A extinção da política ambiental no Brasil e os riscos para a vida no planeta. Entrevista especial com Cristiana Losekann
Por João Vitor Santos, IHU
Desde que tomou posse, as ações do governo de Jair Bolsonaro têm deixado claro que o
meio ambiente é uma área que deve se submeter às demais. E por aí vem liberação recorde de
agrotóxicos, questionamentos sobre dados de
desmatamento,
o desejo de emprego de recursos do Fundo Amazônia para indenizar
agricultores (quando o recurso deve servir para ações diretas de
preservação), ataque a direitos e mecanismos de
proteção de povos originários,
além de fortalecimento do discurso de que as questões ambientais devem
ser flexibilizadas em prol do desenvolvimento econômico.
Essas e outras tantas medidas são, para a cientista social Cristiana Losekann, muito mais do que um
revés da política ambiental.
“O que está em jogo não é um novo modelo de política ambiental, mas o
próprio fim da política ambiental”, dispara, em entrevista concedida por
e-mail à
IHU On-Line. “O governo atual rompe com nossa
tradição de política ambiental e inicia uma série de medidas que
eliminam a participação da sociedade e a corresponsabilidade da
sociedade. Ao fazer isso, restringe o poder de
proteção ambiental ao Estado ao mesmo tempo que desmantela os órgãos de controle e fiscalização”, avalia.
Cristiana recorda que, numa perspectiva histórica,
a política ambiental brasileira sempre teve uma “concepção de
responsabilidade compartilhada na proteção da natureza, entre Estado e
sociedade”. Ou seja, de um lado o Estado tem o poder de regulamentar e
gerir as questões de
meio ambiente, mas, de outro, a
sociedade tem participação ativa nessas ações, na construção e
fiscalização dessas políticas ambientais. “Essa concepção está expressa
em diferentes instituições nossas e formulada a partir das diferentes
concepções de natureza e de problemas ambientais que foram se
desenvolvendo ao longo desses anos na nossa esfera pública”, pontua.
Mas, agora, o Estado chama para si essas ações, desnutrindo fóruns como
o
Conselho Nacional de Meio Ambiente. “É uma ruptura
sem precedentes com o que a sociedade brasileira vem pactuando em torno
das questões ambientais. A questão é que os efeitos catastróficos disso
são incontroláveis e cairão sobre nós e mais ainda sobre as populações
já subalternizadas”, acrescenta.
Para a cientista social, é evidente que esse modelo não se sustenta.
No entanto, teme que, quando se perceber a inviabilidade dessas lógicas,
seja tarde demais. “O grande perigo desse
desmonte é que nós até podemos reconstruir instituições, refundar nossa
política ambiental no futuro, mas não podemos fazer reviver toda a vida que foi destruída, todo o
ecossistema que
foi alterado”, alerta. E provoca: “uma das maiores demonstrações de
inteligência do ser humano é o reconhecimento do seu próprio limite,
daquilo que não sabe e que ainda precisa aprender. Governos que agem
como prepotentes demonstram ser, inconsequentemente, o contrário disso”.
Cristiana Losekam (Foto: UFES)
Cristiana Losekann possui graduação em Ciências
Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado
e doutorado em Ciência Política pela mesma instituição. É professora
associada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do
Espírito Santo e professora permanente do Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo.
Também é coordenadora do
Organon – Núcleo de estudo, pesquisa e extensão em mobilizações sociais DCSO/PGCS/UFES.
Entre suas publicações, destacamos
A política dos afetados pelo extrativismo na América Latina (Revista Brasileira de Ciência Política, 2016),
Ambientalistas em Movimento no Brasil: entrelaçamentos e tensões entre o estado e a sociedade durante o Governo Lula(Curitiba: Editora Appris, 2014) e
Desastre na bacia do Rio Doce: desafios para a universidade e para instituições estatais (Rio de Janeiro: Folio digital, 2018).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quando e em que contexto, no Brasil, passou a
se refletir sobre os “problemas ambientais”? O que a História do país
revela sobre essa temática?
Cristiana Losekann – Inicialmente, é importante
observar que problemas ambientais são percepções construídas por nós
acerca da nossa relação com o ambiente. Nós construímos, assim, uma
explicação e uma interpretação sobre certas circunstâncias. Isso
significa dizer que os chamados problemas ambientais não são
simplesmente dados, embora, evidentemente, essa percepção precise se
basear em certa experiência que estabelecemos com o ambiente, nossa
observação, produção científica, fatos observados etc.
