Por Fabio Olmos
- segunda-feira, 19 setembro 2016 01:21
Uma
cena que pode ter acontecido na Cueva del Milodon, atual Chile: um
Mylodon observa uma
onça-patagônica Panthera onca mesembrina (uma forma
extinta) atacar um grupo de cavalos
também extintos (Hippidion).
Ilustração: Peter Snowball, NHMPL
“Vivemos em um mundo zoologicamente
empobrecido, de onde todas as formas mais imensas e ferozes e estranhas
desapareceram recentemente”.
Alfred Russell Wallace, co-formulador da teoria da evolução pela seleção natural e um dos pais da biogeografia em A Distribuição Geográfica dos Animais (1876)
Em 24 de agosto de 1832 o HMS Beagle chegou a Bahia Blanca, 650 km ao
sul de Buenos Charles Darwin, seu mais ilustre passageiro, dedicou sua
estadia para explorar a região.
Ali Darwin encontrou ossos de nove espécies de grandes mamíferos
extintos, incluindo uma preguiça gigante terrícola que acabou batizada
como
Mylodon darwini, e de seu primo ainda maior, o
megatério Megatherium.
Muito depois, em 1895, ossos, esterco e, incrivelmente, pele de Mylodon foram encontradas na hoje famosa
Cueva del Milodon, no Chile. A condição aparentemente fresca dos restos levou alguns cientistas a acreditar que
o bicho ainda vivia por ali. Resumindo uma longa novela, na verdade os últimos Mylodon chilenos morreram há mais de 9 mil anos.
Os ossos descobertos por Darwin, estudados pelo grande anatomista
Richard Owen, tornam-se provas adicionais da existência de animais
extintos. Isso numa época onde muitos acreditavam que a Bíblia provava
que a Terra fora criada em 4004 AC e que a extinção era algo impossível,
pois Deus não permitiria que meros humanos apagassem sua criação.
O Mylodon era um gigante de 2,5 toneladas que viveu
em diferentes habitats
no que é hoje o Chile, Argentina, Paraguai, Bolívia e sul do Brasil.
Poderia estar pastando no pampa gaúcho até hoje, mas foi extinto uns 8
mil anos atrás.
Há poucos milhares de anos, menos do que a idade de cidades como
Jericó (estabelecida em 9.000 AC), mega-animais – Mylodons, mamutes,
tigres-dentes-de-sabre, pássaros-trovão - viviam tranquilos sobre a
Terra. Até nós nos tornarmos humanos.
Nossa espécie surgiu em algum lugar da África a c. 200 mil anos. Mais um entre vários bichos do gênero
Homo que viviam naquela época, todos usando ferramentas, e a maioria o fogo, os
sapiens não eram nada muito diferente até algo acontecer há uns 70 mil anos.
Nesse período ocorreu uma revolução cognitiva. Pela primeira vez
surgem evidências de arte, pensamento simbólico, imaginação, linguagem
complexa e – seu resultado – novas tecnologias. Algo mudou a natureza
humana e nos tornou capazes de cooperar em uma escala muito além de
nosso círculo pessoal. Algo associado a crenças – memes - que criam
identidades comuns entre pessoas que não são relacionadas e a linguagem
necessária para espalhar estas crenças. A mesma fonte das religiões e
estados nacionais.
A causa provável deste flip mental foi uma
mutação que deflagrou um processo de coevolução gene-cultura e se espalhou rapidamente em uma população até então pequena. Mas não é possível desprovar que um certo
monólito negro ou outro fator externo tenha tido um papel nisso.
Há 70 mil anos grupos de
Homo sapiens deixaram a África e
partiram para conquistar o mundo. Dez mil anos depois haviam chegado à
China e Coréia, mas a então gélida Europa só seria ocupada a partir de
45-50 mil anos atrás.
Na mesma época, antigos marinheiros colonizaram a Austrália,
continente onde primata algum havia colocado os pés. Nas Américas, há
certeza de que 15 mil anos atrás já haviam populações humanas
estabelecidas, talvez também descendentes de navegadores. É provável que
tenham chegado muito antes.
Nossa rápida ascensão como espécie dominante não foi acompanhada por
nossa psicologia. Quem já encontrou um leão, tubarão branco ou crocodilo
sabe a auto-confiança que milhões de anos de domínio deram a eles.
