Por Marcos Rodrigues
- quarta-feira, 04 novembro 2015 17:57
Avestruz da somália. Foto: Wikipedia
Todo mundo sabe o que é uma ave, ou um pássaro. O senso comum diz que
aves ou pássaros são os animais que possuem penas revestindo o corpo.
Assim, o bizarro pinguim (que na verdade é um grupo de 17 espécies e não
apenas uma) nada mais é do que uma ave.
Sim, aquele animal de ‘sangue
quente’ que vaga pelos gélidos confins do continente antártico e ilhas
adjacentes; aquele animal que caminha toscamente sobre o gelo; aquele
animal que nada como um raio e mergulha em águas geladas em busca de
peixes não passa de uma ave.
A avestruz, aquele animal bípede e grandalhão, que chega a pesar 140
quilos e que caminha pelas planícies quentes e secas das savanas
africanas também é uma ave, pois seu corpo, assim como o dos pinguins, é
todo revestido por penas.
Aquele sabiá que gorjeia sobre as palmeiras dos nossos jardins
tropicais, que não passa de uma avezinha com menos de 30 gramas e 15
centímetros de tamanho (do bico à cauda) também é uma ave (muitos o
chamam exclusivamente de pássaro, mas considero aqui estas palavras como
sinônimas).
O sabiá-do-barranco. Foto: D. Sanches/Wikipedia
Agora pense numa galinha. Todo mundo sabe o que é uma galinha. Ela
está na nossa dieta há mais de 3000 anos. Dez entre dez brasileiros
comem galinha pelo menos uma vez por semana. Galinha assada, ao molho
pardo, à caçarola, na brasa, frita em pedacinhos (ironicamente “à
passarinho”), coxinha de galinha, caldo de galinha e mais uma infinidade
de formas, jeitos e receitas para se comer galinha. Pois saiba, a
galinha, quando viva, tem boa parte do seu corpo recoberto por penas e,
portanto, é uma ave.
Mas não são só as penas que tornam um animal uma ave, mas este
assunto veremos mais a frente, à luz da ciência e não à luz do senso
comum.
Um chá no Saara
Abetarda africana (Chlamydotis undulata). Foto: Wikipedia
Você pode encontrar uma ave em qualquer lugar deste planeta. Mesmo no
deserto do Saara, a região mais quente e árida da Terra, quando estiver
caminhando junto aos
tuaregs, não se espante se lá avistar uma
abetarda africana andando e gritando pelas dunas secas. Abetardas são
aves altamente terrestres de grande porte, pernas e pescoços longos que
lembram uma seriema (mas não são parentes destas).
As abetardas são aves
adaptadas aos ambientes mais áridos do globo e conseguem sobreviver
muito bem sem beber água por períodos de tempo muito longos. Como elas
vivem sem água?
Sabemos que o metabolismo das proteínas produz amônia, que é um
composto muito tóxico, mas é solúvel na água e difunde-se rapidamente.
Abetardas, como qualquer ave, comem proteínas eventualmente e assim
precisam eliminar a amônia.
Os mamíferos, como nós, conseguem converter a
amônia tóxica em ureia, que é uma substância menos tóxica. A ureia pode
ser acumulada no corpo e liberada em uma solução concentrada na urina,
conservando água desta maneira.
Para isso os mamíferos desenvolveram um
rim que é extraordinariamente eficiente em produzir urina concentrada.
As aves, no entanto convertem a amônia e outros compostos nitrogenados
em ácido úrico.
Diferentemente da amônia e da ureia, o ácido úrico é
insolúvel e combina-se prontamente com íons sódio e potássio para
precipitar como urato de sódio ou potássio. Assim, as aves desenvolveram
a capacidade de excretar ácido úrico e recuperar a água que é liberada
durante a formação do precipitado
1.
A baixa solubilidade do ácido úrico se torna vantajosa, porque o
ácido úrico precipita quando entra na cloaca (região final do trato
digestório das aves). O ácido úrico dissolvido se combina com os íons na
urina e se precipita como uma massa de cor clara que inclui sais de
sódio, potássio, e sais de amônia de ácido úrico, assim como outros
íons. (É o cocô de passarinho, também conhecido por
guano, um
esterco com propriedade incrivelmente fertilizadora do solo).
