Sem uma visão sistêmica, a urbanização das cidades se alastra como mancha de óleo
Sem uma visão sistêmica, a urbanização das cidades se alastra como mancha de óleo. Entrevista especial com Angélica Alvim
Por: João Vitor Santos |
IHU
Quando ocorre um vazamento de óleo, a viscosidade do líquido faz com
que ele se alastre e vá sufocando tudo que encontra pela frente, seja na
água, seja na terra. E, na área contaminada pelo óleo, a vida se
estabelece de forma precária. Essa metáfora é ilustrativa e revela como a
professora, arquiteta e urbanista Angélica Alvim compreende
o crescimento desajustado de cidades brasileiras, o que chama de
urbanização dispersa. “Os problemas da
urbanização dispersa têm muito a ver com os problemas das
cidades brasileiras,
que crescem de forma espraiada, como se fosse uma mancha de óleo, sem
planejamento”, reitera, na entrevista concedida por telefone à
IHU On-Line.
Para ela, mais do que projeto de urbanização, é preciso um ajuste de
foco, numa visão mais sistêmica e integrativa com a realidade da falta
de moradia, de moradias precárias e a necessidade de
preservação ambiental.
“Precisamos trabalhar de forma mais próxima das realidades, não é
possível darmos as costas para a participação dessa população. Esta
população está lá [em áreas de preservação], então como vamos trabalhar
para ela morar melhor sem degradar o meio ambiente? Esse é o primeiro
ponto”, tensiona.
Angélica observa que as pessoas ocupam áreas de preservação por pura
falta de planejamento e política
habitacional. “É preciso ter uma visão sistêmica sobre o problema, é
preciso ofertar habitação em áreas consolidadas, habitação a preços
acessíveis, onde há infraestrutura”, sugere. Ou seja, sem a oportunidade
de ocupar espaços e áreas já urbanizadas, muitas pessoas são forçadas a
avançar sobre locais de preservação ambiental. A professora ainda
aponta que, quase na mesma proporção em que as pessoas são empurradas
para áreas periféricas e de preservação, há um
esvaziamento populacional de áreas mais centrais. É o caso de centros de grandes cidades, como
São Paulo e mesmo
Porto Alegre, que pouco servem à moradia.
“Não adianta
proibir urbanização em
áreas mais frágeis, que estão nas regiões periféricas, próximas às
represas, e não dar oportunidade de criar conjuntos e áreas de interesse
social nas regiões centrais”, aponta.
Entretanto, a professora diz que também é preciso pensar nas áreas já
degradadas e que abrigam moradias extremamente precárias. Para ela, a
solução não é simplesmente desocupar, retirar as pessoas dali. “É
preciso
políticas públicas integradas, em que
habitação,
desenvolvimento urbano,
saneamento e as
políticas de transporte e mobilidade sejam
feitas de forma integrada para que essas pessoas consigam estar ali sem
degradar o meio ambiente e, ao mesmo tempo, as pessoas que precisarem
ser removidas não percam essas relações que têm com o local”, sugere.
Para ela, isso passa até por urbanizar algumas dessas áreas já
degradadas, “mas uma urbanização que articule infraestrutura de
saneamento ambiental, como também dignidade da habitação e
infraestrutura verde”.
Na entrevista,
Angélica ainda reconhece o grande
papel de movimentos de luta pela moradia, mas aponta que é necessário
também trabalhar o pensamento sistêmico nesses grupos. “O processo dos
movimentos de moradia é extremamente legítimo, eles precisam ser cada vez mais parte de um trabalho articulado entre estado e município, e a
universidade tem
um papel a cumprir, contribuindo com a capacitação desses movimentos”,
analisa. Um caminho, segundo ela, é qualificar esses movimentos com
assistência e formação que trabalhem não só pela luta por uma casa
digna, mas também pela
preservação do meio ambiente nas
cidades. “Assessoria técnica é uma saída importante, porque ela não
precisa apenas ser vista como assistência técnica em relação à
habitação, mas pode contribuir para uma maior
capacitação dos movimentos de moradia em
relação ao problema habitacional entendido de forma mais ampla, em que a
questão ambiental é parte desse conjunto”, completa.
Angélica Tanus Benatti Alvim é arquiteta e urbanista, graduada pela
Faculdade de Belas Artes de São Paulo, mestra e doutora em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP. Atua como professora
adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, onde também é diretora. Ainda é docente do
curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo e docente permanente do
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Entre suas
publicações mais recentes, destacamos “
Envelhecimento ativo e saudável nos espaços públicos de áreas protegidas: o Parque Linear Cantinho do Céu em São Paulo” (Oculum Ensaios (PUCCAMP), v. 16, p. 128-145, 2019) e “
Memórias e atualidade Espaços públicos da área central de Presidente Prudente” (Minha Cidade, v. 222.01, p. 1-3, 2019).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como analisa a gestão e manutenção de áreas
ambientalmente protegidas na Região Metropolitana de São Paulo? E por
que muitas dessas áreas acabam dando origem a assentamentos precários?
Angélica Tanus Benatti Alvim – Em relação à gestão das
áreas protegidas da Região Metropolitana de São Paulo, precisamos entender um pouco a complexidade do tema. A
Região Metropolitana de São Paulo tem
39 municípios, e 39% desse território está em áreas de proteção dos
mananciais, que é uma região protegida por lei desde meados dos anos
1970. Essa é a grande área protegida da
Região Metropolitana de São Paulo.
