Por Daniele Bragança
- domingo, 10 dezembro 2017 22:46
Evangelina Vormittag. Foto: Divulgação.
O monitoramento e controle da qualidade do ar é uma das leis que
ficaram apodrecendo nas gavetas da gestão ambiental do país. Em 19
estados da federação, sequer se sabem quantos e quais poluentes são
jogados na atmosfera. Desde 1989, uma resolução do Conselho Nacional do
Meio Ambiente (Conama) determina a criação de uma "Rede Nacional de
Monitoramento da Qualidade do Ar", que permitiria o "acompanhamento dos
níveis de qualidade do ar e sua comparação com os respectivos padrões
estabelecidos".
Um ano depois, uma outra resolução estabeleceu o Padrão Nacional de
Qualidade do Ar, que vigora até hoje. Os valores estabelecidos pelo
padrão são três e até quatro vezes mais permissivos que os valores de
segurança definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o que torna
os lançamentos de poluição permitidos pela legislação brasileira um
caso de atentado à saúde pública.
Há 9 anos, Evangelina Vormittag, médica e doutora em Patologia,
trabalha com poluição atmosférica. Presidente do Instituto Saúde e
Sustentabilidade, Evangelina participa, como sociedade civil, das
reuniões que ocorrem no CONAMA e como consultora do Ministério Público
Federal sobre o tema. Em entrevista a ((o))eco, ela desvenda o quadro do
monitoramento da poluição do ar no Brasil.
Leia a entrevista:
((o))eco: Qual é o quadro do monitoramento do ar no país hoje?
Nós temos várias legislações desatualizadas e ultrapassadas sobre a
poluição do ar. O Brasil tem uma série de desafios e obstáculos para o
cumprimento daquilo que já existe como determinação. Muitas conquistas
acabam não sendo, de fato, implementadas. Já é uma luta para conquistar
uma lei, uma política e depois, elas não são cumpridas.
Quais leis não estão sendo cumpridas?
Posso te falar de alguns exemplos. O primeiro deles é o Programa
Nacional de Qualidade do Ar, que foi determinado pela Resolução nº
005/1989. E essa Resolução estabelecia a implementação do monitoramento
de qualidade do ar nos estados. Hoje, nós só temos 8 estados que
possuem o monitoramento de qualidade do ar [
Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás e Bahia],
embora nem todas as estações de monitoramento controlam todos os
poluentes. Quando se fala especificamente de um poluente, a quantidade
de estações é menor e muitas estações no Brasil são de origem privada,
então, isso quer dizer que os órgãos ambientais estaduais utilizam
estações privadas de empresas ou indústrias para monitoramento da
qualidade do ar, ao passo que existem, principalmente em São Paulo, os
equipamentos de monitoramento de qualidade do ar públicos.
Por que é ruim ser privado?
Porque as estações de monitoramento do ar em indústrias privadas têm
uma finalidade que é o monitoramento de poluentes dessa indústria e ela
tem um cunho mais para licenciamento, enquanto que a pública é alocada
para medir locais que são mais importantes para o monitoramento de
poluentes que podem trazer danos à saúde pública. Por exemplo, as
públicas são determinadas em dias de grande tráfego, ou próximas de
indústrias com vias de grande tráfego porque elas têm outra intenção,
outro foco. Nem sempre aquela estação de monitoramento numa indústria
vai englobar o que é de maior interesse da população.
Na Bahia o monitoramento é privado, eles utilizam estações privadas.
No Rio de Janeiro, metade é privada e metade não é privada. Em São
Paulo, todas as estações são públicas. O melhor monitoramento de
qualidade do ar é em São Paulo.
E quantos estados fazem esse monitoramento?
Apenas 8 estados. Nem o Distrito Federal realiza o monitoramento de
qualidade do ar. Somente 1,6% dos municípios são monitorados no Brasil e
nós temos 252 estações de monitoramento com dados de 2014, enquanto que
os Estados Unidos têm 10.000 estações e a Europa 7.500 estações. Nós
temos muito poucas estações.
“Nem o Distrito Federal realiza o monitoramento de qualidade do ar. Somente 1,6% dos municípios são monitorados no Brasil”.