Segundo o
historiador Yuval Harari,
nós continuamos cheios de medos e ansiedades e nos comportamos como
ditadores de repúblicas de bananas, rápidos em optar pelo extermínio do
que nos amedronta ou incomoda. Seja uma lagartixa no banheiro ou uma
harpia na praça.
Talvez isso explique porque nossa expansão foi acompanhada pelo fim dos outros humanos que já ocupavam as novas posses.
Antecipando o que viria depois, das
Guerras dos Bárbaros no nosso nordeste ao
genocídio dos Iarumá pelos Kuikúru do Xingu,
a expansão dos sapiens coincide com o fim dos neandertais da Eurásia,
erectus e hobbits da Indonésia, denisovas da Sibéria e outros que
sabemos terem existido graças a
genes perdidos entre os nossos. Se a história recente é exemplo, lembranças tanto de encontros amorosos como de violência.
Aqui existiam dragões
A
Austrália antes da chegada dos sapiens. Um leão-marsupial (Thylacoleo)
defende sua presa
de um dragão (Megalania) enquanto um diprotodon, um
canguru-gigante e dois tilacinos
observam.
Um mihirung (Genyornis) foge
pela esquerda. Ilustração:
Peter Trusler / Museu Victoria
A invasão dos sapiens não obliterou apenas outros humanos. O mundo
encontrado pelos exploradores que deixaram a África era um mundo de
criaturas fantásticas (a
BBC fez uma série sobre elas).
Entre Portugal e a Sibéria viviam manadas de mamutes, cervos gigantes, rinocerontes lanudos, unicórnios (
Elasmotherium), saigas, auroques, onagros, renas e bois-almiscarados, caçados por leões, hienas, leopardos e gatos-cimitarra.
Após alguns milênios de atrito estes animais estavam reduzidos a refúgios ou extintos, os últimos mamutes morrendo em sua
derradeira ilha ao redor de 1.700 AC, quando as pirâmides já eram velhas.
Na isolada Austrália havia pelo menos 54 espécies de
grandes mamíferos (mais de 40 kg), além de mihirungs, crocodilos terrestres e
dragões.
Todos extintos entre a chegada dos primeiros humanos e a do Capitão
Cook em mais um processo de atrição que levou milhares de anos.
A extinção de grandes herbívoros - que convertiam biomassa vegetal em
carne - e o uso do fogo pelos aborígenes favoreceram espécies pirófilas
como os eucaliptos. O continente ganhou
vastas regiões sujeitas a incêndios catastróficos, que todo ano assistimos nos noticiários.
Na América do Norte, 34 gêneros de grandes mamíferos foram
eliminados, enquanto a América do Sul perdeu 52 gêneros entre a primeira
ocupação humana e a chegada de Colombo.
O Brasil de então, com várias espécies de preguiças gigantes variando
de maiores que um elefante ao tamanho de um carneiro, gliptodons,
mastodontes, macrauquênias, cavalos, lhamas, toxodons, etc., etc., etc.,
humilharia qualquer savana africana de hoje.
Alguns bichos, como Mylodons, gliptodontes e tigres-dentes-de-sabre persistiram até 7-8 mil anos atrás, 5 mil anos após
humanos se tornarem evidentes no registro paleontológico.
Como na Austrália, há evidências de mudanças profundas nos ecossistemas após sua extinção, incêndios mais frequentes e intensos
deixando seus rastros nos sedimentos.
A paleontologia e comparações com as savanas africanas de hoje fazem
pensar que os regimes de fogo que caracterizam o Cerrado de hoje são
mais destrutivos do que seriam se a megafauna estivesse presente.
E que somos um bom exemplo de como espécies invasoras causam profundas alterações nos ecossistemas.
Junto com os grandes mamíferos desapareceram dezenas espécies de aves, como
pássaros-trovão,
condores de bolso e pássaros que direta ou indiretamente
dependiam daqueles gigantes, tanto fonte de alimento como engenheiros ecossistêmicos. Da mesma forma, dezenas (centenas?) de plantas perderam seus
dispersores de sementes primários.
Os ecossistemas que temos hoje são muito diferentes, e mais pobres,
do que seriam se os sapiens tivessem ficado em casa. Quem fala que não
existe natureza intocada está absolutamente certo. Dizer que humanos
criaram e mantém ecossistemas mais ricos do que existiriam sem eles tem
tanta base científica quanto a astrologia.
