O texto
“Nunca se roubou tão pouco”,
do empresário Ricardo Semler, é uma obra prima da prática falaciosa.
Tem de tudo ali: estratagemas erísticos diversos, tu quoque e a
infalível evidência anedotal. Certos momentos não dá para diferenciar o
texto dele do discurso de um médium alegando fazer leitura na borra do
café. Só faltou contar histórias de lobisomem e apresentar como
evidências “eu via lobisomens todos os dias na roça”.
É inacreditável que os debates políticos tenham que ser levados para
esse nível de irracionalidade proposto por Semler. Se a moda pega, ganha
quem contar mais histórias, sem apresentar evidências. É como voltar às
eras tribais, em tempos onde pessoas mais espertas enganavam as outras
com histórias sobre “deuses da chuva”.
Vamos destrinchar essa peça inacreditável de desinformação em uma apresentação bem clara do que significa o ceticismo político.
Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a
Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina.
Tentamos de novo nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de
persistentes tentativas, nada feito.
Logo no início, já temos a primeira instância de evidência anedótica. A coisa é tão básica e banal que
basta o Wikipedia para nos dar uma definição do truque:
Evidência anedótica, ou evidência anedotal refere-se a
uma evidência informal na forma de anedota (conto, episódio, derivado do
grego anékdota, significando ‘coisas não publicadas’), ou de “ouvir
falar”. Quando utilizado em propaganda ou promoção de um produto,
serviço ou idéia, a evidência anedótica é chamada de testemunho e é
banida em algumas juridições norte-americanas. Também pode ser usada em
contexto legal para certos testemunhos.
O termo é geralmente utilizado em contraste com evidência científica,
especialmente na medicina baseada em evidências, que é uma evidência
formal. A evidência anedótica freqüentemente não é considerada
científica pois raramente pode ser analisada segundo o método
científico. O mau uso de evidências anedóticas como evidências formais é
considerada uma falácia (erro de argumentação lógica).
Outro problema relacionado ao uso de evidência anedotal é que, mesmo
que real, não leva em consideração dados estatísticos, que poderiam
evidenciar se a ocorrência estaria ou não dentro da variação prevista.
A psicologia demonstrou que as pessoas tendem a se lembrar com mais
facilidade de exemplos notáveis do que os ordinários, levando à falsa
impressão de que estes ocorrem em uma freqüência mais alta do que a
real. É por isso que casinos geralmente procuram chamar a atenção para
os poucos que estão ganhando, pois levam à falsa impressão de que a
probabilidade de ganhar é maior. Do mesmo modo, apesar dos acidentes
aéreos serem muito mais raros do que os automobilísticos, não é incomum
pessoas acharem que são muito comuns.
Também é interessante que Semler conte histórias dos anos 70, quando
na verdade ele só entrou na empresa onde está até hoje em 1980. Detalhes
esperados de um contador de anedotas um tanto quanto confuso…
Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem
qualquer um dos 86 mil honrados funcionários que nada ganham com a
bandalheira da cúpula.
Lá vamos nós de novo para a evidência anedótica. Mas isso nos leva a
uma conclusão bastante óbvia: se temos todos os empresários sabendo
disso, e todos os 86 mil funcionários que nada ganham, como é que nenhum
deles tem gravações e evidências de forma a comprovar escândalos de
dimensões tão grandes quanto as do Mensalão e do Petrolão?
Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em
Paris sabia-se dos “cochons des dix pour cent”, os porquinhos que
cobravam 10% por fora sobre a totalidade de importação de barris de
petróleo em décadas passadas.
Que eu saiba, em Paris, nas últimas quatro décadas, também tínhamos
tecnologia de gravação. Já nos anos 60, as fitas cassette eram bastante
populares. Gravadores portáteis se popularizaram no fim dos anos 70, e
com certeza as empresas tinham esse recurso a seu favor. Portanto eu
queria ouvir alguma gravação falando em propinas de 10% na Petrobrás.