Então, uma vez que é feito esse diagnóstico, se pode preconizar e
elaborar uma gestão adequada para esse monitoramento. O que acontece no
Brasil é que a resolução CONAMA 003/90, que determina o padrão de
qualidade do ar, foi publicada há 27 anos e é muito desatualizada. Há 12
anos, temos o guia do Organização Mundial de Saúde que preconiza
padrões de qualidade do ar para serem seguidos de acordo com a
salvaguarda da saúde da população. Se ultrapassarem os valores de
concentração de poluentes no ar determinados pelo padrão da OMS, esse
nível de concentração acaba por afetar a saúde da população exposta. E
no Brasil os padrões adotados pelo CONAMA são muito altos.
Há uma divergência entre os dois padrões?
Sim. O que acontece é que a concentração de poluentes, mesmo que seja
alta, muitas vezes está dentro do padrão adotado pelo Brasil, e por
fim, nós temos uma qualidade do ar medida como normal, quando na verdade
a população afetada sequer sabe que está sendo exposta a uma quantidade
superior ao recomendado. Vou te dar um exemplo: o material particulado é
um poluente nocivo para a saúde e o padrão de qualidade do ar no Brasil
admite que você tenha uma concentração máxima de 150 mg/Nm³.
A
Organização Mundial de Saúde preconiza 50 mg/Nm³ para não afetar a saúde
da população. Nosso padrão tolera três vezes o valor da OMS. Agora
imagina que uma determinada indústria emita 100 mg/Nm³, que já é um
valor muito alto pelo padrão da OMS, o dobro do que deveria ser, mas no
Brasil essa concentração é considerada normal. E assim é medido pelo
órgão ambiental e informado para a população.
Essa informação sobre a diferença entre os padrões, muitas vezes, os
gestores ambientais na ponta, nos municípios, desconhecem. Quem conhece
são os órgãos federais e os órgãos estaduais de meio ambiente. Enquanto
não houver a mudança do padrão, não vai haver de fato o conhecimento do
problema. O padrão da Organização Mundial de Saúde não vai resolver o
problema da poluição, mas ele é um instrumento para a gestão.
Há alguma tentativa de mudança do padrão dentro do CONAMA? Essa discussão está acontecendo? Como é que está isso agora?
Essa discussão já acontece há um tempo. Em 2014, formou-se um grupo
de trabalho de revisão dos padrões de qualidade do ar, mas não houve
consenso. As reuniões duraram o ano inteiro e teve que ser discutido na
Câmara Técnica porque não se chegou a um consenso. Ocorre que não houve
discussão na Câmara Técnica, ou seja, caiu no vazio. Em 2017, voltou-se a
discussão e de novo não houve consenso e de novo foi para a Câmara
Técnica.
Já houve reunião esse ano na Câmara Técnica?
“Os [estados] alegam que não têm condições de fazer uma gestão nos estados para se atingir os padrões de qualidade do ar”.
Já, houve uma primeira. Os estados, através dos seus órgãos
ambientais estaduais, não querem que haja mudança no padrão para OMS e
nem querem estabelecer prazo para mudanças. Eles alegam que não têm
condições de fazer uma gestão nos estados para se atingir os padrões de
qualidade do ar, ou seja, eles não têm condições de fazer uma gestão que
regule a diminuição de poluentes nos estados. O Ministério do Meio
Ambiente, o Ministério da Saúde e o Ibama entendem que têm que haver uma
mudança no padrão para o da Organização Mundial de Saúde, mas não têm
uma definição dos prazos.
A sociedade civil e o Ministério Público
querem o padrão da OMS num prazo mais curto possível, eles sugerem nove
anos, três anos entre cada meta intermediária, no máximo. O que acontece
é que os estados e os órgãos federais não querem determinar quando
haverá a mudança, porque a gente sabe que para chegar ao padrão da
Organização Mundial da Saúde precisa de um prazo e precisa que a mudança
ocorra em etapas. Mas os estados não querem nem determinar as etapas. O
que eles querem é primeiro avaliar se vai haver condição de chegar a
esses padrões. Os órgãos federais defendem já um prazo mesmo que mais
longo, porque eles acham que se não houver um prazo para a determinação,
não vai se atingir os padrões que se quer propor. Então, isso é como se
divide no CONAMA.
Os estados temem o quê? Perder indústria?
A indústria é outra quarta parte. Também não querem a determinação
dos prazos. Os estados defendem a mesma coisa que a indústria. Para os
estados atingirem os padrões da OMS, eles têm que diminuir as emissões e
existe uma pressão econômica para que continue como está.
