Discurso ‘pró-garimpo’ aumenta desmatamento, ameaça indígenas e
internacionaliza floresta. Entrevista especial com Dário Bossi, Bruno
Milanez e Luiz Jardim Wanderley
Segundo os ambientalistas, a abertura do atual governo para a
atividade traz consigo mais desmatamento na Amazônia, expõe comunidades
originárias e ‘entrega’ recursos naturais a capital estrangeiro
Por: Patricia Fachin | Edição: João Vitor Santos /
IHU
Que o
governo de Jair Bolsonaro não é afeito à
atenção e cuidado com a região amazônica não é nenhuma novidade. No
entanto, é preciso estar atento para o fato de que, além de ‘abrir a
porteira para a boiada’, a facilitação da atividade de mineração em
terras preservadas, especialmente pertencentes a
comunidades indígenas,
dispara uma cadeia de danos a toda a região. Segundo Dário Bossi, Bruno
Milanez e Luiz Jardim Wanderley, ambientalistas que atuam na
Amazônia, “o
garimpo vem sendo um importante vetor de
desmatamento em Terras Indígenas e
Unidades de Conservação”.
Em entrevista conjunta, concedida por e-mail à
IHU On-Line, apontam que “nos últimos anos, desde o início da
crise em
2015, o garimpo vem aumentando sua participação no desmatamento na
Amazônia. A partir de 2019, essa tendência se aprofundou ainda mais, com
a permissividade da política ambiental de Bolsonaro e o
discurso pró-garimpo”. Mas os danos não param por aí.
Depois que o Estado permite a
instalação do garimpo, violência contra indígenas, outros conflitos, contaminação por metais pesados e instalação de
garimpos ilegais passam
pelos caminhos abertos pelas grandes empresas. “A construção de
infraestrutura de apoio para as atividades industriais (estradas,
aeroportos, hotéis, mercados, centros comerciais etc.) facilitaria o
acesso às Terras Indígenas e reduziria o custo de instalação das
mineradoras ilegais”, exemplificam.
Aliás, empresas essas que, em sua maioria, estão ligadas a grandes corporações internacionais. Ou seja, os
ambientalistas ainda
observam que o poder estatal é quem está entregando a Amazônia para
estrangeiros. “Os dados mostram que, diferente do que é dito pelo
presidente, não seriam as ONGs as responsáveis pela ‘
internacionalização da Amazônia’, mas sim as empresas
mineradoras, por meio de complexas estruturas de propriedade, que garantem ao
capital financeiro global o
controle das reservas minerais da região e, consequentemente, direito
para definir o uso do solo, podendo expulsar de seus territórios
pequenos agricultores e comunidades tradicionais”, sintetizam.
Dário Bossi é missionário comboniano, membro da rede Iglesias y
Minería e assessor da Comissão especial para Ecologia Integral e
Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.
Bruno Milanez é doutor em Política Ambiental pela Lincoln University,
Nova Zelândia, e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e
coordenador do Grupo Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração
Ambiente e Sociedade – PoEMAS.
Luiz Jardim Wanderley é doutor em Geografia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor da Universidade
Federal Fluminense e coordenador do Grupo Pesquisa e Extensão Política,
Economia, Mineração Ambiente e Sociedade – PoEMAS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que a Amazônia é um território visado pelas empresas de exploração mineral?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Primeiro, devemos lembrar que o
território amazônico é visado há muito tempo pelas empresas mineradoras. A
mineração em larga escala já tem mais de meio século na região, com a descoberta de
manganês na
Serra do Navio (
AP), na década de 1940, e o início de sua exploração na década seguinte. Ao final da década de 1960, os achados de
minério de ferro de Carajás e de
bauxita em
Porto Trombetas, no
Pará, motivaram políticas públicas de pesquisa, como o
projeto RADAM [operado entre 1970 e 1985 no âmbito do
Ministério das Minas e Energia,
foi dedicado à cobertura de diversas regiões do território brasileiro,
em especial a Amazônia, por imagens aéreas de radar, captadas por
avião].