Você tem algo assim, Semler?
Em suma, Semler conta histórias dos anos 60 e 70, mas só entrou em
sua empresa nos anos 80. E nos anos 80, qualquer um poderia fazer uma
gravação em fita cassete de qualquer coisa que quisesse.
Pergunta: por que Semler não consegue apresentar nenhuma gravação
mostrando um caso de corrupção de tão larga escala como no Petrolão?
Agora tem gente fazendo passeata pela volta dos militares
ao poder e uma elite escandalizada com os desvios na Petrobras. Santa
hipocrisia. Onde estavam os envergonhados do país nas décadas em que
houve evasão de R$ 1 trilhão –cem vezes mais do que o caso Petrobras–
pelos empresários?
O que tem a ver o assunto de um bando de perdidos pedindo “intervenção militar” (e são minoria nas manifestações) com o assunto?
E aqui vemos um truque até engraçado. Ele diz que “nas décadas em que
houve evasão de R$ 1 trilhão isso significa mais de cem vezes do que o
caso Petrobrás”.
Que categorias de comparação são essas? Ele não deveria comparar uma
década com outra, um ano com outro, uma empresa com outra? Mas ele
compara várias décadas (de todas as empresas juntas) com uma década de
um partido diante de uma empresa em particular? É claro que ele está
tentando te enganar com manipulação de categorias.
Virou moda fugir disso tudo para Miami, mas é justamente a
turma de Miami que compra lá com dinheiro sonegado daqui. Que
fingimento é esse?
Esse parágrafo acima não faz o menor sentido. É tão bobo que nem vale a pena refutar.
Vejo as pessoas vociferarem contra os nordestinos que
garantiram a vitória da presidente Dilma Rousseff. Garantir renda para
quem sempre foi preterido no desenvolvimento deveria ser motivo de
princípio e de orgulho para um bom brasileiro. Tanto faz o partido.
O que tem a ver a questão dos nordestinos com o caso da corrupção?
É claramente uma instância da falácia “olha o avião”. Essa é aquela
na qual você está discutindo um assunto e outro grita “olha o avião”
(mesmo sem sequer existir um avião sobrevoando a área) somente para te
distrair. Pura palhaçada.
Faça assim, Semler: traga evidências de escândalos de corrupção de
todos os partidos que estiveram na mesma posição em que o PT, e então
validaremos sua expressão “tanto faz o partido”. Que tal?
Não sendo petista, e sim tucano, com ficha orgulhosamente
assinada por Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e FHC, sinto-me à
vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo
histórico para este país.
Agora é a falácia do apelo à autoridade. Algo como “me ouça pois sou
tucano”. Mas pode muito bem ser um tucano com segundas intenções.
Ademais, o principal problema é que Semler só tem o direito moral de
se sentir à vontade para trazer seus truques até o momento em que
lembramos de tucanos como Xico Graziano, que tem agenda petista. Depois
disso, ele só tem direito de se sentir obrigado a trazer evidências
materiais de tudo que alega.
É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com
qualquer presidente. Com bandalheiras vastamente maiores, nunca a
Polícia Federal teria tido autonomia para prender corruptos cujos
tentáculos levam ao próprio governo.
Ingênuo é quem cai em evidencias anedóticas em escala recorde, ao
invés de olhar os fatos como eles são. Só é possível declarar existirem
“bandalheiras vastamente maiores” a partir de evidências materiais, que
Semler não consegue trazer. Aliás, até mesmo a tal “autonomia somente
agora da Polícia Federal” é uma alegação carente de evidências
materiais.
Já aviso que o truque do engavetador-geral da República, usado por Dilma na campanha, foi refutado com o frame do
super-engavetador-geral da República, Rodrigo Janot. Ou seja: o truque de gritar “antes não investigava, agora investiga” não cola mais.
