Artigo para o Estado de S. Paulo de 26/9/2015
O aspecto mais alarmante da crise brasileira é a persistência do
descolamento entre os efeitos e as causas que os produzem no relato que o
país faz do seu próprio drama. É esse o principal fator que autoriza a
insistência no errado que, de degrau em degrau, nos foi levando às
profundezas que alcançamos.
O exemplo da Petrobras é veemente. Com tudo que aconteceu ninguém
sequer menciona a hipótese da privatização, fenomeno que os
historiadores do futuro provavelmente descreverão com a mesma pena com
que os de hoje descrevem a Revolta da Vacina. No auge da fúria da
epidemia, o país continua recusando aquilo que a humanidade inteira sabe
ser a única cura possível para a corrupção sistêmica.
No 126º ano da Republica, 30º da “
redemocratização”, com o país estertorando na
overdose
dos abusos deles, ninguém exige coisa tão elementar quanto o fim dos
privilégios medievais dos donos do Estado e leis iguais para todos.
Diante da “
zebra” de um juiz disposto a aplicar sem desvios as que existem, o
establishment
permite-se reagir institucionalizando as prisões de luxo para políticos
e funcionários ladrões porque aqui fora ninguém desafia sequer a idéia
da “
irredutibilidade” desses privilégios. É ponto pacífico que a discussão começa desse postulado para tras.
A incolumidade da presidente desse desastre faz parte desse quadro de
hipnose coletiva.
Dilma só continua aí depois de assinar as ordens para
todas as falcatruas em investigação porque é do PT e não pelas “razões técnicas”
alegadas neste país onde toda lei é flexível o bastante para virar o
avesso de si mesma. Não duraria 24 horas se estivesse posicionada entre
esse partido genética e estatutariamente golpista e o poder. Já vimos
esse filme antes…
Sendo a crise o tamanho do Estado e o tamanho do Estado o tamanho do
PT é ilusão de noiva pensar que o partido a quem só o poder interessa e,
desde o “petrolão”, só a permanência no poder pode salvar,
tome espontaneamente a iniciativa de arrumar o país pela redução de si
mesmo. É essa certeza negativa que chamam por aí de “crise de confiança”.
Ninguém duvida, aqui ou lá fora, que entre o Brasil e o PT, o seu
emprego e os deles, a salvação da economia nacional e a própria, o PT
escolha o PT.
A ordem de Lula ao
Foro de São Paulo é inequívoca: “
não admitir nenhum retrocesso em relação às posições conquistadas (à democracia)
com as armas da democracia”.
Enquanto grita “Golpe!” seguirá desmontando “as armas da democracia”
para impedir que outros venham a usá-las contra ele. E nenhuma escapou
ao desmanche. As raras manifestações de independência dentro dos “poderes independentes” são hoje pontuais, isoladas e pronta e energicamente punidas.
Esse “corte de ministérios” não passará de um corte de nomes
de ministérios com os funcionários e seus privilégios permanecendo
todos nas nossas costas. O objetivo exclusivo do PT e seu banqueiro
amestrado moralmente “pequenininho” é enfiar-nos a CPMF que
ninguém mais que ele sabe quanto é tóxica, para dar ao partido mais
tempo para insistir no errado até que o erro se torne irreversível.
Comprar a licença para nos esfolar legalmente entregando mais
ministérios aos que nos têm esfolado ilegalmente é a prova da má fé
dessa manobra.
Não ha mais tempo para ilusões. É preciso banir os eufemismos. A
alternativa para reformas profundas é afundar lentamente na miséria
profunda, agora a partir do patamar de uma indústria reduzida a 9% do
PIB. O país inteiro sabe disso e a massa crítica de opinião necessária
para reverter a catástrofe está presente, medida e até sobrando, mas não
encontra canal para se expressar ou organizar.
Cada vez mais distantes do eleitorado os partidos vivem de vender
passes para dentro do aparelho do Estado. Pouquíssima gente, aliás, está
acima desse tipo de conflito em Brasilia. Lá, descartados o
lúmpen e alguma coisa do setor de serviços, quem não trabalha na imprensa trabalha no Estado, “
especialistas”
e cientistas políticos incluídos.
Toda família, direta ou
indiretamente, abriga alvos potenciais de uma reforma para valer. É
nesse conflito que se apoia, também, a falta de curiosidade da maioria
dos correspondentes sediados nas sociedades emancipadas pela democracia
real pelas ferramentas institucionais de matar privilégios muito
práticas, eficientes e fáceis de copiar com que elas contam. Mostra-se
desses países só o que comportam de esdrúxulo ou terrível.
Conflitos de interesse, aparelhamento, vícios culturais, escassez de recursos e omissão de gestores alheios ao “
core”
institucional em que sempre se apoiou o negócio do jornalismo
combinam-se para deslocar o peso do Quarto Poder para mais perto dos
outros tres o que agrava a orfandade da sociedade civil e pode ser
decisivo num momento de crise como a que atravessa a democracia
brasileira.
Continuar servindo o prato requentado de uma infindável
discussão entre iguais só contribui para esvaziar a pressão por mudanças
reais. O que temos pela frente é uma escolha que pode ser a última. A
hipótese de alteração de rota só se tornará real quando os fatos
prevalecerem, nessa cobertura, sobre o “
achismo” e o “
contra-achismo” que se anulam mutuamente em que o país anda perdido.
Desde domingo,
O Globo vem apresentando
reportagens
com fatos e numeros do Estado obeso e seus colonizadores que dão a
medida exata do que estamos trocando pelo que quando sacrificamos o
Brasil que sua para manter intacto o que só engorda.
A representação do
Brasil em Brasília ainda precisa se eleger e tem dado sinais de estar
pronta a navegar a favor do vento se for essa a condição da sua
sobrevivência.
Se a imprensa nacional, começando pela das TVs abertas,
se concentrar na exposição desses fatos e números que gritam por sí, ao
lado da exibição dos remédios que o mundo conhece há mais de 100 anos
para emagrecê-los, no horário em que atingem a massa dos brasileiros, os
políticos terão o empurrão que falta para, finalmente, deixarem-se
constranger à emocionante experiência de jogar a favor do Brasil.
O VESPEIRO