Quando o
ácido úrico e os íons se precipitam dessa solução, a urina se torna
menos concentrada e a água é reabsorvida no sangue através da parede da
cloaca. A excreção nitrogenada de ácido úrico é mais econômica quanto à
água do que a excreção da ureia, porque a água usada para produzir urina
é reabsorvida e reutilizada. Assim, as aves são chamadas de animais
uricotélicos, pois excretam resíduos nitrogenados principalmente na
forma de ácido úrico
1.
É desta maneira que muitas espécies de
aves conseguem viver em ambientes áridos como os desertos. Não se
esqueça de procurar pelas abetardas quando estiver passeando pelo Saara.
Visita ao continente gelado
O pinguim imperador (Aptenodytes forsteri) curtindo o inverno na Antártica.
Foto: Wikipedia
Depois de caminhar numa caravana de camelos cruzando o Saara, nada
mais refrescante do que uma visita a Antártica, o continente gelado. Ali
as temperaturas são as mais frias, o ar é o mais seco e o vento é o
mais uivante de todo o planeta Terra. As temperaturas no inverno podem
alcançar 89 graus Celsius negativos.
Não há população permanente de
seres humanos nesta área de mais de 14 milhões de metros quadrados (o
dobro da Austrália). Neste passeio pelo continente gelado o que
encontraremos serão pinguins.
As dezessete espécies de pinguins vivem
nestas condições hostis de clima a maior parte do ano. O pinguim
imperador é a única espécie que consegue se reproduzir em pleno inverno.
Como eles conseguem sobreviver é uma questão importante na biologia.
A dieta do pinguim imperador consiste principalmente de peixes,
crustáceos e cefalópodes (lulas). Na caça, os indivíduos podem
permanecer submersos por até 18 minutos e mergulhar a uma singela
profundidade de 535 metros. Eles apresentam diversas adaptações para
empreender tal façanha, como uma hemoglobina estruturada para permitir
que funcione em níveis de oxigênio baixos.
Os ossos sólidos e pesados
lhes permitem uma redução do barotrauma (danos físicos causados aos
tecidos do corpo por diferenças de pressão do ar ou da água). Além
disso, os pinguins têm a capacidade de reduzir seu metabolismo e
interromper as funções não essenciais de alguns órgãos. As penas do
pinguim imperador proporcionam de 80 a 90% do seu isolamento térmico.
Eles ainda possuem uma camada subdérmica de gordura que pode chegar a
ter três centímetros de espessura. As suas penas são rígidas e curtas e
formam um conjunto denso ao longo de toda a superfície da pele. Cerca de
100 penas cobrem 6,5 cm², o que significa que é a espécie de ave com
maior densidade de penas no corpo. Os músculos permitem que as penas
permaneçam eretas quando as aves estão em terra, reduzindo a perda de
calor ao fixarem uma camada de ar junto à pele.
Inversamente, a plumagem
ajusta-se junto à pele quando a ave está na água, provocando a
impermeabilização da pele e da camada de plumagem adjacente. A limpeza
das penas é vital para garantir o isolamento térmico e para manter a
plumagem oleosa e repelente de água
2.
O pinguim imperador tem ainda a capacidade de fazer termorregulação
(manter constante a sua temperatura corporal) sem alterar o seu
metabolismo, num intervalo grande de temperaturas (entre –10 e 20 °C).
Abaixo de –10, a sua taxa metabólica aumenta significativamente, apesar
de o indivíduo poder ainda manter a sua temperatura corporal entre os
37,6 e os 38,0 °C até em gélidos 47 graus negativos de temperatura
ambiente. Para aumentarem o metabolismo, podem fazer um conjunto de
movimentos: nadar, andar e tremer. Um quarto processo envolve a quebra
metabólica de gorduras por enzimas, ação induzida pelo hormônio glucagon
2. Quer mais?
É melhor deixarmos a Antártica. Está muito gelada, não é mesmo? Para
isso temos que pegar um navio e rumarmos norte, seja pelo Oceano
Atlântico, Pacífico ou Índico. O que veremos então? Água. “
Água, água, tanta água//e nem uma gota para beber”. Se o navio em que estivermos não tiver uma provisão de água doce suficiente, morreremos todos de sede.
Mar sem fim. Foto: Wikipedia
Ó mar salgado, quanto do teu sal //São lágrimas de Portugal!
