por Nádia Pontes, Deutsche Welle –
Maior parte do fogo ocorreu em período proibido via decreto,
sendo o Pantanal o palco da maior destruição. Impunidade, seca histórica
e pandemia são apontadas como causas para cenário trágico.
Em todo o Brasil, as queimadas para fins agrícolas foram proibidas de
meados de julho a meados de novembro por um decreto assinado pelo
presidente Jair Bolsonaro. Mas é como se a lei não existisse ou tivesse o
efeito contrário do desejado: o número de incêndios em todas as regiões
aumentou em 2020 em relação ao ano passado, segundo dados do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em Mato Grosso, as queimadas já estavam proibidas antes do decreto de
Bolsonaro, por meio de um decreto estadual. Apesar de o período de
proibição ter começado mais cedo que de costume no estado
– normalmente vai de 15 de julho a 15 de setembro e, neste ano, iria
incialmente de 1º de julho a 30 de setembro e foi prorrogado até 12 de
novembro –, o número de focos de calor de julho a setembro aumentou 57%
em relação ao mesmo período do ano passado.
Dos 39,9 mil pontos de fogo registrados por satélites do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no estado de janeiro a setembro,
83% (33,1 mil) ocorreram durante os meses da proibição, que são também
os mais secos. Só no Pantanal, que, proporcionalmente, é o bioma mais
impactado pelas queimadas em Mato Grosso, 95% dos focos de calor
ocorreram no período proibido.
Além disso, em 2020, as queimadas na região começaram mais cedo:
janeiro, fevereiro e abril já haviam superado o número de focos de calor
do ano passado. Em setembro deste ano, eles explodiram e atingiram o
dobro do registrado no mesmo mês de 2019.
Os focos registrados no estado de janeiro até esta quinta-feira
(07/10) somam 41,8 mil, número que só foi superado na última década em
2010, que teve 52,3 mil focos no mesmo período. Desde que o sistema de
monitoramento do Inpe passou a funcionar, em 1998, o ano mais crítico
foi 2004, quando a marca chegou a 86 mil focos no período.
“[A proibição] não teve efeito nenhum na redução do cenário de foco
de calor e de áreas atingidas pelo fogo”, comenta Vinícius Silgueiro,
coordenador do Núcleo de Inteligência Territorial do Instituto Centro e
Vida (ICV), que analisou os dados das queimadas no estado.
“A sensação de impunidade é muito grande. Ver o principal órgão de
fiscalização, que é o Ibama, enfraquecido como está é uma mensagem de
que quem comete o crime não será autuado e, se for, pode recorrer e não
pagar a multa”, analisa.
Endereço conhecido
Em Mato Grosso, estado que também é o maior produtor de soja do país,
a análise feita pelo ICV tentou demonstrar que é possível rastrear o
começo e o endereço das maiores queimadas. Segundo o levantamento, feito
com ajuda de dados da Nasa, nove pontos de origem foram responsáveis
por queimar 325 mil hectares.
“Cinco deles foram originados dentro de imóveis que estão dentro do
Cadastro Ambiental Rural (CAR)”, comenta Silgueiro. “A gente quer
mostrar que é possível chegar à origem.”
O CAR é um registro público eletrônico obrigatório para todos os
imóveis rurais. O objetivo é gerar informações ambientais das
propriedades para que os órgãos possam fiscalizar se o Código Florestal
está sendo cumprido.
Questionada, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente disse à DW Brasil
que, de janeiro a setembro, foram aplicadas multas que somam R$ 1,05
bilhão por crimes como desmatamento e incêndios florestais – sendo 100
milhões desse valor relacionados a crimes relacionados ao uso do fogo.
“O aumento dos incêndios nessa época não é o fogo permitido, é o
crime mesmo”, justifica o cenário no estado Alex Sandro Antônio Marega,
secretário adjunto Executivo da secretaria.
Sobre a eficiência da proibição, Marega diz que essa legislação tem a
ver com o uso permitido do fogo, já que é preciso autorização dos
órgãos responsáveis para o manuseio dessa técnica nas propriedades
rurais. “O decreto não permitiu que nenhuma licença fosse expedida e, as
que saíram antes do decreto, foram suspensas”, explica.
“As pessoas que estão cometendo esses crimes hoje vão passar por
dificuldades grandes nos próximos anos, porque elas irão responder no
administrativo, no Ministério Público, e vão ser responsabilizadas pelo
Ministério Público Federal na Justiça Federal”, diz o secretário sobre a
ação integrada entre os órgãos.
De janeiro a setembro deste ano, o valor de multas aplicadas no
estado é quatro vezes maior que a média histórica. Por outro lado, são
poucos os proprietários rurais que chegam, de fato, a pagar pelo crime
ambiental: 97,2% deles conseguem se livrar da penalidade, segundo dados
da própria secretaria.
Entre 2018 e 2019, porém, a taxa de recebimento das multas em Mato
Grosso saltou de 2,8% para 19%. “Montamos uma força-tarefa e temos
expectativa de aumentar esse índice em 2020”, comenta Marega.
Crime de grilagem
Nem todo fogo começa para limpeza de pasto. Em Novo Mundo, norte de
Mato Grosso, famílias do Pré-Assentamento Boa Esperança acusam grileiros
de provocar um incêndio para expulsá-las da área.
Há menos de um mês, chamas destruíram casas, plantações, cercas,
vegetação e animais no local, onde moram 300 pessoas. Cerca de 90% da
área ocupada pelas famílias foi destruída, segundo o Conselho de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana de Mato Grosso (CDDPH) e o Fórum de
Direitos Humanos e da Terra (FDHT/MT).
Disputas nas Justiça em andamento há mais de dez anos deram às
famílias o direito de permanecer nas terras, que são da União, e pediram
a expulsão do ocupante ilegal, sediado na antiga Fazenda Araúna.
“Em julho, numa reunião, as famílias nos disseram que tinham medo de
que o grileiro ateasse fogo como forma de expulsá-las”, conta Inácio
Werner, do FDHT. “E foi o que aconteceu. As famílias perderam muitas
coisas, mas continuam lá”, afirma, adicionando que foram registrados
diversos boletins de ocorrência sobre o caso.
Impunidade como motivação para o crime
A certeza da impunidade também é vista pela secretaria estadual como uma das razões para crimes desse tipo.
“Achar que vai ficar impune é um dos motivos, certamente. A seca, a
maior dos últimos 50 anos, também contribui muito. E a pandemia é vista
como um fator”, aponta Marega sobre as causas para o recorde de
queimadas no estado encontradas pelo comitê que gerencia a situação.
Segundo ele, muitos criminosos aproveitaram a emergência de saúde
para cometer os crimes ambientais por acharem que os órgãos estaduais
ficariam inoperantes. “Mas em abril nossos equipes já estavam em campo,
com todas as medidas de proteção contra o coronavírus”, afirma.
Para Silgueiro, do ICV, o quadro trágico é reflexo do desmonte e
corte de recursos do Ibama, principal órgão responsável por fiscalizar
delitos ambientais no país e por ações de prevenção contra queimadas.
“É preciso deixar claro que esse tipo de crime ambiental não será
tolerado e também fortalecer as equipes de combate e formar brigadistas
em regiões que todo ano pega fogo”, diz.
A tragédia já tinha sido, de uma certa forma, anunciada pela ciência.
Institutos, como o próprio Inpe, haviam alertado para o risco das
chamas mais intensas nesta temporada devido às condições climáticas.
“Existe também uma conivência do setor produtivo em negar o problema,
que encontra um governo federal que nega o problema”, comenta
Silgueiro.
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