Na década de 1970 e 1980, novas descobertas foram feitas, como o
nióbio de
Seis Lagos, no
Amazonas, o
caulim nos vales dos
rios Capim e Jari, no
Pará, o
estanho de
Bom Futuro, em
Rondônia e em
Pitinga no
Amazonas. Essas descobertas, os fomentos públicos à atividade de
mineração na Amazônia e
os investimentos estatais e internacionais foram fundamentais para a
era dos grandes projetos de mineração na região nos anos 1970 e 1980. Ou
seja, é bom enfatizar que já desde 1940 vemos o interesse das
mineradoras nacionais e internacionais pelo subsolo da
Amazônia brasileira.
Depósitos e ocorrências metálicas e principais distritos de mineração e províncias metalogênicas em 2017 (Fonte: CPRM2018)
As
mineradoras são atraídas para a Amazônia também
graças às grandes subvenções públicas, às isenções fiscais e à
facilitação de créditos dos bancos públicos. Alessandra Cardoso, do
Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, chama a
Amazônia de “paraíso extrativo e tributário das transnacionais da mineração” . Para além da
Lei Kandir, que
isenta do ICMS os minérios extraídos em todo território nacional para exportação, no caso específico da
Amazônia há incentivos fiscais concedidos pela
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – Sudam, que incluem descontos de 75% do
Imposto de Renda de Pessoa Jurídica.
Cobiça sobre áreas ainda não pesquisadas
A
Amazônia ainda é uma importante
fronteira mineral,
quem sabe uma das últimas do mundo. Isso significa que há um grande
volume de áreas não exploradas pelas mineradoras, mas também
desconhecidas de suas potencialidades minerais. Existem ainda grandes
porções do território amazônico que nunca foram pesquisadas, ou que
possuem pesquisas minerais muito incipientes. Essas áreas estão
sobretudo em
florestas de proteção integral (94 milhões de ha) e
Terras Indígenas (115 milhões de ha), que tornam 40% do território proibido à
exploração da mineração.
Assim, a possível abertura de mais de 200 milhões de hectares sem
pesquisa aprofundada é uma das grandes cobiças das mineradoras sobre a
região.
Em junho deste ano, o ministro da Economia,
Paulo Guedes,
no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos, criou a Política
de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a
Produção de Minerais Estratégicos. Essa proposta pretende facilitar o
licenciamento ambiental para exploração de “minerais estratégicos” para o
país. A definição de “estratégico”, porém, é muito ampla: refere-se a
minerais de cuja importação depende a
economia brasileira,
ou importantes para produtos de alta tecnologia, ou que podem oferecer
uma vantagem comparativa no superávit de nossa balança comercial. Nesses
termos tão genéricos cabe tudo: ferro, bauxita, cobre, níquel, fósforo,
potássio, nióbio etc.: mais um ataque anunciado à Amazônia!
IHU On-Line – O que predomina na Amazônia hoje, a mineração empresarial ou a mineração garimpeira?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Atualmente, na
Amazônia, ambos os
processos de extração,
garimpos e mineração, ocorrem concomitantemente. Em alguns casos
mineração e garimpos trabalham lado a lado, como em áreas do Tapajós, no oeste paraense, ou no norte do
Mato Grosso. Em
Aripuanã (MT), a empresa
Nexa da
Votorantim fez, este ano, um acordo com garimpeiros para operarem às margens de seu empreendimento.
Bacia Amazônica com a localização do rio Tapajós | Mapa: Wikipédia
Geralmente há uma diferença de poder entre esses dois grupos extratores de
minério.
Enquanto os empresários dos garimpos possuem poder local e regional,
sobretudo nos municípios e às vezes a nível estadual, as mineradoras, em
especial as transnacionais, possuem poder para influenciar a política
estadual e nacional, alterando as leis e influenciando a
política mineral.
No
governo Bolsonaro, os
empresários do garimpo vêm
ganhando força nas negociações políticas junto ao Executivo. Mas isso
tem menos a ver com um aumento da sua influência econômica e mais por
uma proximidade com o discurso fisiológico do atual governo,
antiambientalista, pró-ilegalidades e anti-indígena.
