria do Meio Ambiente [órgão que voltaria a ser ministério
ainda em 1992]. Parte da expedição era fazer o trajeto entre Coari e
Manaus, mais de 400 km de Rio Solimões, em duplas de caiaque. E eu dei
um jeito de sair do caiaque e ir parar num barco de cientistas, onde
estava Judith Cortesão, que a gente homenageia no livro. E a Judith Cortesão tinha um secretário pessoal que era o Theodoro Machado.”
Machado, um dos autores do livro, estava adquirindo uma propriedade
na Trijunção, e convidou alguns dos amigos que fez nesta expedição a
conhecerem o local. Durante a visita, Reuber aproveitou para coletar
alguns répteis e anfíbios, possivelmente as primeiras coletas biológicas
da região, que seriam a base para as décadas de pesquisa que se
sucederam, compiladas na publicação do ano passado.
Cultura, História e Ciência
A introdução geral do livro destaca
que Trijunção, além de três estados, também reúne “cultura, história e
ciência”. As coletas de herpetofauna (nome que engloba répteis e
anfíbios de um local) conduzidas informalmente por Reuber logo foram
seguidas por estudos da flora e da fauna da região.
A constatação destes estudos – muitos
dos quais originaram capítulos do livro – é a de que a Trijunção é um
dos pontos de Cerrado mais bem conservados do Brasil. Com treze Unidades
de Conservação protegendo cerca 30% de toda a região (256.875
hectares), muitas destas reservas particulares, a região pode ser
considerada um refúgio de espécies do bioma. Ao longo do território
Brasileiro, o Cerrado tem sido substituído em velocidade alarmante por empreendimentos agrícolas que,
ao contrário dos que moveram a Trijunção na década de 1990, não têm a
conservação da biodiversidade no centro das preocupações. Mesmo a
Trijunção, lar do maior Parque Nacional do Cerrado, o Parna Grande Sertão Veredas, já sente os efeitos da intensificação agrícola do Cerrado brasileiro.
“Teve uma intensificação da agricultura na região. Soja também, mas
outros produtos”, conta a professora da Universidade Federal de Lavras
Dra. Renata Dias Françoso Brandão, explicando que “se você observa uma
imagem de satélite, vai enxergar em uma região bastante pequena uma
quantidade de pivôs agrícolas que vão de dezenas a uma centena. E isso
tudo em um processo de duas décadas.”
Renata é formada em Engenharia Florestal, uma graduação que capacita
profissionais a atuar em áreas tão diversas quanto a conservação de
florestas ou a análise da resistência de chapas de madeira. Desde a
graduação, porém, ela teve certeza de que o ângulo ecológico de sua
formação era o que mais a cativava.
Além de autora e editora do livro da Trijunção, a ecóloga cuidou da
produção gráfica da obra. Além da junção de estados, biomas e histórias,
a Trijunção representa para Reuber e Renata a junção de suas vidas:
hoje casados, eles se conheceram trabalhando em campo, na paisagem
adornada por cerrado denso e carrasco de caatinga.
Entre assuntos diversos demais para caberem em uma única reportagem,
Renata deu uma ênfase especial à diminuição da disponibilidade de água
na região devido ao rebaixamento do lençol freático, que ameaça tanto a
agricultura quanto a vida selvagem da Trijunção.
“Existem lagoas da região, tanto temporárias quanto perenes, que
estão começando a desaparecer”, ela comenta. “Para o Reuber, que
trabalha com anfíbios e outros animais que dependem de corpos d’água
como jacarés, isso é um desespero. Como vai ficar uma população de
jacarés sem água? Para onde eles vão dispersar?”
Um dos capítulos do livro é inteiramente dedicado ao jacaré-paguá, um
dos menores e menos estudados crocodilianos do mundo, apesar de ocorrer
da Venezuela ao Paraguai, distribuição ampla que inclui cinco biomas
brasileiros. Compilando tudo o que se conhecia anteriormente – e,
principalmente, os enigmas sobre essa espécie pouco conhecida pela
ciência – o capítulo traz uma série de dados derivados de estudos da
dieta do jacaré-paguá na região da Trijunção, onde eles se alimentam
principalmente de invertebrados como besouros, borboletas e aranhas.