Votei pelo fim de um longo ciclo do PT, porque Dilma e o
partido dela enfiaram os pés pelas mãos em termos de postura, aceite do
sistema corrupto e políticas econômicas.
Esse é o truque da falsa causa para distrair a plateia. Se Semler não
votou contra o PT por causa de seu projeto de tomada de poder (e a
aliança criminosa com governos como os da Venezuela, Cuba e Argentina),
mesmo tendo informação para tal, está tentando nos enganar.
É a mesma coisa que estar diante de um traficante e dizer que o
motivo para prendê-lo é uma “multa de trânsito”. Semler realmente faz
seus leitores de trouxas.
Mas Dilma agora lidera a todos nós, e preside o país num
momento de muito orgulho e esperança. Deixemos de ser hipócritas e
reconheçamos que estamos a andar à frente, e velozmente, neste quesito.
Hahahaha…
“Orgulho e esperança”? Esse sujeito realmente está tirando na cara de
todo mundo, com certeza. Mas se é disso que Semler se orgulha, muita
coisa já se explica a respeito de sua pachorra em lançar um texto tão
indigno. Ele realmente é muito hipócrita, avançando um discurso que nem
mesmo os petistas mais cínicos teriam cara de pau de fazer.
A coisa não para na Petrobras. Há dezenas de outras
estatais com esqueletos parecidos no armário. É raro ganhar uma
concessão ou construir uma estrada sem os tentáculos sórdidos das
empresas bandidas.
Bem possível. Mas isso não prova absolutamente nenhuma das alegações
de Semler de que “nunca se roubou tão pouco”. As únicas provas que temos
até agora mostram que nunca se roubou tanto…
O que muitos não sabem é que é igualmente difícil vender
para muitas montadoras e incontáveis multinacionais sem antes dar
propina para o diretor de compras.
Que mudança de modo vergonhosa, não Seu Semler? A questão das
empresas privadas não é do âmbito da corrupção pública. Na verdade, isso
reduz a competitividade das próprias empresas. Comparar corrupção em
empresas privadas (onde o nosso dinheiro público não está sendo roubado)
com corrupção em empresas públicas é uma fraude intelectual de muito
baixo nível.
É lógico que a defesa desses executivos presos vão entrar
novamente com habeas corpus, vários deles serão soltos, mas o susto e o
passo à frente está dado. Daqui não se volta atrás como país.
E este passo à frente deve-se única e exclusivamente a PF e
as denúncias de jornalistas independentes. E, sim, daqui é possível
voltar atrás como país, se o PT conseguir nos transformar em uma
Venezuela, onde a corrupção beira os níveis épicos.
A turma global que monitora a corrupção estima que 0,8%
do PIB brasileiro é roubado. Esse número já foi de 3,1%, e estimam ter
sido na casa de 5% há poucas décadas. O roubo está caindo, mas como a
represa da Cantareira, em São Paulo, está a desnudar o volume barrento.
Não sei onde ele achou essa “turma global”, pois
aqui temos um número bem diferente. Quem é a “turma global”, Semler? Isso realmente está divertido.
E ele ignora que na época de FHC 65 empresas estatais foram
privatizadas, eliminando-se aí muitas oportunidades de corrupção. Mas
daí temos um problema pior: se há menos empresas estatais a serem
saqueadas, então como se rouba tanto hoje em dia? Isto é, sobrando menos
empresas, é claro que os roubos tendem a ser mais descarados. Ficou
feio, Semler, muito feio…
Mas que tal obtermos os dados do CPI (
Corruption Perception Index)? Veja a posição do Brasil desde 1999:
- 1999 – 45º
- 2000 – 49º
- 2001 – 46º
- 2002 – 45º
- 2003 – 54º
- 2004 – 59º
- 2005 – 62º
- 2006 – 70º
- 2007 – 62º
- 2008 – 80º
- 2009 – 75º
- 2010 – 69º
- 2011 – 73º
- 2012 – 69º
- 2013 – 72º
E isso que ainda não temos os dados de 2014, depois do Petrolão!