Força-Tarefa Amazônia
Uma recente e detalhada reportagem da Agência Pública deu visibilidade às investigações da
Força-Tarefa Amazônia (
FTA), que desvendaram no
sistema dos garimpos uma “lavanderia” de dinheiro sujo a céu aberto, envolvendo o coração financeiro da
América do Sul,
São Paulo. No esquema, o ouro extraído na Amazônia ilegalmente, sobretudo em
Terras Indígenas e
Unidades de Conservação, é legalizado por empresas de compra de ouro (DTVMs) que as incorpora legalmente no
sistema financeiro paulista como ativos para investimentos.
Em junho de 2020, um dos empresários que banca o
lobby para
legalização do garimpo em Terras Indígenas participou de audiência com o vice-presidente,
Hamilton Mourão, que preside o
Conselho da Amazônia,
a quem entregou um documento em que empresários do garimpo e agentes
financeiros assumem o compromisso de combater a ilegalidade, desde que o
governo federal garanta o fim de ações repressivas e da destruição de
equipamentos de mineração.
O interesse crescente pelo
ouro no
Brasil se
dá num contexto de consistente aumento do valor desse minério no
mercado internacional, considerado um “valor refúgio” em tempos de
pandemia e de conflitos comerciais entre a China e os Estados Unidos.
Eterna segurança financeira em momentos de
crise financeira e volatilidade das moedas nacionais, o ouro valorizou 78% em um ano (julho 2019-2020).
“O interesse crescente pelo ouro no Brasil se dá num contexto de
consistente aumento do valor desse minério no mercado internacional”
Mobilização contra investimento no ouro
A rede Igrejas e Mineração e diversas entidades de defesa dos
direitos humanos e da natureza, no mundo, criticam fortemente os
investimentos em ouro, sendo a extração desse metal um dos processos
mais poluentes e impactantes. E ainda, do ponto de vista social, o
trabalho insalubre e perigoso em
garimpos se torna uma das poucas opções para trabalhadores e trabalhadoras
desempregados e sem perspectivas no interior da
Amazônia.
Empresas de mineração
Entre as mineradoras, a ex-estatal Vale S.A. (antiga
Companhia Vale do Rio Doce – CVRD) se destaca como
principal mineradora da Amazônia e do Brasil, responsável pelo grande projeto Carajás – complexo minerometalúrgico que extrai ferro, cobre, ouro e níquel no sudeste do
Pará e escoa pela Estrada de Ferro Carajás, que se estende até
São Luís do Maranhão. Ao longo do caminho, uma mínima parte do minério é transformada em ferro-gusa. A
Vale S.A. é proprietária majoritária da Mineração Rio do Norte (
MRN) de bauxita, em Oriximiná (PA).
Além disso, foi a construtora e operadora do complexo metalúrgico de
alumínio em Barcarena e da mina de bauxita em Paragominas, ambos
vendidos para norueguesa
Hydro na última década. Podemos citar também outras grandes mineradoras transnacionais na Amazônia, como a
Alcoa World Alumina Brasil Ltda., que além de ser a segunda maior sócia da
MRN, também opera a mina de bauxita em
Juruti-PA; a
Mineração Taboca S.A., que extrai estanho em
Pitinga,
Amazonas; a
Mineração Buritirama S.A., exploradora de manganês em
Marabá,
Pará. E as mineradoras de ouro
Beadell Brasil Ltda., no
Amapá,
Mineração Apoena S.A. no
Mato Grosso e
Serabi Mineração S.A. no
Pará.
IHU On-Line – O que significa dizer que a mineração está
devastando a Amazônia brasileira? É possível estimar que percentual da
Amazônia já foi devastado por causa desses empreendimentos?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Diferente
do argumento das empresas mineradoras, segundo as quais o impacto da
mineração ocorre apenas onde existe a cava, deve-se levar em
consideração todos os impactos associados à infraestrutura, bem como à
ocupação decorrente dos
projetos minerais.
O caso mais emblemático, apresentado acima, é o complexo
mina-ferrovia-porto do Programa Grande Carajás, que foi instalado na
metade dos anos 1980 com o objetivo de escoar 35 milhões de toneladas
de
minério de ferro por ano e chegou recentemente a duplicar toda sua infraestrutura, abrindo novas minas no coração da
Floresta Nacional de Carajás, construindo uma segunda ferrovia ao lado da primeira e expandindo o porto de
Ponta da Madeira em
São Luís (MA),
na perspectiva de alcançar o patamar de exportação de 150 milhões de
toneladas por ano.