Dito isto, fazendo uma revisão simples do
pensamento social brasileiro encontramos
diversas produções textuais que nos permitem vislumbrar já no século
XVIII uma ideia, uma percepção, elaborada enquanto “problema ambiental”
(o trabalho de
José Augusto Pádua é uma referência importante nesse sentido). Podemos citar
José Bonifácio,
Joaquim Nabuco e
Frei Vicente. Mais próximo de nossos dias, Caio Prado Júnior,
Nelson Werneck Sodré e Gilberto
Freyre, entre outros intelectuais importantes da nossa história que se
preocuparam e de escrever sobre a degradação ambiental no Brasil.
José Bonifácio escreveu
um famoso texto em que descreve a caça às baleias e sua preocupação,
até mesmo afetiva, podemos dizer, com a morte das baleias. Também é
importante observar que os problemas ambientais foram construídos quase
sempre na relação com diferentes ideias de desenvolvimento econômico,
observando que conflitos são estabelecidos entre a necessidade de cuidar
da natureza e os projetos de desenvolver o país sempre vinculados com
o
uso da natureza como recurso.
Outro ponto que é importante de ser observado é que a produção desse
pensamento ambientalista desde tão cedo ajudou a construir as nossas instituições. Dessa forma, as instituições
políticas ambientais (leis,
princípios, órgãos etc.) não são uma construção casuística de um ou de
outro governo, ao contrário, elas vêm sendo construídas ao longo de
nossa história e sendo moldadas a partir da forma como, podemos dizer, a
sociedade foi construindo essa noção de
problemas ambientais.
Pensamento global, distorções locais
Um outro aspecto implicado nessa questão e que aparece muitas vezes
em discursos políticos de forma muito equivocada, é que, ainda que
possamos compreender uma trajetória de pensamentos sobre os
problemas ambientais do Brasil,
isso nunca se construiu de forma hermética fechada e restrita ao âmbito
nacional. Esse pensamento se construiu na interação com circuitos
internacionais de produção de ideias sobre o tema, constituindo, assim,
uma trajetória de pensamento humano sobre as
interações com a natureza; o próprio conhecimento científico é parte deste processo. Essa característica global da produção de um pensamento sobre os
problemas ambientais é
frequentemente mal entendido por linhas ideológicas nacionalistas (de
esquerda ou direita) que criam dicotomias forçadas e conspiratórias
entre um “eles” exterior que está sempre interessado em nos manter
atrasado e que vincula esse atraso ao cuidado ambiental, ou ao
ambientalismo.
No nosso contexto político, temos como exemplos disso Aldo Rebelo,
ex-ministro e ex-membro do partido comunista, que estabeleceu batalhas
contra ambientalistas de
ONGs contra o que chamava de “imperialismo verde” que tentava impedir o
desenvolvimento do Brasil.
Para espanto de muitos, o governo atual, que se apresenta como sendo de
um polo político oposto ao do partido comunista, também defende a mesma
ideia, apresentando qualquer ideia de
cuidado ambientalcomo
interesse estrangeiro contra o
Brasil.
IHU On-Line – Como e em que contexto surgem as primeiras legislações ambientais no país?
Cristiana Losekann – Existem diferentes tipos de
legislações que podem ser compreendidas como ambientais. Mas podemos
diferenciar dois tipos importantes: aquelas que dizem respeito aos
princípios de proteção ambiental e de definição do que é essa proteção e
aquelas que definem como será estruturado o sistema para controle e
implementação dessa proteção. Com relação a esse último aspecto, é
fundamental observar que, ainda que com nuances, historicamente, uma
característica marcante da nossa
política ambiental é que ela é marcada por uma concepção de responsabilidade compartilhada na proteção da natureza, entre Estado e sociedade.
Existem diversos modelos de
política ambiental no
que diz respeito à competência e responsabilidade da proteção da
natureza. Alguns países adotaram um modelo totalmente estatal e outros
adotaram modelos privatistas em que a proteção não é simplesmente da
sociedade, mas exclusivamente privada.
No
Brasil, nós temos adotado legislativamente, desde
pelo menos a década de 1930, essa ideia de que, para que a gente possa
proteger a natureza, o melhor seria um
modelo de compartilhamento da responsabilidade entre
a sociedade e o Estado. Essa concepção está expressa em diferentes
instituições nossas e formulada a partir das diferentes concepções de
natureza e de problemas ambientais que foram se desenvolvendo ao longo
desses anos na nossa esfera pública. É preciso então observar que
existem diversas formas de conceitualizar a natureza e de construir
aquilo que caracteriza o
problema ambiental.