Depois, temos algumas
Unidades de Conservação e
Áreas de Proteção Ambiental – APA, como, por exemplo, os parques estaduais e municipais, mas principalmente os estaduais, como o da
Cantareira, do
Guarapiranga, entre outros. Mas são áreas que têm a gestão, em geral, do Estado através da Secretaria do Meio Ambiente.
A
Área de Proteção de Mananciais tem várias sub-bacias que são protegidas por lei, que hoje são de gestão do Estado, mas também com forte participação dos
Comitês de Bacia, sobretudo do
Comitê de Bacias do Alto Tietê e dos
Subcomitês de Bacias.
Mapa: Bacias do Alto Tietê
Eu avaliaria a gestão dessas áreas como falha. Por mais que tenhamos
legislações extremamente importantes e que definem um processo de
gestão, inclusive na
área de proteção de mananciaiscompartilhada,
acredito que ainda há várias lacunas a serem vencidas. Estamos diante
de um processo de urbanização que muitas vezes esbarra no processo de
proteção dessas áreas, mas, ainda assim, encontra brechas para ocupar
essas regiões, às vezes de forma bastante predatória.
Esses assentamentos precários têm a ver com o processo histórico
de urbanização da Região Metropolitana de São Paulo. A Região
Metropolitana paulista, durante muitas décadas, foi uma área que sempre
atraiu muita população de todo o
Brasil. Se olharmos os anos 1960 e 1970, por exemplo, com a forte
industrialização que ocorreu na região e com a ausência de oportunidades em outras partes do país, veremos que a
região metropolitana de São Paulo é
a que teve o crescimento populacional em maior ritmo. Esse processo de
ocupação e urbanização intenso, principalmente a partir dos anos 1950 e
1960, com a forte urbanização de áreas frágeis ambientalmente, deu
origem a uma precariedade nessa urbanização, dissociado de um processo
de planejamento. Não é que não houvesse um
Plano Diretor, principalmente no município de
São Paulo, e legislações, como a
Lei de Proteção de Mananciais, que vão buscar impedir essa urbanização, mas é muito difícil sua implementação.
Urbanizar áreas de esvaziamentos
Ou seja, não necessariamente a urbanização vai respeitar a
legislação. Mas, se a legislação tem tanta importância assim, como atuar
sobre esse território? Seria necessário não apenas ter legislações que
visem coibir a urbanização de determinadas áreas – como são as leis que
criam as nossas
áreas de proteção ambiental –, mas
legislações que deem a oportunidade de urbanizar as regiões que vão se
esvaziando, como as áreas centrais, por exemplo. Não adianta proibir a
urbanização em áreas mais frágeis, que estão nas regiões periféricas,
próximas às represas, e não dar oportunidade de criar conjuntos e áreas
de interesse social nas regiões centrais.
Nos anos 1970, por exemplo, houve a criação de áreas de habitação social em regiões distantes, como na
Zona Leste de São Paulo, onde também há áreas frágeis ambientalmente. No
ABC Paulista, por exemplo, temos toda a ocupação das indústrias no
eixo Anchieta-Imigrantes, principalmente em
São Bernardo,
Santo André e
Diadema.
Não por acaso esses municípios são os mais afetados por áreas
protegidas ambientalmente, por isso há um congelamento de diversos
espaços; contudo, é lá que estão as oportunidades de emprego.
Mapa: Eixo Anchieta-Imigrantes
É um
ritmo de urbanização tão intenso que a legislação e o processo de planejamento não dão conta e, ao mesmo tempo, não há
políticas públicas de fato efetivas para fazer com que se tenha políticas habitacionais em locais mais centrais nesses municípios e em
São Paulo,
bem como políticas públicas que olhem para essa realidade de
urbanização e busquem minimizar o problema, oferecendo moradia digna
para essas pessoas em áreas protegidas ou próximas dessas áreas.
IHU On-Line – Como é possível resolver essa equação: necessidade de urbanização e manutenção das áreas de preservação?
Angélica Tanus Benatti Alvim – Algumas têm
urbanização e outras são
ocupadasprecariamente,
precisando ainda de muito investimento do Estado. Agora, não podemos
negar que essas pessoas estão lá, por isso é preciso fazer algo que
concilie a
urbanização de forma sustentável — esse é um grande desafio — com a preservação e a recuperação dessas áreas. É preciso entender que o problema não é da
população de baixa renda e das
ocupações precárias,
é uma situação muito complexa, porque é um conjunto de fatores que está
associado a uma ausência de políticas públicas que por muitos anos não
olharam de forma atenta para esses processos, especialmente os processos
que se dão nas áreas consolidadas.
O que acontece com as áreas consolidadas? Existe hoje uma valorização
exagerada e intensa dessas áreas, então só quem pode pagar pode morar
nas áreas consolidadas. É muito difícil conseguir pagar moradia em áreas
propícias à
urbanização. Houve muitos investimentos de
infraestrutura, de empregos, de circulação e mobilidade nas áreas
consolidadas, enquanto nas regiões frágeis, mais periféricas, onde há
áreas de preservação ambiental, legislações proibiram a ocupação e a
infraestrutura de saneamento ambiental. Ao mesmo tempo, não havia
controle e fiscalização dessa população que foi se instalando ali.
Havia, inclusive, uma conivência do Estado; por muitos anos os
municípios foram coniventes em razão dos votos e de questões políticas.