Ilhas foram o último refúgio
Tigres-dentes-de-sabre,
macrauquênias, cavalos extintos (Hippidion), mastodontes, um
gliptodonte
e uma preguiça-gigante (Megatherium) em um cenário que
poderia ser o interior do Rio Grande
do Sul ou Santa Catarina.
Ilustração: Mauricio Antón.
A(s) causa(s) das extinções associadas à expansão humana são tema de
velho debate entre quem culpa a mudança climática na transição entre o
Pleistoceno e o Holoceno (o período de 11.700 anos atrás até hoje); os
que culpam os humanos, seu fogo, seus cães e suas armas; e os que
propõem uma combinação de fatores.
Um fato evidente é que ilhas – do Mediterrâneo ao Caribe e Oceania -
passaram incólumes pelas mudanças climáticas do Pleistoceno-Holoceno
apenas para sofrerem extinções em massa após a chegada dos primeiros
humanos.
Pelo menos 13 espécies primas do Mylodon viviam nas ilhas maiores do Caribe. Após darem as boas-vindas ao Holoceno,
todas foram extintas,
junto com outros mamíferos, corujas gigantes e condores, ao redor de
4.400 anos atrás. Exatamente após a chegada dos ameríndios àquelas
ilhas.
As ilhas do Pacífico foram colonizadas apenas nos últimos 3 mil anos.
Estima-se que os polinésios – que se expandiram em um processo viral
associado a explosões demográficas -
eliminaram pelo menos 2 mil espécies de aves. Para entender o desastre, hoje são reconhecidas cerca de 11 mil espécies vivas no mundo, com
140 extintas desde 1500.
A civilização capitalista ocidental ainda não chegou ao nível
daqueles povos pré-industriais que tanto inspiraram a ideia do bom
selvagem amigo da ecologia.
Os últimos 16 mil anos foram um período de mudanças climáticas rápidas, como o evento chamado
Younger Dryas (12.900-11.700 anos atrás), que derrubou as temperaturas médias regionais entre 1 e 6°C em poucas décadas.
Mas isso não era novidade. Eventos similares já haviam acontecido
muitas e muitas vezes ao longo do Pleistoceno. O padrão, revelado pelo
estudo de DNA antigo, era que quando o clima ficava hostil (para muitas
espécies isso significava aquecimento),
populações sofriam declínios e as áreas de ocorrência podiam encolher, ficando restritas a refúgios onde o clima e a vegetação eram adequados.
A novidade foi que, começando 50 mil anos atrás, não havia mais
refúgios sem populações de sapiens invasores fazendo o que nós fazemos
melhor.
Fomos nós
Parte
da fauna que os primeiros sapiens encontraram quando chegaram à Europa.
Mamutes,
rinocerontes-lanosos, cavalos e leões dividiam a paisagem com
os neandertais nativos.
Ilustração: Mauricio Antón
Estudos recentes (veja
aqui, ou
aqui e
aqui)
demonstram a estreita associação entre a expansão de nossas populações e
as extinções observadas (incluídos os neandertais) nos continentes. É
inescapável que humanos foram a causa primária e necessária da
catástrofe, e o clima causa acessória, com
sinergias prováveis em pelo menos alguns casos.
Uma conclusão é que somos a mais destruidora dentre as espécies exóticas e invasoras, embora
não nos listem no catálogo oficial das espécies-praga danosas à biodiversidade.
Outra é que se Colombo e Cabral tivessem encontrado uma América sem
humanos é muito provável que Darwin (e outros exploradores) tivesse
encontrado Mylodons em carne e osso, e não apenas ossos.
É evidente a continuidade entre povos pré-históricos e as civilizações que os sucederam,
desde os antigos egípcios até os usuários de iPhone e comedores de muriquis de hoje. E que há muito tempo que
não há ecossistemas intocados
devido ao legado de destruição ambiental e extinção deixado por povos
que nem imaginavam o que era uma bolsa de ações ou para que servia o
petróleo.
É irônico que um dos poucos casos onde se tentou atribuir consequências positivas à antiga ação humana se refira às
terras
pretas da Amazônia.
Depósitos de lixo e latrinas deixados por
civilizações pré-europeias que adubaram florestas que cresceram somente
porque aquelas populações humanas colapsaram, provavelmente graças a
germes que acompanharam os primeiros exploradores europeus e seus pets.
É de se pensar o que o registro arqueológico futuro mostrará de nossa
civilização. Uma camada de plástico marcando o pico da Sexta Grande
Extinção que começou quando uma espécie invasora deixou sua África
natal?
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