Devastação do cerrado gera desequilíbrio ambiental
Seca, incêndio e temporais são recados da natureza
Conto Pai Norato, Bernardo Élis
Nos últimos 60 anos, o cerrado mudou como nenhum outro bioma brasileiro. Em suas terras, o Brasil expandiu a fronteira agrícola, garantiu a integração nacional e possibilitou a mais monumental façanha arquitetônica brasileira: a construção de Brasília. Mas o que tinha aspecto de simbiose começou a apresentar desgaste. O preço da transformação veio em forma de desequilíbrio. Se as chuvas tinham data para começar e período certo de ação, agora são perseguições diárias dos meteorologistas. Se jorrava água pelas nascentes, os rios e reservatórios estão cada vez mais secos. Se do fogo brotavam espécies, agora elas morrem nas chamas.
Mas a conta não para por aí. As chuvas cada vez mais raras e intensas causam destruição quando chegam, como o vivido por Brasília e Abadiânia (GO) há duas semanas. O maior incêndio do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO), mês passado, também foi um alerta do prejuízo da perda de biodiversidade. Para mostrar o cansaço do bioma, o Correio publica a partir de hoje uma série de reportagens sobre a situação e as perspectivas para o cerrado.
A escalada da destruição provoca uma cadeia negativa. A perda de cobertura vegetal nativa e a consequente modificação no ambiente impactam no ciclo hidrológico, com lençóis freáticos cada vez mais vazios, chuvas mais esparsas e fortes e rios com vazão menor.
“Acabando com a savana mais rica do planeta, estamos dando um tiro no pé. Nas cidades, a impermeabilização não deixa mais penetrar água no solo. No campo, o agronegócio consome de 70% a 80% da água do Brasil. A demanda só aumenta. Vai haver um colapso”,
alerta Reuber Brandão, professor de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB).
Animais ameaçados
Com o aumento do desmatamento, em 12 anos, as espécies animais ameaçadas de extinção passaram de 75 para 176. O mais grave: nesse período, nenhuma conseguiu deixar a lista. Quatro estão categorizadas como criticamente em perigo, sob risco iminente de desaparecerem. Trata-se da borboleta Hyalyris fiammetta, de duas aves — o pararu-espelho e a rolinha-do-planalto — e do rato candango. Exemplares desse foi visto pela última vez por funcionários da Novacap, durante a construção de Brasília, na região onde hoje estão a Candangolândia e o Zoológico de Brasília.
A lavoura e o pasto ameaçam de extinção 44 espécies nativas do cerrado, segundo levantamento do ICMBio
Considerado um dos biomas mais ricos do planeta, o cerrado abriga 4% da diversidade mundial — há 17.487 tipos de animais e plantas no bioma. A representatividade de mamíferos e pássaros é ainda maior (8%). A savana brasileira é a casa do lobo-guará, da onça, da paca, da jaguatirica, do gato-palheiro, do tamanduá bandeira, da seriema, do inhambu-chororó, da coruja-buraqueira. Praticamente toda essa riqueza está concentrada em terras brasileiras (95%). O restante pode ser encontrado na Bolívia e no Paraguai. No entanto, só 3% da área de cerrado está efetivamente protegida em reservas. O resultado é a perda de metade da formação original e o extermínio das espécies. O desmatamento no cerrado é 2,5 vezes maior do que o da Amazônia, por exemplo.
A agropecuária, a expansão urbana, os empreendimentos de energia elétrica, o desmatamento, a poluição, as queimadas e a mineração são as atividades humanas que mais colocam em risco os animais do cerrado. A lavoura e o pasto ameaçam de extinção 44 espécies, de acordo com o ICMBio.
O crescimento desordenado das cidades, 21. Os empreendimentos de energia, como os alagamentos de áreas para construção de hidrelétricas, 20. O desmatamento da cobertura vegetal, 14. A poluição de cidades, de fábricas e rejeitos agrícolas, 13. As queimadas, 12, e a mineração, 9.