Uma infraestrutura desse nível rasga os territórios
da
Amazônia, provocando
desmatamento,
expulsão de comunidades e famílias,
contaminação do solo, do
ar e da
água,
assoreamento de córregos e rios, poluição sonora e acidentes por
atropelamento de animais e pessoas pelos trens, que continuamente
atravessam os territórios de cerca de 100 comunidades.
Apesar de provocar tantos danos, a expansão desse complexo minerador está oficialmente habilitada pelo estado a operar no
Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura.
Minério e soja
A infraestrutura implantada para o
escoamento do minério de ferro está servindo também para a
exportação de soja,
que chegou a 7,9 milhões de toneladas em 2019. Sendo a composição
das ferrovias Norte-Sul e Carajás um canal privilegiado de escoamento
dos produtos do
monocultivo que hoje estão ameaçando a
Amazônia.
Discurso pró-garimpo aumenta desmatamento
De acordo com artigo publicado no periódico
Nature Communication,
projetos extrativos de mineração podem
induzir desmatamento até uma distância de 70 km das concessões
minerais. A mesma pesquisa indica que as operações minerais em larga
escala na
Amazônia induziram um
desmatamento 12
vezes maior do que a área de lavra concedida, tendo sido responsáveis,
ao todo, por 9% do desmatamento na região entre 2000 e 2015.
Além disso, o garimpo vem sendo um importante vetor de desmatamento
em Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Nos últimos anos, desde o
início da crise em 2015, o garimpo vem aumentando sua participação no
desmatamento na Amazônia. A partir de 2019, essa tendência se aprofundou ainda mais com a
permissividade da política ambiental de Bolsonaro e o
discurso pró-garimpo.
“Operações minerais em larga escala na Amazônia induziram um
desmatamento 12 vezes maior do que a área de lavra concedida; tendo sido
responsáveis, ao todo, por 9% do desmatamento na região entre 2000 e
2015”
IHU On-Line – Quais são as empresas mais interessadas na exploração mineral na Amazônia?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Considerando os dados sobre concessão de lavra disponibilizados pela
Agência Nacional de Mineração – ANM em 2019, as empresas nos estados da
Amazônia Legal que possuíam direito minerário sobre a maior área eram a
Companhia Brasileira de Alumínio (
Grupo Votorantim),
Vale S.A.,
Mineração Rio do Norte (
Vale/Brasil, 40%,
Alcoa/EUA, 21%,
South32/Austrália, 14%,
Rio Tinto/Austrália, 12%),
Mineração Taboca S.A. (
Minsur/Peru) e
Mineração Paragominas S.A. (
Hydro/Noruega).
Por outro lado, se baseamos nossas análises nas autorizações de pesquisa, as empresas que se destacam seriam
Potássio do Brasil Ltda. (
Brazil Potash/Canadá),
Amazonas Exploração e Mineração Ltda. (
Amazon Resources Ltd/Reino Unido),
Amarillo Mineração do Brasil Ltda. (
Amarillo Gold Corporation/Canadá),
Potássio Ocidental Mineração Ltda. (
Pacific Silk Road Corporation/Canadá) e Vale S.A.
Em primeiro lugar, chama a atenção a presença do capital internacional já controlando grande parte do subsolo da
Amazônia,
seja em termos presentes (concessão de lavra), seja em termos futuros
(autorização de pesquisa). Os dados mostram que, diferente do que é dito
pelo presidente, não seriam as
ONGs as responsáveis pela “
internacionalização da Amazônia”, mas sim as empresas mineradoras, por meio de complexas estruturas de propriedade, que garantem ao
capital financeiro global o
controle das reservas minerais da região e, consequentemente, direito
para definir o uso do solo, podendo expulsar de seus territórios
pequenos agricultores e comunidades tradicionais. Como afirmou o
presidente em 2019: “o interesse é no minério”.