Mas lá em alto mar, milhas e milhas distante de qualquer pedaço de
terra plainam suavemente os albatrozes. Os albatrozes pertencem ao grupo
chamado de Procellariiformes, que é uma ordem de aves marinhas que
compreende quatro famílias: os albatrozes, os petréis, as pardelas e os
bobos.
Essas aves são quase que exclusivamente pelágicas (vivendo e
alimentando-se em mar aberto) e se distribuem por todos os oceanos do
mundo. Essas aves vagueiam em busca de alimento durante todo o ano e só
pousam em terra firme (ilhas oceânicas isoladas) para se reproduzir.
Alimentam-se exclusivamente de lulas, peixes e crustáceos. Como vimos
acima, o metabolismo dessa proteína ingerida produzirá amônia. Vimos
também que as aves conseguem economizar água do corpo excretando ácido
úrico. Mas como excretar todo o sal ingerido após a digestão desses
animais marinhos?
Um albatroz. Foto: Fabio Olmos
A solução está nas glândulas de excreção de sal. Tais glândulas
proporcionam um caminho extrarrenal que excreta o sal com menos água do
que a urina. Em muitas aves, as glândulas nasais laterais se
especializaram para a excreção de sal. As glândulas são situadas ao
redor da órbita, usualmente sobre os olhos.
Aves marinhas (pelicanos,
albatrozes, pinguins) possuem glândulas de sal bem desenvolvidas, assim
como muitas aves de água doce (patos, aves lacustres em geral,
mergulhão), aves de praia (maçaricos e batuíras), cegonhas, flamingos,
aves carnívoras (gaviões, águias) e aves de savana (avestruz). As
glândulas de sal tem uma microestrutura semelhante a um rim e usam um
sistema de fluxo de sangue em contracorrente para remover os íons de
sais da corrente sanguínea. Estas glândulas são lobadas contendo muitos
túbulos secretores que irradiam para fora a partir de um canal de
excreção no centro.
Túbulos secretores são revestidos com uma camada
única de células epiteliais. O diâmetro e comprimento destes túbulos
variam dependendo da quantidade de sal que é geralmente absorvido pelas
espécies que as possuem. Assim, essas glândulas de sal mantêm o
equilíbrio de sal do corpo do indivíduo e permite aos albatrozes a beber
água do mar
1.
Voando na ‘zona da morte’
O monte Everest. Foto: Wikipedia
Chega de horizontes infinitos, oceanos monocromáticos, planícies
enfadonhas, desertos inimigos. É hora de embarcarmos para as montanhas, a
mais alta delas. Na cadeia do Himalaia impera o monte Everest com seus
8.848 metros de altitude.
Em 1953, os alpinistas Edmund Hillary e Tenzing Norgay mal podiam
caminhar quando chegaram a 20 metros do cume do Monte Everest. Estavam
exaustos, na chamada ‘zona da morte’, onde, acima dos 8 mil metros a
pressão atmosférica é de cerca de um terço da pressão ao nível do mar,
resultando na disponibilidade de apenas cerca de um terço do oxigênio
para respirar. Os efeitos debilitantes da ‘zona da morte’ são tão
grandes que é preciso que os escaladores levem até 12 horas para
percorrer a distância de pouco mais de 1,5 quilômetros.
Na ‘zona da morte’, o corpo humano não pode aclimatar. Uma estadia de
pouco tempo na ‘zona da morte’ sem oxigênio suplementar irá resultar na
deterioração das funções corporais, perda de consciência, e,
finalmente, a morte. Hillary e Norgay sabiam disso e por isso mesmo
usavam máscaras acopladas a um tubo de oxigênio complementar.
Sem isso
talvez jamais tivessem atingido o cume do Everest pela primeira vez na
história. Mas foi exatamente neste dia histórico, 29 de Maio de 1953, em
meio à exaustão e a êxtase do triunfo, que os alpinistas observaram um
bando de gansos asiáticos cruzarem os céus, bem acima da cabeça deles,
voando e conversando como se nada estivesse acontecendo. Sim, isso
mesmo, gansos asiáticos, conhecidos cientificamente por
Anser indicus.