Código Ambiental de 1934
Um dos primeiros marcos nesse sentido foi o
código ambiental de 1934 (Decreto
23.793/34), que obrigava os donos de terras a manterem 25% da área de
seus imóveis com a cobertura de mata original. O objetivo era garantir a
existência de madeira para lenha e carvão que estava acabando em função
do desmatamento. Por outro lado, já havia a ideia de “florestas
protetoras”, o que mais adiante se transformou nas
áreas de preservação permanente – APPs.
Aqui já estava expressa a ideia de que a natureza precisa ser
preservada para o bem de nossas próprias necessidades econômicas.
Dessa ideia se origina um tipo de modelo de compartilhamento focado em uma concepção de “
serviços ambientais”,
ou seja, a própria natureza seria provedora de serviços que são
essenciais para a manutenção das nossas atividades econômicas. Essa
concepção produziu um tipo específico de política de compartilhamento
da
proteção ambiental entre Estado e sociedade caracterizado de forma central pelo instituto da “
reserva legal”, que é uma área localizada no interior de uma propriedade rural, privada ou pública destinada ao
uso sustentável dos recursos naturais (ela não é intocável, mas o proprietário deve garantir as suas condições de sustentabilidade).
Novo Código em 1965
Depois do
código florestal de 1934, nós tivemos
outro código em 1965 e diversas legislações foram sendo criadas depois
até a reabertura de discussão do código florestal em 2009. Dentre esses
marcos legais eu destaco, evidentemente, a
Política Nacional de Meio Ambiente de 1981, que entre outras coisas criou o
Conselho Nacional de Meio Ambiente, através do qual se estabeleceu a participação da sociedade civil na elaboração contínua do corpo da nossa política ambiental.
Reserva legal, colegiados participativos e dispositivos legais
Nós podemos, então, genericamente pensar nos institutos da
política ambiental relacionados a três mecanismos diferentes de compartilhamento da
proteção ambiental:
a reserva legal que estaria ligada ao mecanismo de corresponsabilidade;
os colegiados participativos ligados ao mecanismo de participação
política; e, ainda, os dispositivos legais tais como a lei da ação civil
pública e dos crimes ambientais funcionando como mecanismos de
controle. A
ação civil pública ambiental prevê algo que
é muito importante e poderoso, a possibilidade de a própria sociedade
civil utilizá-la mesmo contra o Estado, já que ela não coloca em
discussão a legalidade do ato em julgamento, mas o dano ao meio
ambiente. Assim, mesmo que uma decisão seja legítima, se ela causar um
dano ambiental poderá ser revogada. Esses três mecanismos correspondem a
distintos espaços nos quais atores do Estado e da sociedade atuam no
compartilhamento de suas responsabilidades ambientais.
IHU On-Line – Na sua opinião, os governos ditos progressistas conseguiram compreender a emergência da crise ambiental?
Cristiana Losekann – Ainda que nós tenhamos uma construção institucional bastante avançada da
política ambiental,
é importante notar que esta envolve conflitos cruciais, pois implicam
na regulação e, de certa forma, na limitação de certas atividades
econômicas. Nesse sentido, uma vez que os governos do
Partido dos Trabalhadores estabeleceram como núcleo central de suas políticas o
Plano de Aceleração do Crescimento baseado
em grandes obras de infraestrutura e no fomento ao setor de
commodities, também se agravaram os conflitos ambientais no país.
Aliás, esta é uma característica comum de vários países
latino-americanos e é em função do crescimento desses conflitos chamados
de
neoextrativistas (ligados à mineração, petróleo,
agronegócio) que se ampliaram também as mobilizações de comunidade
afetadas por esses empreendimentos, o que provocou mudanças importantes
no ambientalismo que ganhou mais força no viés chamado de “
socioambiental”,
ou seja, mais ligados às comunidades tradicionais, povos indígenas,
populações marginalizadas e empobrecidas. Essa tem sido uma das
articulações mais promissoras de
resistência ambiental dos
últimos tempos porque ela articula o cuidado ambiental com outros
problemas da sociedade, renda, cultura, identidade, racismo etc.
IHU On-Line – A senhora destaca que existem modelos de
política ambiental, sendo que alguns são mais estatais e outros mais
privatistas. Pode explicar esses dois modelos, destacando seus limites e
potencialidades no que diz respeito ao cuidado com a natureza?