Ao se olhar para as licenças de pesquisa, percebe-se uma maior
atuação de empresas de capital fechado, sobre as quais é mais difícil
obter dados. Possivelmente essas empresas apenas negociam ou especulam
os
direitos minerários. Algumas talvez realizem as
pesquisas minerais, e se elas se mostrarem economicamente viáveis,
possivelmente venderão seus direitos para empresas maiores que tenham
capacidade de realizar a atividade de extração.
Deve-se levar em conta, porém, que os dados da
ANM não permitem avaliar a relação entre as empresas. Por exemplo a
Mineração Santa Elina (6ª posição no ranking de pesquisa) é proprietária da
Mineração Silvana (8ª no ranking de pesquisa). Considerando as áreas das duas conjuntamente, elas ficariam em terceiro lugar em
pesquisa mineral na Amazônia.
É possível que elas, assim como outras empresas mineradoras, tenham
mais de uma subsidiária; por isso, torna-se muito difícil identificar
com certeza quais empresas dominam o subsolo da
Amazônia.
É interessante aprofundar, como exemplo, os interesses da empresa
Vale S.A. Na Assembleia Geral de Acionistas de abril 2020, a multinacional declarou ter
71 requerimentos para exploração minerária em Terras Indígenas (cujas maiores extensões estão na Amazônia). Interpelado pelos acionistas críticos da
Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale,
o diretor executivo de Finanças e Relações com Investidores da
companhia afirmou que a empresa entrou com um pedido de devolução de
todos esses requerimentos. No entanto, uma reportagem de
The Intercept Brasil demonstrou que a companhia mentiu duas vezes: tem ao todo
236 requerimentos; não há registros na
Agência Nacional de Mineração dessa desistência, ao contrário, a
Vale se ofereceu para
defender a mineração dentro de terras indígenas em ações movidas pelo
Ministério Público do Pará.
IHU On-Line – Uma parte significativa das terras indígenas e
áreas protegidas na Amazônia já está registrada em nome de empresas
mineiras, que disputam o direito à exploração das terras. Quais são as
terras mais visadas pelas empresas, por quais razões e como tem
acontecido esse processo?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Segundo uma reportagem do
Estadão, existem hoje 3.212 processos ativos de atividades minerais previstas dentro das
Terras Indígenas da Amazônia Legal.
Esses pedidos envolvem uma área total de 24 milhões de hectares, o
equivalente a 21% de todo o território indígena da Amazônia Legal.
As terras mais ameaçadas, de acordo com os dados do
Instituto Socioambiental – ISA, são a TI Yanomami (RR, AM) com 449 processos minerários, a TI Menkragnoti (PA, MT) com 374, e a
TI Baú (PA) com 214. Do ponto de vista de percentual das áreas solicitadas, essa lista muda um pouco dado que no caso das
TIs Baú,
Rio Paru d’Este (PA) e
Xikrin do Cateté (PA)
os pedidos de pesquisa já correspondem a 100% de toda a sua extensão.
Ou seja, se todos esses pedidos forem concedidos, esses territórios em
sua integralidade serão transferidos para as companhias mineradoras.
Essa situação mostra a baixa preocupação e a forma displicente com
que o Estado brasileiro lida com a questão das TIs. Uma vez que a
legislação não permite a
extração mineral em Terras Indígenas, esses pedidos deveriam ser automaticamente negados. Porém, ao invés de recusar as solicitações, a
ANM os
deixa em “espera”, como se fosse uma fila aguardando a regulamentação. À
medida que essa fila cresce, aumenta a pressão sobre o governo pela
liberação da TI. Ao mesmo tempo, dada a ideia do “direito de prioridade”
que é comumente adotado pelas empresas do setor, isso vai criando um
sentimento de propriedade e de direito adquirido, que torna depois a
situação muito pior.
Já houve ao menos um caso no Canadá onde uma empresa mineradora
solicitou o direito de pesquisa, mas como não realizou corretamente os
protocolos junto aos
Povos Indígenas, enfrentou grande
resistência, que acabou por inviabilizar economicamente o projeto. Por
fim, a empresa desistiu e processou o governo provincial, por não ter
realizado os lucros que esperava. É esse o tipo de problema que pode ser
gerado aqui, caso se avance com a permissão da mineração em Terras
Indígenas.