Para haver a redução de emissão, eles vão ter que se adequar, vão ter
que fechar indústria até se adequarem. As emissões de poluentes tem
tanto a fonte industrial quanto veicular. Então, é necessário que haja
medidas nessas duas frentes. E o que a gente acredita é que se não for
determinado o padrão, ninguém diminui nada. Não se faz uma gestão para
diminuir como vem acontecendo há 27 anos.
Me fale um pouco sobre a inspeção veicular
“(...) as outras leis praticamente quem têm
que cumprir são os estados porque é de ordem estadual a questão da
proteção ambiental. Eles não cumprem (...)”.
Assim, existem outras leis conquistadas que também não são cumpridas,
por exemplo, a inspeção veicular, ela foi determinada há vinte anos,
todos os estados deveriam ter implementado a inspeção veicular, mas só o
estado do Rio de Janeiro implementou. Outra coisa também, a lei de
mudança do clima, a lei municipal em São Paulo determina que haja
mudança da matriz energética da frota de ônibus até 2018 e não vai ser
cumprida. E por que não é cumprida? Porque os responsáveis são os
estados.
Com exceção desta frota municipal, as outras leis praticamente
quem têm que cumprir são os estados porque é de ordem estadual a questão
da proteção ambiental. Eles não cumprem, mas eles legislam sobre a
própria causa, então, não há fiscalização, não há uma sanção, eles não
fazem e o órgão federal também não fiscaliza. Antigamente, quem
fiscalizava era o Ibama, mas ele não tem mais essa função e fica por
isso mesmo.
Se o Ibama não tem mais essa atribuição, quem tem essa atribuição?
Ninguém. A única coisa que poderia obrigar o estado a fazer é o
Ministério Público. Na verdade, quem defende essa questão no Brasil é o
Ministério Público e a sociedade civil, o próprio governo não atua na
questão da saúde da população. Os interesses são outros. Eles deveriam
ter esse interesse, os órgãos ambientais foram criados para isso, mas
não fazem. É praticamente uma improbidade administrativa. Aquilo que o
órgão deveria cumprir, aquilo que ele tem como missão, o propósito de
existir, ele não cumpre.
A Resolução de 1989 é federal, mas os estados não cumprem e não tem o
que fazer, a não ser que o Ministério Público vá lá e questione e faça
uma ação civil contra o próprio estado. É o que está acontecendo em
Santa Catarina. Tem uma procuradora que fez uma ação civil porque o
estado não cumpre uma série de legislações em relação à qualidade do ar.
Santa Catarina tem polos industriais. A procuradora de Santa Catarina
questionou duas leis que não foram cumpridas, uma é a inspeção veicular,
que é uma lei já de vinte anos e de um programa de controle de poluição
veicular. Ela nem questionou o monitoramento que não existe. Na
verdade, o que ela está questionando é correto. Eles não têm a inspeção e
nem o programa de manutenção de emissões. Mas antes disso, já existe um
problema maior, que é não ter o monitoramento e também não tem o
controle de fontes fixas industriais. Ela fez uma ação, digamos assim,
com uma parte da história.
E a poluição industrial sequer entrou na história
“Antigamente, as indústrias estavam nas
grandes cidades. Não estão mais, elas estão no interior. A região
metropolitana de São Paulo tem doze cidades acima do nível de São Paulo e
ninguém toma conhecimento desses casos.”.
A gente acha que como é Norte, Nordeste e Centro-Oeste, lá não tem ar
poluído como São Paulo, mas não é verdade, porque tem polos industriais
nesses estados e existe toda a fonte veicular.
Então, por exemplo, queimadas têm que ter monitoramento e
diagnóstico. Para você ter uma ideia, em São Paulo, temos 30 municípios
que monitoram a qualidade do ar. Desses 30, 12 estão com nível de
poluição acima da cidade de São Paulo. Antigamente, as indústrias
estavam nas grandes cidades.
Não estão mais, elas estão no interior. A
região metropolitana de São Paulo tem doze cidades acima do nível de São
Paulo e ninguém toma conhecimento desses casos. Cubatão é uma delas. O
nível de poluição de Cubatão, hoje, é o nível que existe na China, quase
cinco vezes o nível de São Paulo.
Agora, por que não se fala nisso?
Porque não aparece, porque o padrão é muito alto, então, por uma série
de situações que você vai somando, não se tem o real diagnóstico. Se uma
mãe tem um filho com asma e quer saber onde ela pode morar com esse
filho, ela não tem essa informação adequada porque o órgão ambiental não
está fornecendo essa informação. O técnico ambiental da ponta, muitas
vezes, não tem conhecimento sobre isso tudo.