Cristiana Losekann – As instituições que vão sendo
criadas compreendem sempre algum princípio ou lógica da relação
sociedade-ambiente e de forma resumida as duas tendências marcadamente
mais fortes de
política ambiental são as dos
Estados Unidos e
Europa,
onde encontramos respectivamente o viés preservacionista que é mais
restritivo e tendencialmente “sacralizador” da natureza, e o viés
conservacionista que é menos restritivo e que permite o uso dos recursos
renováveis. A primeira tendência pode ser observada na ideia de criação
de áreas isoladas de proteção. Mas, no
Brasil, nós
combinamos os dois modelos e incluímos a sociedade civil em boa parte
dos nossos institutos ambientais. Há também entre nós um aprendizado
mais recente (ainda muito restrito aos pesquisadores) sobre a
importância da valorização de certas práticas e mesmo modos de ser
chamados “tradicionais” e indígenas que, diferentemente da tradição
ocidental, construíram formas de vida que não implicam na
destruição da natureza.
IHU On-Line – Qual é a questão de fundo que deve ser
considerada e analisada na proposta de “flexibilização da legislação
ambiental”, defendida pelo atual governo brasileiro?
Cristiana Losekann – O que está em jogo não é um
novo modelo de política ambiental,
mas o próprio fim da política ambiental. O governo atual rompe com
nossa tradição de política ambiental e inicia uma série de medidas que
eliminam a participação da sociedade e a corresponsabilidade da
sociedade. Ao fazer isso, restringe o poder de proteção ambiental ao
Estado ao mesmo tempo em que desmantela os órgãos de controle e
fiscalização (desestruturação e precarização de agências reguladoras e
fiscalizadoras, o aviso prévio de fiscalização, revisão de áreas de
proteção ambiental, reservas e parques etc.).
É uma ruptura sem precedentes com o que a sociedade brasileira vem
pactuando em torno das questões ambientais. A questão é que os efeitos
catastróficos disso são incontroláveis e cairão sobre nós e mais ainda
sobre as populações já subalternizadas. Os
desastres de mineração em Mariana/Rio Doce e em Brumadinho já nos mostraram que é preciso reconhecer os limites da natureza e os nossos próprios.
IHU On-Line – Diversas ONGs e ambientalistas acusam o atual
governo brasileiro de estar “desmontando a legislação ambiental”. A
senhora concorda com esse tipo de crítica ao atual governo? Em que
consiste esse desmonte e quais as possibilidades de reversão desse
quadro?
Cristiana Losekann – O grande perigo desse desmonte é que nós até podemos reconstruir instituições, refundar nossa
política ambiental no
futuro, mas não podemos fazer reviver toda a vida que foi destruída,
todo o ecossistema que foi alterado. Nós temos poder para reconstruir
aquilo que construímos uma vez, mas não temos poder de reconstruir
aquilo que é maior do que nós, aquilo que ainda nem bem conhecemos. Uma
das maiores demonstrações de inteligência do ser humano é o
reconhecimento do seu próprio limite, daquilo que não sabe e que ainda
precisa aprender. Governos que agem como prepotentes demonstram ser,
inconsequentemente, o contrário disso.
IHU On-Line – Quais são os mecanismos de participação
política ambiental e qual a importância deles? E por que têm sido tão
atacados atualmente?
Cristiana Losekann – A importância desses mecanismos é enorme. São eles que constroem as próprias dinâmicas da
política ambiental uma
vez que grande parte das atribuições de decisões são de competência de
tais colegiados. A diminuição das cadeiras e das representações internas
ao
Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, por
exemplo, podem acarretar em problemas sérios, tais como atrasos e mesmo
impasses em processos decisórios fundamentais inclusive para os setores
econômicos. Na pesquisa da minha tese de doutorado, eu estudei esses
colegiados e compreendi que o
Conama é um dos espaços
mais importantes da política ambiental e um modelo a ser seguido. É
notável que mesmo os setores econômicos conferem importância a ele e
fazem questão de participar de tal espaço.
O ataque aos
mecanismos de participação política revela
uma atitude autoritária do governo, mas também uma falta de compreensão
sobre a própria sociedade brasileira. O governo aposta que o apoio
recebido nas urnas será revertido em apoio incondicional a todo tipo de
decisão mesmo essas que rompem com toda uma tradição institucional.
Isso, além de ser altamente nocivo à democracia, é um erro político, já
que há uma tendência mundial, inclusive de setores econômicos mais
progressistas, de busca por novos padrões de consumo, produtos com
menos agrotóxicos e
diminuição do plástico.
Além disso, a crise ambiental é cada vez mais perceptível, com o
aumento das catástrofes que se tornam cotidianas, as mudanças
climáticas, a poluição e diminuição das condições de bem viver. Nesse
sentido, a percepção de que temos problemas ambientais sérios é
amplamente compartilhada entre a população, já não é mais algo apenas
dos ambientalistas, de cientistas ou de intelectuais.
(EcoDebate, 18/07/2019) publicado pela
IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]