“Uma vez que a legislação não permite a extração mineral em
Terras Indígenas, esses pedidos deveriam ser automaticamente negados”
IHU On-Line – Nos últimos anos, aumentou o número de pedidos
de exploração mineral na Amazônia e o próprio presidente, Jair
Bolsonaro, encaminhou o PL 191/2020 ao Congresso, propondo a extração
mineral em terras indígenas. Caso o projeto seja aprovado, que
consequências vislumbra?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Uma das principais resistências em
defesa da Amazônia e em apoio aos povos indígenas deve ser contra o
PL 191.
É preciso garantir o direito ao consentimento prévio, livre e informado
a estes povos, fortalecendo a oposição à mineração em suas terras,
importante estratégia para
preservação dos territórios amazônicos!
Nos termos do PL, se a
Terra Indígena objeto de exploração não estiver com a sua
demarcação já
homologada por decreto presidencial, as comunidades ocupantes não
precisam ser sequer ouvidas. Do ponto de vista local, o impacto mais
direto seria o aumento da entrada de não indígenas (incluindo
garimpeiros) nas TIs e, consequentemente, um crescimento significativo
dos conflitos territoriais e da violência contra os indígenas.
Dizer que a
mineração em grande escala vai necessariamente impedir a atuação dos
garimpeiros e da
mineração ilegal é
uma falácia. Como falamos anteriormente, não necessariamente essas
atividades são concorrentes. Portanto, não haveria garantia de que a
entrada da mineração formal inibiria a
extração ilegal.
A mineração de aluvião ou de reservas de baixo teor, principalmente em
áreas remotas, apresenta pequena atratividade para grandes empresas
mineradoras.
Para ser economicamente viável, a extração dessas reservas
depende de condições precárias de operação, tais como pistas de pouso
clandestinas e inseguras, alojamentos insalubres, alimentação
insuficiente, ausência de estrutura médica, uso de tecnologia poluente,
inexistência de controle ambiental etc. Assim, elas não atrairiam
empreendimentos industriais e continuariam sendo exploradas de forma
precária e irregular, apesar de um
verniz de legalidade concedido pela eventual regulamentação.
Infraestrutura: caminhos para mais mineração ilegal
Além disso, a construção de infraestrutura de apoio para as
atividades industriais (estradas, aeroportos, hotéis, mercados, centros
comerciais etc.) facilitaria o acesso às
TIs e
reduziria o custo de instalação das mineradoras ilegais. Ainda nesse
sentido, deve ser levado em consideração que os projetos minerais são
caracterizados pela ocupação temporária de mão de obra. A dinâmica
econômica de expansão/retração das operações minerais geraria excedentes
de
trabalhadores não-indígenas desempregados dentro das
TIs que, provavelmente, optariam pela extração ilegal até um novo ciclo de contratação.
Por exemplo, a redução da produção mineral na região de Ciudad Guayana, na
Venezuela, causou um grande desemprego no setor, liberando milhares de mineiros que foram buscar trabalho na
mineração ilegal no entorno. O município de
El Callao foi considerado em 2017 e 2018 o mais violento do país, com a atuação de grupos armados e facções criminosas.
Violência contra indígenas
Cabe lembrar que as
violências contra pessoas indígenas no Brasil já são um grande problema que, infelizmente, é ignorado pelo Estado. Estudos recentes apontam que houve 476
assassinatos de pessoas indígenas em conflitos
por terra entre 2010 e 2018. Ao longo do ano de 2019, ganhou
notoriedade o aumento nas invasões e casos de violência vinculados à
mineração ilegal.
Nesse sentido, parece haver maior probabilidade de a liberação da
mineração em TIs aumentar a violência nesses territórios do que
diminuí-la.
Danos ambientais
Para além do
aumento da violência, conforme mencionado anteriormente, outro problema diretamente associado à entrada da
mineração em TIs serão os impactos ambientais decorrentes do desmatamento. O crescimento da
derrubada de florestas teria
impactos significativos em escala local, regional, nacional e global.