Boa parte sempre foi gasta com os partidos que se alugam
por dinheiro vivo, e votos que são comprados no Congresso há décadas. E
são os grandes partidos que os brasileiros reconduzem desde sempre.
Mais uma coisa que não está batendo nesse discurso. Ele tenta nos
dizer que a corrupção caiu, mas o problema estaria nos “grandes
partidos”. Mas o PT não é um “grande partido”? Aliás, é o de maior
número de deputados na Câmara…
Cada um de nós tem um dedão na lama. Afinal, quem de nós
não aceitou um pagamento sem recibo para médico, deu uma cervejinha para
um guarda ou passou escritura de casa por um valor menor?
Isso é de uma cara de pau monstruosa. Anote aí: o Sr. Ricardo Semler
acabou de dizer que todo cidadão que algum dia aceitou um pagamento sem
recibo para um médico é tão culpado quanto um sujeito que saqueia uma
estatal em prol de um projeto de poder totalitário. É o mesmo que dizer
que qualquer cidadão que tenha praticado bullying na infância não tem
moral para criticar genocídios de gente como Stalin e Hitler. É uma
mentalidade doentia, realmente. Estamos evidentemente diante de uma
declaração psicopática.
Deixemos de cinismo. O antídoto contra esse veneno
sistêmico é homeopático. Deixemos instalar o processo de cura, que é do
país, e não de um partido.
Antídoto homeopático?
Ou seja, ao invés de tratarmos a corrupção com ações reais ele sugere
“homeopatia”. Bem que eu notei estar diante de embustes que não
passariam no crivo cético. A declaração de Semler combina bem com
homeopatia mesmo.
Só falta agora ele propor meditação para “curar a alma do brasileiro”. Esse é um bloco verdadeiramente surreal.
O lodo desse veneno pode ser diluído, sim, com muita
determinação e serenidade, e sem arroubos de vergonha ou repugnância
cínicas. Não sejamos o volume morto, não permitamos que o barro triunfe
novamente. Ninguém precisa ser alertado, cada de nós sabe o que precisa
fazer em vez de resmungar.
E “determinação” para este sujeito significa usar relativismo moral e
evidências anedóticas em quantidades tão assombrosas que fariam as
narrativas de mula sem cabeça de tiozinhos de sítio parecerem relatos
científicos.
Enfim, Semler faz alegações dizendo existir muito mais corrupção
antes do PT. Agora ele tem uma obrigação moral de trazer caminhões e
caminhões de provas. Ou então estamos diante de um prevaricador. Ou de
um cínico. Ou ambos.
Mas agora sim estamos prontos a mudar o país! Desde que Ricardo
Semler traga das provas de tudo que alegou. Infelizmente, pessoas que
agem assim não costumam trazer provas.
Aliás, Semler diz que nunca pagou propina. Ótimo. Parabéns para ele! O
problema é que ele poderia também inventar histórias sobre outros
empresários para vender sua imagem. Temos mais um motivo para que ele
traga evidências.
Sendo assim, Semler faz parte do movimento querendo nos levar de novo
a um mundo onde basta contar histórias da carochinhas para se esconder
os crimes comprovados da atualidade.
O que também é uma forma de
corrupção moral.
Com certeza, este texto de Semler concorre ao título de mais desonesto do ano.
Em tempo: Racionalmente podemos até supor que existia muita
corrupção no passado, ao mesmo tempo em que existe um volume torrencial
de escândalos de corrupção no governo do PT.
Ninguém está dizendo que no
passado todos eram santinhos. Mas uma alegação como aquela apresentada
por Semler deveria ter sido respaldada por evidências ao invés de
histórias do boitatá. Infelizmente, por não trazer essas evidências,
coube a mim apenas usar um checklist de falácias para derrubá-lo.