Aparentemente, o paguá – ao contrário do significado de seu nome
popular, que seria algo como “jacaré abestado” – chega a fazer incursões
em terra para procurar por essas pequenas presas. Na água, além de
outros invertebrados, capturam peixes e aves.
A Trijunção é também lar de uma diversidade imensa de anfíbios, grupo
particularmente sensível à seca, por sua reprodução completamente
dependente da água. O capítulo sobre a herpetofauna do Parna Grande
Sertão Veredas destaca 47 espécies de anfíbios catalogadas, o que
corresponde a quase 25% da diversidade conhecida de anfíbios de todo o
Cerrado.
O sumiço das águas (e uma miragem de futuro)
Os efeitos do desaparecimento de lagoas sobre a fauna não se atêm a
animais aquáticos e subaquáticos. A Dra. Renata explica que, em épocas
de seca, com menos água disponível na paisagem, era comum ver animais
como lobos-guará e veados-campeiros buscando as lagoas para se hidratar.
E existe ainda outro efeito, preocupante para a viabilidade ecológica e
econômica da área em longo prazo.
“Além dos animais que dependem de água, tem também o risco para a
própria vegetação”, conta Renata. “Eu estive lá no ano passado para
instalar parcelas para amostrar a vegetação. A gente pôde observar que,
nas parcelas próximas às lagoas, está havendo uma mortalidade altíssima
de pequi. A gente acredita que o lençol freático está abaixando a ponto
de impedir o acesso à água por parte das raízes dessas árvores.”
Um dos capítulos do livro da Trijunção – escrito pelos geólogos Maria
Tereza Pantoja Gaspar, da Coordenação de Águas Subterrâneas da Agência
Nacional de Águas, e José Eloi Guimarães, professor da UnB – se debruça
sobre a complexa dinâmica hídrica da região. De forma muito didática, os
autores discutem possíveis causas do rebaixamento do lençol freático,
como a alteração do regime de chuvas na região e a intensificação de um
tipo de agricultura que dificulta o retorno das águas de chuva para os
aquíferos subterrâneos. A Dra. Renata comenta brevemente:
“É um conjunto de coisas. Não é nada isoladamente, mas essa alteração
está sendo bastante importante. A gente enxerga ao vivo. Estando em
campo, a gente vê nitidamente que essa alteração está acontecendo.”
Mesmo com os problemas recentes, a grande porção de terras protegidas
na região permite que a Trijunção seja um dos principais refúgios de
biodiversidade na visão do Dr. Reuber Brandão, que a considera “um dos
remanescentes mais importantes que sobraram no grande Oeste da Bahia”. A
presença de uma grande diversidade de espécies endêmicas do Cerrado e
da Caatinga.
“E tem um processo de retorno da fauna”, como explica a Dra. Renata.
“Isso é uma coisa que eu também vivenciei na última década. Em algum
momento, teve um incentivo de plantio de Pinus na região, que
veio com a aplicação de muito veneno para formiga. Isso acabou com uma
série de espécies. Inclusive o tamanduá-bandeira desapareceu por um
grande período.”
Segundo a pesquisadora, isso remonta a um período anterior à criação
do Parna Grande Sertão Veredas, onde mesmo uma população muito menor do
que a atual tinha uma prática de caça muito mais intensa. Mas, com a
diminuição da cultura de caça e com o fim do empreendimento com
pinheiros para corte, a fauna começou a retornar. Renata comenta o
efeito:
“É mais comum a gente ver hoje animais em bandos, como caititus,
alguns veados, lobo-guará, onça… muitos mamíferos de grande porte na
região. E a gente tem conseguido observar isso com muito mais frequência
hoje em dia do que dez anos atrás.”
Melhores usos do solo, melhores usos da vida
Em uma entrevista marcada por
problemas de informática e pelo revezamento para que o casal de
pesquisadores cuide dos filhos, volto a conversar com o Dr. Reuber em
outro dispositivo. É a nossa quinta tentativa de videoconferência e,
dessa vez, funciona de primeira.
“A maior esperança que nós temos hoje
com relação a biodiversidade em áreas particulares é realmente o
turismo, a atividade turística, né?”, conta Reuber, com argumentos
similares aos de outro entrevistado com quem conversei para ((o)) eco.