Ocupação desordenada
A população do DF chegou a mais de 3 milhões em 2017. Há ainda a pressão populacional exercida pelos municípios goianos do Entorno. São mais 1,12 milhão de pessoas, contando apenas as 11 cidades limítrofes com o DF. Em São Paulo, Minas Gerais e Goiás, o impacto mais significativo é o do agronegócio. A pressão urbana acaba concentrada perto das cidades de maior porte.
Para o professor de Engenharia Florestal Reuber Brandão, da UnB, a perda de biodiversidade pode ser bem maior do que o registrado, uma vez que áreas inteiras foram devastadas antes de registrar as espécies existentes no local e, uma característica do cerrado são os animais que concentram em determinadas regiões. “O avanço do desmatamento das áreas naturais é mais rápido que o avanço científico. O país investe pouco em ciência. É difícil saber se algumas espécies foram extintas, porque a gente sequer soube da existência delas”, comenta.
O que preocupa os ambientalistas é que em estados onde a devastação já ocorreu a terra tem valor mais alto. O preço médio por hectare em São Paulo, Minas Gerais e Goiás é maior do que em estados como Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Por isso, a expansão agrícola brasileira vem ocorrendo no sentido desses estados, o chamado Matopiba, que tem a faixa mais preservada. “Temos um contraponto da preservação: no cerrado, as terras mais baratas são onde há mais biodiversidade. As não ocupadas são as mais baratas, o que tem levado a expansão agrícola para essa região do Matopiba e é uma grave ameaça”, afirma Júlio César Sampaio, coordenador do programa Cerrado-Pantanal da WWF Brasil.
Pequenos sentem efeitos
A família Mesquita mora a 30 quilômetros da charmosa Pirenópolis (GO), no Povoado de Caxambu. A casa simples não tem janelas e as portas estão sempre abertas. Árvores rodeiam a residência. Na cozinha, o fogão a gás divide as tarefas com o tradicional fogão a lenha, abastecidos com o que se cria na propriedade de três alqueires. Os Mesquita tiram o sustento da agricultura familiar e de produtos caseiros como geleias. Mas, além do plantio, a família transformou o cerrado em fonte de renda. Antes restritos ao consumo, os frutos passaram a ser vendidos.
O principal produto é a castanha do baru, vendida desde 1994. “Os índios usavam o baru, mas na roça a gente não tinha esse costume. Comíamos o baru cru e diziam para não comer muito para não dar pereba. Mas, em 1994, torraram a castanha e deu muito certo”, conta Érica Danielle de Mesquita, 31 anos.
Mas as árvores da redondeza não produzem mais o fruto com o mesmo vigor do passado.”Tivemos um 2017 ruim. Colhemos apenas 100kg. Em bons anos, como 2009, chegamos a ter 2 mil kg”, lembra Érica. Ela diz que, para honrar os compromissos firmados com os clientes, teve que comprar a castanha em outras cidades goianas, como Barro Alto e Goianésia.
Da coleta na árvore à torra e o embrulho para a venda, o trabalho com o baru é todo artesanal. Não há uma plantação de baru, a família coleta o fruto nas matas da região. “Uma vez, ouvi um chefe de cozinha dizendo que o baru era caro porque estava na moda. Mas dá muito trabalho. A gente pega 16 vezes no fruto até a castanha chegar no consumidor final”, explica Érica.
Seca prolongada
https://youtu.be/HtDCK2VtQnADependendo da terra para sobreviver, os Mesquita sofrem com a falta de água. “A bica do nosso quintal nunca tinha secado. Este ano foi a primeira vez. Pode ser por isso que os frutos não estão como antigamente”, analisa o pai de Érica, Gabriel Divino de Mesquita, 65 anos, conhecido na região como Seu Bié. “Este ano, as árvores até tiveram flores, mas como choveu de forma irregular, a chuva forte destruiu as flores antes de virarem frutos”, completa Érica.