Localmente, ela diminuiria a biodiversidade, limitaria a disponibilidade
de caça para os
Povos Indígenas e aumentaria o
assoreamento de igarapés e rios, prejudicando o abastecimento de água, a
pesca e a navegação. Em escala regional, a redução da área florestada
impactaria negativamente a umidade e a incidência de chuva, aumentando a
probabilidade de grandes incêndios e intensificando a savanização da
Floresta Amazônica.
Do ponto de vista nacional, a perda de área de
Floresta Amazônica impactaria diretamente a quantidade de
chuva no
país, prejudicando o abastecimento de água, a agricultura e a geração
de energia hidrelétrica. Ainda, no nível global, deve-se considerar a
contribuição desse
desmatamento para as
mudanças climáticas, uma vez que as florestas existentes nas
TIs na Amazônica brasileira retêm cerca de 13 bilhões de toneladas de carbono.
Apesar de a mineração em
TI ainda ser proibida, alguns povos já sofrem com
impactos diretos da mineração e de sua infraestrutura sobre a saúde indígena e modo de vida. É importante trazer à memória o conflito entre o povo Xikrin do
Cateté e a
mineradora Vale,
que instalou 14 empreendimentos de cobre, níquel e outros minérios ao
redor de suas terras. Em sete anos de atividade, a extração e o
beneficiamento de níquel pelo projeto Onça Puma contaminaram com metais
pesados o rio Cateté e inviabilizaram a vida dos cerca de 1.300 Xikrin.
Casos de malformação fetal e doenças graves foram comprovados em
estudos.
O procurador federal Felício Pontes testemunhou: “
O chão treme
com as bombas advindas da operação do empreendimento, afugentando a
fauna e prejudicando a caça. O rio está completamente contaminado, o que
tem acarretado doenças nos indígenas que não eram registradas entre
eles, como lesões dermatológicas, angioedemas deformantes e cefaleias”.
“Se a ANM não tem controle sobre as barragens que existem em Minas Gerais, o que dirá da situação na Amazônia”
IHU On-Line – Quais são os riscos de acontecer um desastre ambiental e social como o de Mariana ou Brumadinho, na Amazônia?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Considerando os estados da
Amazônia Legal, existem cadastrados no banco de dados da
ANM 274 barragens de mineração.
É importante frisar que esse banco não inclui todas as barragens
existentes, devido à falta de capacidade de fiscalização da Agência. Por
exemplo, em junho de 2020, foram “descobertas”
10 barragens “fantasmas” de propriedade da
Vale nos municípios de
Sabará e
Nova Lima em
Minas Gerais. Se a
ANM não tem controle sobre as barragens que existem em
Minas Gerais, o que dirá da situação na
Amazônia.
Dentre aquelas que estão cadastradas no
sistema da ANM,
65 são consideradas de dano potencial alto; dessas, 13 estão
classificadas em categoria de risco médio e alto. Deve ser levado em
consideração, porém, que essas categorias de risco podem ser
questionadas uma vez que, em 2014, a
barragem de Fundão em
Mariana foi classificada como de risco baixo, assim como a B1, em
Brumadinho em 2019.
Se assumirmos que essa classificação deve ser usada apenas para chamar atenção para os casos críticos, esses seriam as
barragens BR Ismael e Santa Maria, localizadas em
Poconé e
Nossa Senhora do Livramento, no estado do
Mato Grosso. Ambas são usadas na
mineração de ouro, possuindo potencial e categoria de risco alto. No caso específico da
BR Ismael, ela se encontrava em nível 3 de emergência em agosto de 2020. Nesse contexto, vale ainda lembrar o rompimento da
barragem TB01, outra barragem classificada como de risco baixo, também em
Nossa Senhora do Livramento, em outubro de 2019. O
rompimento apesar de não ter deixado vítimas fatais provocou grande impacto ambiental e deixou ilhada uma comunidade rural.
Portanto, dadas as
falhas no controle e fiscalização das barragens de mineração, os dados indicam que, onde houver
barragens de rejeito, há risco de
rompimento,
sendo a intensidade do desastre dependente do tamanho das barragens,
das características do relevo e da ocupação populacional a jusante.
(EcoDebate, 03/09/2020) publicado pela
IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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