Você diria que os índices de poluição do ar no país são uma grande incógnita?
Não. Porque existem oito estados que monitoram, então, os índices são
conhecidos nesses estados. Não são conhecidos os dos outros.
Praticamente oito estados de vinte e sete. Um terço: os quatro estados
da região sudeste; no sul: Paraná e Rio Grande do Sul; Bahia, Goiás.
O estado do Rio de Janeiro é mais poluído, o ar é mais poluído do que
o estado de São Paulo; em terceiro lugar, Belo Horizonte, depois Porto
Alegre e depois Paraná. Hoje, temos Belo Horizonte, Porto alegre,
Vitória e Curitiba. Nesses locais os índices de poluição são conhecidos.
Polos industriais são os mais poluídos. Cubatão, por exemplo, no
estado de São Paulo, tem uma situação muito ruim de qualidade do ar. A
gente vê as piores situações nos polos industriais, embora a fonte
veicular esteja presente, seja importante para todos os estados. Aqui no
Brasil, onde há os polos industriais, as refinarias de petróleo, as
indústrias de cerâmica, têxteis, cimento, vidro, há maior concentração
de poluição do ar.
Onde tem mais estações? É no estado de São Paulo?
Hoje é no Rio de Janeiro. Era São Paulo dois anos atrás, mas com a
Copa o Rio de Janeiro teve que implementar várias estações de
monitoramento.
E nos estados que não têm o monitoramento, vocês conseguem saber a situação deles?
Não. Onde não tem monitoramento, a gente não tem o diagnóstico de qual a qualidade do ar.
E qual o impacto dessa poluição na saúde pública?
“A poluição no estado de São Paulo, hoje,
adoece mais que a Aids, duas vezes mais do que acidente de trânsito,
três vezes mais que câncer de mama e seis vezes mais que câncer de
próstata. A poluição é destruidora porque ela é invisível.”.
No estado de São Paulo, nós fizemos um estudo que se nada for feito,
se a poluição se mantiver como é hoje, não alterar o padrão, a gestão,
em quinze anos vamos ter 256 mil mortes e 1 milhão de internações por
doenças relacionadas à poluição do ar, num custo de R$ 1,5 bilhão a
preço de 2011 para a saúde.
Então, o impacto em saúde é muito alto. A
poluição no estado de São Paulo, hoje, adoece mais que a Aids, duas
vezes mais do que acidente de trânsito, três vezes mais que câncer de
mama e seis vezes mais que câncer de próstata. A poluição é destruidora
porque ela é invisível. É difícil constatar que aquela pessoa morreu por
causa da poluição do ar. Quais são os efeitos que levam mais à morte da
população e adoecimento? É a doença cardiovascular, infarto do coração e
o derrame, e doenças pulmonares, como o câncer de pulmão. Câncer de
bexiga também está associado. Hoje o ar é líder ambiental em adoecimento
e mortes no mundo. Ele já ultrapassou a falta de saneamento de água em
termos de adoecimento.
Temos outro estudo que compara o padrão Conama com o Padrão OMS em
São Paulo. Olhando os padrões que o estado de São Paulo utiliza, temos
1.100 dias com ultrapassagem dos padrões de qualidade do ar nas estações
de São Paulo de acordo com a OMS, enquanto que os relatórios da Cetesb
[A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] relatam só 180 dias. Isso
para mostrar o quanto ela deixa de relatar uma realidade de fato.
Se você for conversar com a Cetesb ela vai dizer que tem uma
preocupação em relação a isso, que em 2013 eles fizeram uma resolução
para atualizar os padrões em relação à OMS, e é verdade. Em 2013, os
estados de São Paulo e Espírito Santo fizeram uma revisão e um decreto
para mudar o padrão de qualidade do ar para o da OMS, porém, não
estabeleceram prazo para a mudança. Então, eles falam que fizeram.
Fizeram, mas caíram no vazio de novo porque não tem prazo para a
mudança.
E o que mudou do padrão, nas primeiras metas intermediárias foi
muito pouco, a redução é muito pouca. A concentração máxima de 150
mg/Nm³ de material particulado que dei no exemplo hoje em São Paulo é de
120 mg/Nm³. É melhor que o Federal, mas é muito pouca a diferença e
está muito longe do padrão da OMS, que é 50 mg/Nm³. E o Espírito Santo
usou a mesma métrica que São Paulo.