Os
míticos alpinistas Edmund Hillary e Tenzing Norgay em 1953 já felizes e
fora da ‘zona
da morte’ (note os tubos de oxigênio). Fonte: Wikipedia
O ganso asiático é uma ave de grande porte que se reproduz na Ásia
Central em colônias de milhares de indivíduos perto de lagos de
montanhas e migra para o sul da Ásia, até o sul da península da Índia,
onde passam seu ‘inverno’. Isso significa que estes gansos atravessam o
Himalaia pelo menos duas vezes por ano. Como eles conseguem sobreviver
no ar rarefeito é uma das mais importantes questões da biologia.
Como os gansos respiram no ar rarefeito? Uma das grandes questões científicas.
Para uma ave voar em altitudes elevadas ela precisa aumentar a taxa
de batimentos cardíacos o que aumenta os custos metabólicos dos gansos. A
capacidade destas aves de sustentar as altas demandas de oxigênio
durante o voo em um ar que é extremamente rarefeito depende da
fisiologia cardiorrespiratória única das aves, juntamente com várias
especializações que evoluíram para o transporte de oxigênio
3.
A tolerância excepcional a hipoxia em aves é provavelmente o mais
importante fator responsável pelo voo em ar rarefeito. Mesmo pardais
comuns conseguem suportar a falta de oxigênio quando foram estimulados a
voar em túneis com ar que mimetizava 6 mil metros de altitude. As aves
são muito mais tolerantes a hipoxia do que os mamíferos. Muitas
características únicas do aparelho respiratório e cardiovascular das
aves são os responsáveis por essa tolerância
3.
O sistema respiratório das aves é único entre os animais vertebrados
atuais. Dois grupos de sacos aéreos, cranial e caudal, ocupam a maior
parte da região dorsal do corpo e estende-se em cavidades em muitos dos
ossos (chamadas espaços pneumáticos). Os sacos aéreos são pouco
vascularizados e não participam das trocas gasosas, mas são grandes –
aproximadamente nove vezes o volume dos pulmões.
Os sacos aéreos são
espaços por onde o ar flui durante os períodos do ciclo respiratório.
Isso cria um fluxo de ar contínuo em um único sentido nos pulmões. Nas
aves é possível um fluxo oposto do sangue e do ar, somente porque o ar
flui no interior dos pulmões em uma mesma direção durante a inspiração e
a exalação.
Esse fluxo de ar em sentido único nos pulmões das aves tem
muitos benefícios. O fluxo em corrente-cruzada do ar e do sangue permite
trocas de gases mais eficientes, semelhante ao fluxo de contracorrente
do sangue e da água nas brânquias dos peixes
1.
O mais árido deserto, o mais gelado dos climas, a mais alta montanha.
Qualquer lugar do planeta onde o homem possa estar terá sido precedido
por uma ave. Lembre-se disso.
O maior sucesso do planeta
As aves são os animais mais conspícuos (aos nossos olhos) no mundo
moderno. Elas são extremamente diversificadas, com mais de 10.000
espécies existentes distribuídas por todo o planeta, preenchendo uma
variedade de nichos ecológicos e uma gama em tamanho desde o diminuto
colibri com apenas dois gramas ao gigante avestruz, com seus 140 quilos.
Seus corpos emplumados são otimizados para o voo, suas taxas de
crescimento e metabólicas se destacam entre os animais vivos, e seus
cérebros grandes, sentidos aguçados e habilidades de vocalizar e usar
ferramentas as torna organismos inteligentes. Isto suscita uma pergunta
fascinante: como esse grupo de animais alcançou tão grande diversidade e
tão grande sucesso evolutivo
4?
Este é o tema de uma vida de pesquisas e descobertas essenciais para o
entendimento de todas as questões filosoficamente importantes:
Aristóteles, Lineu, Darwin, Wallace, Watson & Crick, Lorenz,
Tinbergen, entre tantos outros que o digam.
Para saber mais
- Pough, F.H., Janis, C.M e Heiser, J.B. 2003. A Vida dos Vertebrados. Atheneu Editora São Paulo, São Paulo. 4a ed.
- Williams, T.D. 1995. The Penguins. Oxford University Press.
- Scott, G.R. et al. 2015. How Bar-Headed Geese fly over the Himalayas. Physiology 30:107-115.
- Brusatte, S.L. et al. 2015. The origins and diversification of birds. Current Biology Review 25.