Tendo na Fazenda Trijunção, propriedade com quase 2 mil hectares
protegidos como RPPN, um exemplo de como o turismo ecológico pode tornar
a natureza conservada algo lucrativo, o pesquisador comenta um ponto do
ecoturismo que pode ser tanto uma vantagem quanto um empecilho:
“Essas áreas de RPPN não vão ser
convertidas para uso econômico. Com isso, a Fazenda começou a investir
fortemente em turismo qualificado para onde as pessoas vão buscando
experiências únicas. Por exemplo, ver a via láctea refletida num espelho
d’água, da lagoa do Rio Formoso, que é uma experiência espetacular,
parece que você está flutuando em cima do Espaço. Ou então encontrar
lobos-guarás bem de perto.”
Projetos de turismo baseado em
observação de fauna carismática levam entusiastas da natureza à
proximidade com animais como o lobo-guará, experiência na qual a Pousada
Trijunção tem apostado, em parceria com a Associação Onçafari. Mas o
segredo do turismo baseado em experiências únicas, Reuber ressalta, é
que ele corre o risco de tornar áreas com atributos parecidos
redundantes. Ele defende ainda que deveria haver outros sistemas de
incentivo para proprietários criarem reservas naturais em suas áreas
privadas.
“São poucas as Unidades de
Conservação no Oeste do Estado da Bahia que conservam aqueles rios e
aquela situação geológica, aquela história interessantíssima do ponto de
vista de evolução do bioma. Todos os proprietários que usam a água à
jusante estão dependendo da incorporação de água no Cerrado, mantida na
Trijunção. Isso tem de ser, de alguma forma, remunerado. Então a legislação de pagamento a serviços ambientais é
uma coisa que tem de ser muito incentivada. Porque eles têm de entender
que estão provendo, com a conservação, aquilo que o mundo quer e já
percebeu que é importante: a proteção daquilo que vai garantir nosso
futuro.”
Com base no que já viu ao longo de
sua carreira na pesquisa, e em exemplos de biopatentes ao redor do
mundo, Reuber vê no incentivo à bioprospecção a solução para alguns dos
problemas do Brasil. Estes incluem a baixa absorção de profissionais pós-graduados pelo mercado de trabalho e, claro, a mudança de percepção de valor da natureza conservada como fonte de possíveis inovações de alto valor agregado.
“Que mecanismos nós possuímos para
permitir que proprietários de terra se tornem também proprietários de
produtos de bioprospecção?”, pergunta Reuber, lembrando que “o
conhecimento da biodiversidade tem de prover benefícios para toda a
coletividade. Como é que a gente pega, por exemplo, a mangaba, e a
transforma em um produto de consumo importante?”, pergunta ele
novamente.
A ideia de que este tipo de pergunta é
de interesse apenas de Universidades e Institutos de Pesquisa é uma
grande barreira à percepção de que conservar a natureza pode andar junto
do desenvolvimento econômico. E isso não exige necessariamente uma
propriedade de larga escala, se houver um plano nacional que abra
caminhos para este tipo de empreendimento, segundo Reuber:
“Independente da escala, quem está,
de alguma forma, contribuindo para a manutenção de um uso de solo que é
menos agressivo do que desmatar tudo e converter em uma paisagem
monótona composta, às vezes, por uma espécie apenas… consegue manter a
presença na terra sem ter de prejudicar o futuro. Aquela coisa da
pequena propriedade, da pequena família, que faz, por exemplo, geleia de
amora para vender… Por que eles não podem também preparar e vender
proteínas extraídas de veneno de aranha, ou de serpente? E aí podem ter
cooperativas, reservas extrativistas, populações tradicionais que façam a
mesma coisa.”
E faz, por fim, mais uma pergunta: “Como é que você faz com que isso se popularize?”
As respostas para estas perguntas não
estão nas páginas de “História Natural do Sertão da Trijunção do
Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil”. As respostas que se pode
encontrar no livro dizem respeito ao potencial de áreas protegidas em
proteger a natureza de onde as perguntas se derivam, assim como a
resposta para o que acontece com uma região conservada à medida que ela é
convertida em uma fronteira agrícola de alta demanda por água.
As páginas a respeito de como o Brasil aprendeu com histórias como estas ainda estão por serem escritas.
*As
imagens que ilustram essa reportagem — com exceção da última — estão
presentes no livro “História Natural do Sertão da Trijunção do Nordeste,
Centro-Oeste e Sudeste do Brasil”, e foram gentilmente cedidas pelo
Editor.